A dramaturgia de Bertolt Brecht é a bem dizer familiar ao público brasileiro. As obras-primas de seu “teatro épico”, a começar por A Alma Boa de Set-suan, foram quase todas encenadas entre nós: Mãe Coragem e seus filhos, Os Fuzis da Sra. Carrar, O Sr. Puntilla e seu criado Matti, O Círculo de Giz Caucasiano, além de termos tido uma nova montagem de A vida de Galileu. No entanto, a maioria de seus biógrafos e críticos (viz. John Willet, Martin Esslin, Frederic Ewen e Max Spalter) consideram-no antes de tudo um poeta que procurou expressar-se através do teatro na convicção de que esse meio era mais eficiente que o livro para despertar nos espectadores uma reação perdurável, capaz de os levar a “agir no dia seguinte”. No que respeita à sua obra poética, o público brasileiro também não está de todo carente de traduções, embora um ensaísta por dentro como Otto Maria Carpeaux considere a poesia de Brecht “intraduzível” até mesmo para “qualquer dos estilos da poesia alemã”, já que seus versos “não são barrocos, nem clássicos, nem românticos, nem ‘modernos’, parecendo-se com as baladas populares que se vendem nas feiras, com nursery-rhymes, canções roucas em igrejas rurais, ‘cantigas de desafio’ de gente do povo: em metros irregulares, às vezes duramente rimados”. Ao que nos consta foi Geir Campos, também tradutor da peça A Alma Boa de Set-suan, o primeiro a apresentar uma antologia poética de Brecht entre nós (Poemas e canções, Civilização, 1966). Além dele, Arnaldo Saraiva (em Portugal) e Edmundo Muniz organizaram coletâneas posteriores e há traduções de poemas avulsos devidas a Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo, R. Magalhães Jr., Haroldo de Campos, Leandro Konder, Roberto Schwartz, Fernando Peixoto, Lya Luft, Gilda Oswaldo Cruz e outros. Mas ninguém excedeu em número e dedicação a Paulo César de Souza que, desde 1986 , vem nos apresentando um exaustivo panorama da poesia brechtiana, agora refundido sob o selo da Editora 34. A refusão, no caso, consistiu na supressão de dez poemas da juvenília brechtiana e, pelo visto, o livro ficará mais expressivo se, em próximas edições, o tradutor proceder a cortes ainda mais incisivos.
Na verdade, Brecht que deixou cerca de 2.250 poemas, alongados em três dos 20 volumes de sua Gesammelte Werke (Obras reunidas), na edição da Suhrkamp de Frankfurt, publicou em vida apenas três livros de versos: Die Hauspostille (qualquer coisa como Breviário Doméstico, aqui traduzido por Manual de Devoção) em 1927, Lesebuch für Städtebewohner (Manual para os habitantes das cidades) em 1929 e Svendborg Gedichte (Os poemas de Svedeborg, nome da cidade dinamarquesa em que esteve exilado de 1933-41) em 1939. Os seus inumeráveis outros poemas apareceram em publicações avulsas, surgiram como canções e trechos entranhados em suas peças teatrais ou foram publicados postumamente. Uma coletânea de poemas ditos eróticos, exuberantemente exaltados por Walter Benjamin, mas de todo inócuos para o leitor moderno, só foram reunidos como um todo em 1997 (e traduzidos em Portugal, no ano seguinte, por Aires Graça, Editorial Bizâncio, Lisboa).
