Escrever a sequência de um romance famoso é carimbar um passaporte para o fiasco. Em 1991, Alexandra Ripley (1934-2004) publicou uma “Scarlet”, que trazia o ostensivo subtítulo de “uma sequela a E o vento levou… de Margareth Mitchell”. Margareth, já milionária com o sucesso de seu livro, se não tivesse falecido em 1949, atropelada por um táxi, nem precisaria reclamar da “carona” que Alexandra quis pegar em seu romance: a crítica se incumbiu de demolir a nova Scarlet e os leitores, a bem dizer, foram unânimes em achá-la desprezível. Como seria possível emprestar sobrevida a personagens tão marcantes quanto Scarlet O´Hara e Rhett Butler, principalmente depois que Victor Fleming e O. Selzinick os imortalizaram nas figuras de Vivien Leigh e Clark Gable no filme de 1939, três anos depois da publicação do livro, best-seller que já havia vendido um milhão de exemplares só no lançamento? O livro de Margareth Mitchell acabava na frase famosa de Scarlet: “I´ll think about that tomorrow” (algo como “Amanhã eu penso nisto” ou “Amanhã é um novo dia”) – e não havia nada mais a dizer.
Recentemente, um escritor sueco, Frederik Colting, sob o manhoso pseudônimo de J. D. California, também teve o descaramento de lançar um “60 Years Later: Coming through the Rye”, em que dá sequência às aventuras de Holden Caulfield, personagem criado por J. D. Salinger em The Catcher in the Rye (no Brasil, “O Apanhador no Campo de Centeiro”), livro carismático da juventude mundial dos anos ´50 e reverenciado até hoje. Além disso, o livro de Salinger teve um revival (trágico): foi encontrado no bolso de Mark Chapman, assassino de John Lennon, naquele 8 de dezembro de 1980. Apesar de seu isolamento voluntário, Salinger protestou na hora e com toda a razão, alegando plágio e usurpação de direitos autorais. A justiça dos Estados Unidos proibiu a publicação do livro por lá, embora ele já esteja circulando na Inglaterra. As críticas iniciais (raríssimas) indicam mais uma tentativa frustrada de continuação.
A nossa querida Jane Austen, como não podia deixar de acontecer – ela que recentemente andou sendo até vampirizada pelos mash-ups zumbínicos – parece um prato feito para esses aproveitadores do talento alheio. Seus quatro romances já foram vítimas de sequelas ou continuações, algumas das quais tão descaradas que utilizam os próprios nomes dos personagens austenianos para rechear suas narrativas medíocres. Se algumas adaptações cinematográficas realizaram o milagre de dar forma humana aos personagens de Jane – como a exemplar realização de Ang Lee-Emma Thompson com Sense and Sensibility – já a reencarnação da forma literária – o famoso estilo Jane Austen – parece impossível de acontecer. Quem seria capaz de ressuscitar e continuar dando vida literária a Marianne e Elinor, a Willoughby e ao coronel Barton, a Emma Woodhouse e a Harriet Smith, sem falar no trêfego reverendo Mr. Elton? Jane Austen é um patrimônio histórico e cultural, cuja obra devia ser tombada e intocável por ser motivo de um culto praticamente mundial. No entanto, a par das homenagens que lhe são condignamente prestadas (como esta a que nos vamos referir), há sempre a ameaça dos sequenciadores que a perseguem para se aproveitar de sua obra e, mais indigno ainda, surgem os vilipendiadores que tentam denegri-la.
No princípio deste ano, a cidade de Nova York prestou-lhe homenagem com uma grande exposição na Morgan Library & Museum, na qual se podiam ver além de livros de sua biblioteca ou que influenciaram seus trabalhos, também objetos de uso pessoal, primeiras edições de seus romances e até mesmo o único original existente de uma obra sua, Lady Susan, que tem a heroína mais maquiavélica de toda a obra da autora. Como brinde especial aos visitantes, a galeria conseguiu trazer a famosa gravura de William Blake, Portrait of Miss Q. que teria lhe inspirado a criação de Jane Bennet, personagem de “Orgulho e Preconceito”. Das cerca de 3000 cartas que teria escrito, em sua maioria à irmã, Cassandra, esta incinerou a grande parte com receio de que seu conteúdo pudesse ferir a reputação da família; delas, apenas 160 sobreviveram, 51 das quais foram expostas na Morgan. Algumas, aliás, bastante curiosas, como a que Jane escreveu à sobrinha de 8 anos, em que todas as palavras estavam grafadas de trás para diante (por exemplo raed=dear) formando um aranzel ilegível.
Mas na esteira de uma bela homenagem, surgem explorações e até achaques.
(É o que veremos a seguir).
[Para curtir em sua completude a exposição da Morgan, acesse:
* – Morgan Library and Museum
Exhibitions
Past
– (9º item) A woman´s wit: Jane Austen´s Life and Legacy
(see online exhibition) Aí veja tudo:
filme: The divine Jane
First seven letters
Selected imagens JA´s writing materials]
Caro poeta,
inspirada no senhor tentarei escrever, ainda este ano, sobre os livros que tem como tema Jane Austen e sua obra.
Como já lhe contei já li livros alguns que não obra-primas mas homenagens carinhosas a obra de Jane. Mas outros que basta ler a sinopse já podemos vislumbrar o que o senhor bem coloca como “achaques”!
um abraço, raquel
Prezado Ivo,
Excelente artigo, jamais leria essas continuações de autores inescrupulosos. Também nunca li nenhum mash-up (tenho uma filha de 10 anos e ler Harry Potter – perdoem-me os que gostam da autora – já foi mash-up suficiente para mim).
Eu gostei muito do vídeo “The divine Jane”.
Obrigada,
Marcia.
Caro Ivo
Parabéns pelo artigo, não consigo aceitar nenhum marsh-ups, ver a obra de Austen deturpada c/ monstros marinhos e zumbis já era difícil e agora temos que aturar tal prática, com os grandes nomes da literatura brasileira.
Abraços, Cleide
Acho muito triste e estúpido, quando inventam de criar
novas continuações ou tramas para histórias clássicas. Geralmente ficam mal escritas e nunca chegam aos pés da obra original.
Adorei o artigo.
Um abraço, Fernanda.