O CADERNO DO ESCOTEIRO – Traduções – Ivo Barroso – 1947/49 (já citado aqui na Gaveta e em livro) deixa claro que minha primeira tradução de poesia foi o soneto “El Celaje”, de Amado Nervo, poeta mexicano nascido em 1870 e falecido em 1919. Saber onde eu teria encontrado o original é algo menos evidente, embora imagine que a fonte mais provável tenha sido a revista “Paratí”, que então se editava na Argentina. Explico: meu tio Alfredo era radioamador (PY-4AP) e recebia publicações de seus correspondentes estrangeiros, em geral postais com dia e hora do contato herteziano, mas vez por outra lhe chegavam fotos e publicações dos respectivos países. Eu me interessava sempre pelas revistas, principalmente essa que publicava uma seção “Quando mi vida, quando…”, com pensamentos e poemas curtos. Foi lá, sem dúvida, que encontrei o soneto.
El Celaje
Amado Nervo
Adónde fuíste, Amor, adónde fuíste?
Se extinguió del poniente el manso fuego
y tú, que me decías “Hasta luego,
volveré por la noche”… no volviste!
En que zarzas tu divino pie heriste?
Qué muro cruel te ensordeció a mi ruego?
Qué nieve supo congelar tu apego
y a tu memoria hurtar mi imagen triste?
…Amor, ya no vendrás! En vano, ansioso
de mi balcón atalayando vivo
el campo verde y el confín brumoso;
y me finge um celaje fugitivo,
nave de luz em que, al final reposo
va tu dulce fantasma pensativo.
4/9/1915
cuidadosamente transcrito na primeira página do caderno, tendo na seguinte a tradução, toda certinha, o que faz supor anteriores rascunhos emendados:
A Nuvem
Amado Nervo
Para onde foste, Amor, e me deixaste?
Extinguiu-se no poente o manso fogo,
e tu, que me dizias: “Até logo!
voltarei pela noite!” — não voltaste!
Em que sarça o divino pé magoaste?
Que muro te ensurdece de meu rogo?
Que neve pôde congelar-te o afogo
e a memória daquele a quem amaste?
…Amor, já não virás! Em vão, ansioso,
da minha porta, em atalaia, vivo
aos verdes campos e ao confim brumoso;
E me parece um “stratus” fugitivo
— nave de luz, em que, ao final repouso
vai teu doce fantasma pensativo.
01.12.1947
Parece que a dificuldade maior estava precisamente na tradução do título, Celaje, que em espanhol significa “aspecto do céu quando está sulcado de nuvens tênues e de cores distintas”. Como não conseguisse encontrar um equivalente imediato, acrescentei uma nota: À falta de melhor palavra que correspondesse à tradução, usei “stratus” como equivalente de “celaje”. Na verdade, esse tipo de nuvem fina e alta no poente é o que mais pode assemelhar-se à palavra espanhola, sem nome especial entre nós, que, despreocupadamente, chamamos “nuvem” a qualquer tipo delas.
MAS QUEM ERA ESSE POETA AMADO NERVO?
Para mim, na época, totalmente desconhecido e, ao que parece até hoje ignorado pela maioria dos leitores. Mas Nervo teve seu momento de glória: Nascido em 1870 em Tepic (México), José Amado Ruiz de Nervo, começou a se distinguir no periodismo com a fundação da Revista Azul (1894), em que publicou suas primeiras crônicas e poesias. Em 1898 lança seus livros de poemas Perlas Negras e Místicas, que lhe granjeiam de imediato considerável sucesso. Em 1900, segue como correspondente do diário El Impacial para cobrir a Exposição Universal de Paris, onde faz amizade com o grande poeta nicaraguense Rubén Darío e se relaciona com literatos e artistas parnasianos e modernistas franceses. Nessa ocasião, conhece Ana Cecilia Luisa Dailliez, que seria, na expressão do poeta, “a mulher de sua vida”. Em 1902 regressa ao México onde é nomeado professor de literatura e inspetor de ensino. Publica Los jardines interiores e Cantos Escolares, poemas pedagógicos musicados. Torna-se poeta de grande aceitação pelo público, graças ao seu estilo direto, emotivo, quase coloquial. Em 1905, ingressa no serviço diplomático e vai servir na Legação do México em Madrid, onde colabora com várias revistas literárias e se liga aos escritores Pérez Galdós, Juan Ramón Jiménez e Miguel de Unamuno. Em 1918, já poeta consagrado na literatura latino-americana, é nomeado ministro plenipotenciário para a Argentina, Paraguai e Uruguai. Ao assumir o cargo, faz uma escala no Rio, onde é recebido com grande honra pelos intelectuais da época, que até organizam um concurso para traduzir seu poema “Covardia”. Amado Nervo morreu em Montevidéu em 24 de maio de 1919, tendo o governo uruguaio decretado honras de ministro, bandeiras a meio pau e salvas de canhão. Em novembro, seus restos mortais foram transladados ao México, onde grande multidão seguiu seu féretro até a Rotunda dos Homens Ilustres.
