VIENT DE PARAÎTRE-IV
À venda, afinal, na Livraria Cultura, a edição de luxo de Razão e Sentimento, comemorativa do bicentenário de publicação da obra. Esta edição especial ilustrada, de capa dura, da Nova Fronteira (2012), reproduz as gravuras originais de Hugh Thomson e traz, como adendo, capas coloridas de várias edições da obra pelo mundo afora.
A edição brasileira conta com uma apresentação de Leonardo Froes, a história da composição do livro escrita pela famosa janeite Raquel Sallaberry e o artigo O suposto formato epistolar de Razão e Sentimento, do crítico literário inglês, D.H. Harding, especialista em Jane Austen.
FIELDING: A INSPIRAÇÃO EM CASA
Para o público brasileiro, o nome de Henry Fielding (1707-1754) está definitiva (e quase exclusivamente) ligado ao seu romance “As Aventuras de Tom Jones”, que teve entre nós inúmeras traduções e edições sucessivas (identificáveis desde 1964, sendo que só do Círculo do Livro conseguimos arrolar 17 delas, a partir de 1980). É possível que essa aceitação do livro durante tantos anos seguidos tenha sido em parte alavancada pelo sucesso do filme de Tony Richardson, de 1963, com Albert Finney no papel principal, sendo que o take da ceia, em que este contracena com Joan Greenwood, acabou virando estereótipo, imitada até hoje por cineastas de várias escolas e países. Mas o primeiro romance de Fielding, que lhe garantiu um lugar de destaque na literatura inglesa, “A história das Aventuras de Joseph Andrews e seu Amigo o Senhor Abraham Adams”, que trazia originalmente o subtítulo de “Escrita à imitação da maneira de Cervantes, autor de Dom Quixote”, permanecia inédito entre nós, conforme apurou o tradutor e introdutor da obra, Roger Maioli dos Santos, na exuberante apresentação deste atraente volume da Ateliê Editora, associada à Unicamp, na Coleção Clássicos Comentados.
É possível que este aparente passar ao largo dos nossos editores em relação às aventuras de Joseph Andrews se devesse à falsa suposição de que o livro fosse apenas a mera transição para o Tom Jones, um simples exercício preparatório, facilmente descartável do ponto de vista editorial, já que seria logo eclipsando pelas bombásticas aventuras do segundo. Mas sabe-se hoje que a narrativa pretendia ser, e de fato acabou representando na história literária, muito mais do que um simples estágio de aquecimento para a obra principal. Depois de tentar o teatro com algum sucesso, interrompido pela Lei do Licenciamento Teatral, de 1737, que coibiria a apresentação de suas peças politicamente polêmicas, Fielding inicia em 1741 sua carreira literária com uma paródia (“An Apology for the life of Mrs. Shamela Andrews”), em que, tomando carona no êxito do romance “Pamela” (1740), de Samuel Richardson (1689-1761), critica de maneira contundente o puritanismo da época e a hipocrisia moral do autor. Vampirizando os personagens de “Pamela”, cujo procedimento ele contrasta e subverte, Fielding age de maneira simplesmente imitativa, sem qualquer laivo de criatividade. A heroína de Richardson, Pamela, é uma jovem criada que se defende heroicamente das investidas eróticas do patrão viúvo e acaba tendo sua “virtude recompensada” ao conduzi-lo ao casamento; Fielding põe em cena, em seu panfleto satírico, uma criaturinha matreira que namora o pároco local e simula virtude para seduzir o patrão, a fim igualmente de levá-lo a casar-se com ela. A sátira não teve o êxito editorial imaginado por Fielding, que esperava com ela sair-se das constantes dificuldades financeiras em que vivia. Talvez por isso, tenha voltado, menos de um ano depois, a reelaborar o tema de Pamela, desta vez criando um personagem próprio, Joseph Andrews, embora ainda não de todo desvinculado de Richardson, pois se trata do “irmão de Pamela”, igualmente virtuoso e que foge aos avanços sedutores de sua patroa, a sra. Booty, tia do fidalgo que se casara com Pamela. Mas neste caso as “apropriações” param por aí: as alusões a Richardson surgem apenas como referências identificáveis, pois os personagens de Fielding adquirem vida própria energizados pelo seu poder narrativo através da invenção de intrincadas aventuras, como que inaugurando o gênero “on the road” na literatura inglesa do século XVIII. Joseph Andrews extrapola as dimensões da crítica e da caricatura para assumir assim a forma de uma obra autônoma e criativa. Além disso, o mestre-mentor e companheiro de viagem de Joseph, o páraco Abraham Adams, dono de vasta cultura e não menor distração mental, propicia ao autor momentos de reflexão filosófica, com debates sobre a moral e o dever, a virtude da caridade, tema recorrente em Fielding, e demais pontos sensíveis à sua reflexão sempre aguda. Escrito, segundo o próprio autor, sob a inspiração de Cervantes, o livro deve muito ao autor de Dom Quixote pelo que tem de ironia, de autogozação, de gratuidade dos eventos e, principalmente, do comparecimento destacado de figuras singulares e da gente do povo – o que contrasta com os romances da época em que se distinguiam apenas os vultos principescos ou das classes abastadas.
