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EU CANTO O CORPO ELÉTRICO – WALT WHITMAN

1

Eu canto o corpo elétrico.

As legiões daqueles a quem amo me envolvem e são por mim envolvidas,

Pois não me largarão enquanto eu não for com eles e atendê-los,

E purificá-los e vigorizá-los inteiramente com o vigor da alma.

Há quem duvide de que todo aquele que perverte o corpo

esconde a si mesmo?

E de que todo aquele que profana os vivos seja tão perverso quanto quem profana os mortos?

E se o corpo não valer tanto quanto a alma?

E se o corpo não for a alma, o que será a alma?

2

O amor ao corpo do homem ou da mulher rejeita explicação, o simples corpo rejeita explicação,

O do homem é perfeito e perfeito é o corpo da mulher

A expressão da face rejeita explicação,

Mas a expressão de um homem bem feito aparece não apenas em seu rosto,

Está em seus membros e articulações, está curiosamente nas articulações de seus pulsos e quadris,

Em seu andar, na postura do pescoço, no fletir da cintura e dos joelhos, que as vestes não escondem,

A forte e suave qualidade que ele tem transluz através do algodão e da flanela;

Vê-lo passar comunica tanto quanto o melhor poema, talvez mais,

E te demoras a contemplar seu dorso, a parte posterior de seu pescoço e as laterais dos ombros.

O espernear e a exuberância dos bebés, os seios e as cabeças das mulheres, as dobras de suas vestes, sua elegância quando passamos pela rua, o contorno de suas formas descendentes,

O nadador desnudo na piscina, visto como se nadando através do

brilho transparente e verde, ou volta a face para cima ou gira

suavemente para cima e para baixo no deslocar da água,

A flexão para frente e para trás dos remadores em seus barcos a remo — o cavaleiro em sua sela,

Moças, mães, governantas, em todas as suas atividades,

O grupo de trabalhadores sentado ao meio-dia com suas marmitas abertas, e as esposas esperando,

A mulher acalentando a criança — a filha do fazendeiro no jardim ou no curral das vacas,

O moço que capina o milharal —  o condutor de trenó conduzindo seis cavalos através da multidão,

A luta dos lutadores, dois jovens aprendizes, já robustos, saudáveis, de boa índole, ali do lugar, lá fora no terreno baldio, ao entardecer, já depois do trabalho,

Os paletós e os bonés atirados ao chão, o enlace de afeto e resistência,

A pega por cima e a pega por baixo, os cabelos amarfanhados a lhes tapar os olhos;

A marcha dos bombeiros em seus uniformes, o movimento dos músculos masculinos através das calças bem talhadas e dos cinturões,

A lenta volta do incêndio, a pausa quando a sineta volta a soar de novo, os ouvidos em alerta,

As atitudes naturais, perfeitas, variadas — a cabeça inclinada, o pescoço curvado, a contagem,

A esses assim eu amo — deixo-me levar, corro livremente, estou no seio da mãe com a a criancinha,

Nado com os nadadores, luto como os pugilistas, marcho em forma com os bombeiros, e paro, presto atenção e conto.

3

Conheço um homem, um fazendeiro comum — pai de cinco filhos;

E neles estavam os pais de filhos — e neles estavam os pais de outros filhos.

Era um homem de extraordinário vigor, calmo, uma pessoa bela,

A forma de sua cabeça, o amarelo pálido e branco de sua barba e dos cabelos, e a expressão imensurável de seus olhos negros — a plenitude e extensão de suas maneiras,

Gente assim é que eu gostava de visitar — era também uma pessoa sensata,

Um metro e oitenta de altura, mais de oitenta anos de idade — os filhos eram robustos, sadios, barbudos, queimados de sol e vistosos,

Eles e as irmãs o amavam — todos os que o viam o amavam;

Não o amavam por tolerância — amavam-no com um sentimento pessoal;

Ele só bebia água — seu sangue escarlate se mostrava através da pele amorenada de sua face;

Caçava e pescava com frequência — ele mesmo velejava seu barco – tinha um muito bom, que lhe fora presenteado por um carpinteiro-naval — possuía caçadeiras que lhe foram dadas por pessoas que o amavam;

Quando ele vinha caçar e pescar com seus cinco filhos e muitos netos, era fácil considerá-lo o mais belo e vigoroso do grupo.