Diante dessa vastidão poética, andou bem o organizador e tradutor destes Poemas 1913-1956 em selecionar apenas 260, que representam apenas algo acima de 10% do conjunto, mais que suficientes no entanto para dar ao leitor uma idéia da complexidade psicológica do pensamento dialético de Brecht. Sem deixar de registrar os arroubos iniciais em que as influências literárias estão patentes, a coletânea preserva com acerto os momentos estelares da poesia brechtiana, de consumada originalidade pelo seu tom ríspido e pelo desprezo aos convencionalismos do fazer lírico. Acerta em priorizar os poemas curtos, impactantes, de acerba ironia, beirando o poema-piada pelo seu humor contundente. Mas era fatal que boa parte do volume registrasse o que se poderia chamar (em terminologia brechtiana) Lehrstücke (“textos educativos”), como em suas peças, de registro um tanto discursivo, veiculados numa linguagem que hoje nos pareceria pouco aliciante face aos acontecimentos políticos que marcaram este fim de século. Se temos na “Canção Vespertina do Senhor” aquele gigantische Darmgeräusch que não passa de um grotesco (intencional ou não) arremedo do dernier couac de Rimbaud; se as nuvens dos Pequenos poemas em prosa de Baudelaire sofrem uma trucagem teatral na Recordação de Marie A., também nos deparamos com os momentos de genuína individualidade poética (por ex. Verwisch die Spuren! Apague as Pegadas), que conferem a Brecht um inquestionável lugar no topo de linha da poesia alemã. Quanto ao excesso de poemas “edificantes” e “doutrinários”, louve-se a rara probidade do tradutor quando diz em nota final do livro: “Um número considerável de poemas formalmente perfeitos dificilmente resistiriam à passagem para a nossa língua, ao menos pelas mãos deste tradutor. Daí que a tendência, nas edições estrangeiras, é fazer ressaltar mais ainda a poesia política, em detrimento das outras. A tradução buscou preservar a concisão e a simplicidade brechtianas, a concretude dos objetos, a nitidez de contornos. Como descendente de camponeses, para ele pau era pau, e pedra, pedra”. O tradutor a quem o público deve esta antologia, Paulo César Lima de Souza, cujos antecedentes poéticos desconhecemos, mas cuja dedicação a Brecht se patenteia com esta e outras traduções em prosa, dele e de Nietzsche, certamente conseguiu atingir o nível a que se propôs. Embora, às vezes, fiquemos na dúvida se Brecht, por mais terra-a-terra que desejasse fazer sua linguagem, chegasse a escrever lhe denunciar e lhe entregar (estrofe final do poema Apague as Pegadas) num evidente atentado à regência verbal.
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Um dos mais famosos poemas de Brecht traduzido por Joaquim Cardozo
O VOSSO TANQUE, GENERAL, É UM CARRO FORTE
Derruba uma floresta, esmaga cem
Homens.
Mas tem um defeito
– Precisa de um motorista,
O vosso bombardeiro, general, é poderoso:
Voa mais depressa do que a tempestade
E transporta mais carga do que um
Elefante.
Mas tem um defeito
– Precisa de um piloto.
O homem, meu general, é muito útil: Sabe voar, e sabe matar. Mas tem um defeito
– Sabe pensar.
Trad. Joaquim Cardoso
Caro Ivo
na poesia começei lendo BERTOLT BRECHT tanto teatro quando poesia depois me distanciei, e continuo distanciado. Para mim é passado.
fraterno amigo vitoriano
Eric Ponty
Caríssimo Ivo Barroso.
Bertolt Brecht assim como Hanns Eisler nunca perecerão. Formaram, formam e continuarão sempre a formar gerações de talentos na literatura, na composição músical, no teatro, enfim na cotidiana vida intelectual. Críticos da miséria cultural da Alemanha nazifascista, os dois se engajaram no combate diuturno contra as ditaduras fascistas européias através da caneta, da pena, no teatro, na prosa e verso, na beleza musical erudita, em palestras nos Estados Unidos onde viveram e de onde Eisler foi depois expulso pela onda macartista nascente.
A Escola de Frankfurt, liderada nos Estados Unidos por Adorno e Max Korkheimer, encontrou em Bertolt e Hanns incansáveis batalhadores. Sábios rebeldes jovens escritores, poetas e compositores, os dois caminharam juntos.
Muito devo a Brecht pois meu encontro com a grandiosa obra de Eisler se deu
mais tardiamente. Não cito aqui Brecht pois conhecido já o é o Mestre dos leitores, e agora com a mostra brechtiana do Ivo Barroso o monstro sagrado fica mais ainda conhecido, entretanto, a obra de Hanns Eisler deve ser difundida, além de fenomenal obra literária, Eisler é considerado o grande compositor do séc. XX ao lado de Bartok, Schotakovski, Strasvinski.
Parabéns sempre ao Mestre Ivo Barroso, incentivador intelectual do mecenato
de Cervantes no Brasil.
Caro Francisco de Assis Cortez Gomes,
é Adorno que nunca perecerá. Li aquelas coleções de Bertolt na minha juventude com todo aquele expressionismo alemão, que me desculpe a opinião singela, mas me parece datado,e, Otto Maria Carpeaux talvez tenha razão pois Brecht tenha substãncia ou imanência em alemão. Em português parece muito esquematico todo aquele distanciamento brechiano, mas um poema dele ainda mora no meu coração:
No Segundo Ano De Minha Fuga
No segundo ano de minha fuga
Li em um jornal, em língua estrangeira
Que eu havia perdido minha cidadania.
Não fiquei triste nem alegre
Ao ver meu nome entre muitos outros
Bons e maus.
A sina dos que fugiam não me pareceu pior
Do que a sina dos que ficavam.
com apreço
eric