Os leitores de Tom Jones certamente encontrarão nestas aventuras de Joseph Andrews algo do timing narrativo que se tornaria marca tradicional de Fielding, contrabalançado aqui pelas digressões do desligado pároco de província, Abraham Adams, que segue viagem para Londres a fim de vender seus volumes de sermões, mas se esquece de os levar consigo. O aparente desleixo da narrativa é largamente compensado pela precisa construção deste personagem que, em muitos trechos, ocupa a parte principal do livro. Seu otimismo ingênuo, diversamente do de Pangloss, diante dos percalços do mundo ou da ofensiva dos homens não hesita em valer-se da força dos punhos e da precisão de seu cajado de macieira.
Se o intuito de Fielding era o de ganhar algum dinheiro com seu Joseph Andrews as prospectivas desta vez se realizaram. Saindo em fevereiro de 1742, em dois volumes, em junho já via sua segunda edição e, em março do ano seguinte, a terceira, com seu nome agora figurando na capa. Era a primeira vez que, sempre levando vida desregrada, Fielding podia contar com algum dinheiro. Aos 11 anos, ao perder a mãe, entra com seus irmãos mais jovens na posse da fazenda que lhes coubera por herança, mas o pai, que logo volta a casar-se, em breve não só dissipa a sua parte como a dos filhos, daí resultando um processo judicial. Aos 18 anos, Fielding pretende dar um golpe do baú, mas vendo-se repudiado pela futura noiva, uma rica herdeira, tenta em vão sequestrá-la. Parte para estudar letras na Universidade de Leiden, na Holanda, mas tem de interromper o curso em função das dívidas ali contraídas. O pai, que se enviuvara pela segunda vez em 1727, volta a casar-se, agora com uma viúva rica (o viés de caça-dotes era certamente um traço de família). Em 1734, Fielding casa-se com Charlotte Cradock, com quem tinha fugido e, cerceado em sua atividade de autor teatral, inicia-se na carreira de rábula com variadas passagens pelo jornalismo. Em novembro de 1740 o pai é preso por dívidas e, enviuvando-se novamente, volta a casar-se na prisão, onde morre, meses depois, sem deixar ao filho nada senão algumas dívidas. É por essa época que surge o Joseph Andrews, livro que veio tirá-lo das dificuldades mais prementes. Em 1744, morre sua esposa Charlotte, e Fielding se casa, dois anos depois, com sua ex-criada Mary Daniel, num autêntico desfecho a la Ricardson. Por estes lances esquemáticos, pode-se admitir que Fielding tirava da própria vida (e principalmente da de seu pai) a inspiração para as aventuras de Joseph Andrews que prenunciaram as de Tom Jones. A partir daí sua vida começa a estabilizar-se, ele ganha prestígio como magistrado e atua de maneira eficiente no combate à criminalidade em Londres. Com a saúde abalada (provavelmente em decorrência de excessos), busca melhores ares em Portugal numa viagem narrada em “Journal of a Voyage to Lisbon”, que será postumamente editada, vindo a falecer a 8 de outubro em Junqueira, a 35 km da cidade do Porto, no norte de Portugal.
(Publicado em Prosa & Verso de 17.11.2011 com o título A boa ventura de Fielding)
Querido senhor Ivo,
é uma honra participar de uma publicação comemorativa de Jane Austen sendo uma tradução sua!
um abraço, raquel
Prezado Ivo, tenho certeza que é uma edição muito linda! Parabéns!
Olá Ivo Barroso,
A edição de Razão e Sentimento é realmente magnífica. Não sei se o senhor vai lembrar, mas na sua sessão de autógrafos do O corvo e suas traduções, livro o qual o senhor organizou,lá na Travessa do Leblon, havia uma menina na fila que, impertinentemente, perguntou sobre sua tradução de Razão e Sentimento… pois é, essa menina sou eu e gostei tanto da sua resposta que publiquei um post num blog: http://www.janeaustenbrasil.com.br/2012/05/sensibilidade-de-ivo-barroso.html
Espero que goste!
Abs