(é chão do tempo passado)
é chão
e o chão da lembrança
não é branco
como a folha
branca
o chão da lembrança
é de húmus
onde mórbidas minhocas cavam túneis
o chão da infância
nasce no quintal
em que teus dedos
buscam tesouros
inúteis
e acaba na curva do rio
turvo
Turvão
onde as águas
vão
o lio das águas
no vão
da ponte o limo
lambe
os barrotes
a braúna dos barrotes
barrentos
onde as águas (rotas as águas) rodam
o redemoinho das águas em roda dos barrotes
o rio rói
a rigidez
da rota
em remansos
mais densos
onde dançam
à tona estranhos tons de traíras palpáveis
promessas de peixes
Súbito o arranque
lambaris beliscam
anzóis que ferem
fulgurâncias
varas pênseis arremetidas em lança
a dança do dorso
a guerra das guelras
(duelos nas tardes domingueiras) e em teus olhos
lembras-te? chispas que buscam
o anseio dos últimos estremeções
no estômago do embornal
e sentem a prata perder
o brilho da briga
o odor da morte
a morgue da fieira
E levas contigo para casa
nos dedos
e dentro
o cheiro
que unta as tuas mãos que
entra em tuas unhas que
penetra em ti em tudo o que
tocas se transforma em culpa
o cheiro do ser que doravante
deténs mas que se deteriora
e em ti não há nada que possa
não há força capaz de novo
devolvê-lo ao rio e mesmo que
o atires n’água é o dorso detrito
que desce simples feixe de excamas
na lama espúria deste rio
Este rio
sobre este rio
(Se eu desejo uma água na Europa
é este rio onde uma criança debruçada e
cheia de tristeza deixa correr
não frágeis barcos
mas versos no papel)
sobre este rio
que me reflui à mente
escrevo para lavar-me
de seu carma
da camada imunda
de sua lama
sua lâmina
anzol que fisga na lembrança
o fusiforme fio
de esquecida escama
Este rio
inútil lutar contra este rio
suas águas não correm
nem há barcos
as margens são apenas reticências
o curso estagnado nem é rio
poço talvez
tão lá
metido na memória que
é quase mina mas não mana
como aquela que brota em nossa sede
antes cisterna antes intestina
a mina intemporal contida num
anel de premência
mina estanque
mina estado
ó Minas
Ó rio
ria lia
que loas
voas
sobre babilares sobre lombas
varas
quintais que se desintegraram
agrário
rio que regas arrozais
rasgas ervais
ó vário
inútil pensar que estejas sepultado
não te vejo mas
corres subterrâneo ali onde menos
espero
(vi-te no Tejo te vi no Egito
um dia em Paris em plena ponte
d’Iéna em pleno Sena
havia um pôr-do-sol em Taormina e vi-te)
Inútil pensar que este rio
se apaga com a idade
se dilui pelos caminhos
se desintegra em novas paisagens
ele corre dentro de nós
é pertinaz como o vírus
nossa sífilis
corta o nosso sangue em cruz ilhadas
ri-se do ríctus de nosso riso
trai-se em nossa voz no acento denso
de nossa fala
no perrengue vocabulário de nossos
termos us-uais
Sobre este rio
venho depor
(não nos salgueiros — que nunca teve
mas nas tabôas
nessas touceiras de foguetes)
venho depor
porque inútil
venho depor
porque cediça
a lira com que cantei
(como o rio já não corta a cidade
empurrada para trás de papéis
rascunhos recolhidos a pastas
como o rio relegada aos subúrbios
patrimônios onde apenas se vai
nos dias de finados tumba sobre
a qual as pombas não trafegam
como o rio acanhada na pergunta
por livros que não se publicaram
como o rio é certo inda uma vez
latente na memória mas amarga
em suas águas não potáveis na
potassa de sua poluição de co-
quetéis e somas televisivos
como o rio um fio que entanto
se obstina — animal que arreganha
para a morte — em dar seu urro
inda que sombra de berro só gemido
inda menos que luz um só
soluço)
No filme em que agora estou trabalhando como ator – Era uma vez Verônica, de Marcelo Gomes ( cujo longa anterior acaba de ser considerado o melhor, nacional, do ano passado, pela BRAVO) estou aprendendo, a duras penas, a ser cotidiano, o mais simples possível. Isso rendeu um trabalho enorme para o preparador de elenco, Pedro Freire ( diretor do premiado curta O Teu Sorriso, com Paulo José e Juliana Carneiro da Cunha). Pois bem: que aula maior do sublime na simplicidade do que esta, sua, Ivo? Por sinal, vivi cena quase igual a essa, que você narra, quando menino, em Sorocaba, interior paulista, quando pesquei um lambarizinho no riacho Supiriri, na parte baixa da ladeira em que minha casa ficava. Ao inicial triunfo pela proeza seguiu-se o desespero pelo desespero do peixe, a aflição por livrá-lo do anzol terrível e de livrá-lo do sufoco, da “falta de ar”, jogando-o de volta à água. Décadas depois, no alto sertão paraibano, me vi com uma caça na mira, em meio à caatinga, e não tive coragem de disparar, depois de sentir novamente a angústia infantil ante o lambari. O mesmo senti – como você – ante a necessidade de reagir à truculência da ditadura… sem ter qualquer propensão guerrilheira. Tive inveja dos que lutavam no Araguaia e em Caparaó, muita vergonha por ter permanecido na vida pequeno-burguesa de funcionário do Banco do Brasil. Disso me surgiu um romance – A Batalha de Oliveiros, prêmio INL 1988, publicado pela Itatiaia, de seu estado de Minas, que jamais distribuiu o livro no país, o que – ao fim e ao cabo – considerei… bem feito.
A diferença entre nós, Ivo, é que você teve a genialidade de produzir esses versos, de que gostei muito, e eu… nada. Ah se eu tivesse feito o mesmo!