UMA HISTÓRIA DE AMOR
Em 31 de agosto de 1901, quando correspondente jornalístico em Paris, Amado Nervo conheceu Ana Cecilia Luisa Dailliez, o amor de sua vida. Eis como ele próprio descreve o encontro: “Eu ia à procura de uma garota do Bairro Latino [Quartier Latin] (…) A moça não compareceu ao encontro e, ao contrário, a mão misteriosa que tece os destinos, nos pôs, a Ana e a mim, frente a frente. Ela passeava com uma irmã e, como soube depois, havia saído aquela noite impulsionada por um tédio tão grande quanto o meu. (…) Nossa simpatia foi imediata,mas apesar disto aquela alminha ingênua e temerosa resistia em entregar-se. A vida havia sido sombria para com ela e por isso tinha medo. — Não sou mulher por um dia — disse-me enérgica, mas sorridente. — Então, por quanto tempo? — perguntei-lhe entre leviano e ansioso. — Para toda a vida. – Pois bem!
Inicia-se o romance, o casal vai morar junto, mas já no ano seguinte Amado teve de regressar ao México, onde permanece até 1904, quando Ana Cecilia vem se reunir a ele. Nomeado diplomata, com posto em Madrid, Nervo segue para lá com a amante e vão residir na calle Baillén, 15, 2º andar Esq. Ana Cecilia leva vida reclusa, não sai nunca de casa em companhia do poeta. Os costumes rígidos da época não permitiam que um diplomata assumisse uma amante ostensiva. Os dois só têm liberdade quando viajam juntos por alguns países da Europa. Em 1911, vai com ela a Paris, donde regressam trazendo para Madrid a filha de Ana, Margarida, então com 11 anos. Tudo indica que havia uma premeditação nesse regresso a três. Não fica claro se só então Amado soube da existência daquela filha. Ao que tudo indica, Ana Cecilia tinha sido uma espécie de jovem avançada para a época e já era mãe solteira quando conheceu o poeta. Consta que era filha de um teósofo, dono de uma livraria especializada em ciências ocultas. Admite-se que Ana tivesse cultura e sensibilidade para ouvir o poeta recitar-lhe os versos de Serenidad. O certo é que sua dedicação a ele, a partir de então, transformou-a numa companheira totalmente sublime e conformada, a ponto de permanecer anos seguidos presa num pequeno apartamento madrilenho para não comprometer a carreira do poeta. Um ano depois, Ana contraí febre tifoide, doença fatal naquela época. Ambos sabem que ela vai morrer, e Amado, que trabalha na Chancelaria do México a três quilômetros dali, faz todos os sacrifícios para estar mais tempo possível a seu lado. Ana lhe pede que nada revele de seu relacionamento a seus superiores, mas o poeta não resiste e lhes confessa o romance moribundo, pedindo-lhes que o deixem sair todos os dias um pouco antes de encerrar o expediente. Ele corria, voava “entre a multidão atarefada“, subia “com ânsia de morte as escadas” e perguntava “com voz trêmula a quem lhe abria a porta: Com vai ela? Como vai?” O médico o desengana, está mantendo a enferma artificialmente, à base de estimulantes. E Ana morre a 6 de janeiro, sendo enterrada no dia seguinte no cemitério de Saint Lazare.
O inconsolável poeta busca refúgio na poesia e nas ciências ocultas. Escreve durante a agonia da amada quase todos os dias, e mais ainda depois de sua morte. Esses poemas, nascidos do mais extremado sentimento de frustração e culpa, mas igualmente de esperança de um dia recuperar a amada, foram reunidos em volume a que deu o título A Amada Imóvel, com a determinação de que só fossem publicados depois de sua morte. Saindo em 1922, esse livro trouxe um novo alento à poesia de Amado Nervo, fazendo dele um dos poetas mais lidos da América latina.
GRATIA PLENA
Tudo nela encantava, tudo nela atraía:
o sorriso, seu gesto, os olhos, seu andar!
O talento da França de sua boca fluía
era cheia de graça, como na Ave Maria:
— quem a viu não consegue esquecer seu olhar!
Ingênua como as águas, diáfana como o dia,
era pálida e loura, — Margarida sem par.
Ao influxo de sua alma celeste, amanhecia,
e era cheia de graça, como na Ave Maria:
— quem a viu não consegue esquecer seu olhar!
Uma doce e amável dignidade a investia
de não sei que prestígio distante e singular.
Mais que muitas princesas, princesa parecia,
e era cheia de graça, como na Ave Maria
— quem a viu não consegue esquecer seu olhar!
Gozei do privilégio de tê-la nesta via
dolorosa, pois nela findou meu desejar.
Ela encheu de cadência do céu minha poesia,
e era cheia de graça, como na Ave Maria
— quem a viu não consegue esquecer seu olhar.
E amei-a muito, muito. Por dez anos possuí-a.
Porém flores tão belas nunca podem durar!
Era cheia de graça, como na Ave Maria,
e a essa fonte de graça, de que ela procedia
retornou… como gota que volta para o mar!
(Março de 1912/ Trad, de Ivo Barroso em dez. de 1947)
EPÍLOGO
Com a morte de Ana Luisa, Amado Nervo temeu que as autoridades francesas lhe tirassem a tutela da enteada, Margarita, nascida em Paris a 7 de setembro de 1900. Eis o que escreve a seu irmão, Rodolfo: “Agradeço-te de coração as frases tão nobres e afetuosas que dedicas a minha Anita. Infelizmente não fui para ela tão bom quanto o merecia essa alma de eleição que por mais de dez anos me acompanhou pela vida sem que um só instante sua ternura empalidecesse. Devia ter-me casado com ela e não o fiz por preocupações e suspeitas que agora à crua luz de minha dor considero indignas e estúpidas. Só encontro um modo de reparar minhas omissões para com ela ao amparar-lhe a filha.” Em abril de 1912, o Tribunal de la Seine o nomeia oficialmente tutor de Margarida, e em 1918 segue em companhia dela e de seu sobrinho, o oficial de chancelaria Rafael Padilla Nervo, para Nova York, onde pronunciará conferências na Universidade de Colúmbia. Cada vez mais obcecado pelas ciências ocultas, Amado vê em Margarida a “reencarnação” de Ana Cecilia, e chega a propor casamento à enteada. A recusa de Margarida leva-a a deixar a companhia do poeta, vindo a casar-se, mais tarde, com o sobrinho diplomata. Em 1970, ambos fundam em Tepic a “Casa Museo de Amado Nervo”, que conserva as obras e objetos pessoais deixados pelo poeta.
Novamente o prazer de ver sua gaveta repleta, Ivo. Infelizmente não consegui pôr, lá, o comentário que vai aqui:
Comovente, o lance do caderno com a tradução que já mostra o Ivo Barroso que conhecemos. E muito estranha a história do poeta, belamente narrada. É muito bom poder abrir sua gaveta de novo e nela encontrar tantas surpresas. Que siga assim.
Meu amigo Waldemar Solha não tem conseguido inserir seus ótimos comentários nos posts da Gaveta e me enviou este via e-mail, que reproduzo com prazer e agradecimentos.
Ivo