Qualquer um gostaria de ficar muito tempo em sua companhia — sentar-se a seu lado no barco, com seus corpos se tocando.

4

Percebo que  estar com aqueles de quem gosto é o bastante,

Ficar em companhia deles pelo resto da noite é o bastante

Ser rodeado pela carne bela, curiosa, palpitante, sorridente é o bastante,

Passar entre eles, ou tocar todos eles, ou  descansar meu braço mesmo bem de leve em torno ao ombro dele ou dela por um momento — o que significa isto, então?

Não exijo nenhum deleite maior que este — nado nele, como num mar.

Há algo em se permanecer junto a homens e mulheres, a olhar para eles, sentir-lhes o contato e o odor, que agrada tanto a alma,

Tudo agrada a alma — mas isso lhe agrada bem.

5

Eis a forma da mulher;

Uma divina auréola se desprende dela da cabeça aos pés,

Atrai com furiosa e incontestável força!

Sou arrastado por seu hálito como se não passasse de um simples

vapor —  tudo se desfaz em torno menos eu e ela,

Livros, arte, religião, tempo, a terra visível e sólida, a atmosfera e as nuvens, e tudo o que esperamos do céu ou tememos do inferno, agora se desvanece;

Filamentos insanos, rebentos desgovernados dela emanam — a reação igualmente ingovernável.

Cabelos, seios, quadris, curva das pernas, mãos que tombam negligentes, tudo difuso – eu também difuso;

Fluxo ferido pelo refluxo da maré e refluxo ferido pelo fluxo — carne amorosa que se dilata e dói deliciosamente;

Ilimitados e límpidos jatos de amor, quentes e enormes, trêmula geléia de amor, branca ejeção e delirante suco;

Noite nupcial do noivo adentrando seguro e suave pela prostrada aurora;

Ondulando no complacente e desejoso dia,

Perdido na fenda apertada da carne tenra do dia.

Eis o núcleo — assim como a criança nasce da mulher, o homem nasce da mulher;

Eis o banho do nascer — o surto do pequeno e do grande, e novamente a saída.

Não se envergonhem, mulheres – seu privilégio engloba o resto, e é a saída para o resto;

Vocês são as portas do corpo, e são também as portas da alma.

A mulher contém todas as qualidades e sabe condicioná-las — está em seu lugar e movimenta-se em perfeito equilíbrio;

É tudo quanto está devidamente velado, tanto o passivo quanto o ativo;

Feita para conceber tanto filhas quanto filhos, e tanto filhos quanto filhas.

Quando vejo minha alma refletida na natureza,

Quando vejo através da neblina o Ser de inexprimível integridade e beleza,

Vejo a cabeça inclinada e os braços cruzados sobre o peito – estou vendo a Mulher.

6

O homem não é menos alma, nem é mais — também ele está em seu lugar;

Também possui todas as qualidades — é ação e poder;

Nele está o ímpeto do universo conhecido;

O desdém lhe assenta bem, o apetite e o desafio também lhe assentam bem;

As paixões mais amplas e selvagens, deleites que são extremos, dores que são extremas,lhe assentam bem – o orgulho foi feito para ele,

O orgulho explosivo do homem é acalmador e excelente para a alma;

O conhecimento lhe convém — ele sempre o aprecia — toma todas as coisas como um teste de si mesmo;

Seja qual for a busca, seja qual for o mar e a vela, é afinal aqui apenas que ele atira as sondas;

(Onde podia atirá-la senão aqui ?)

O corpo do homem é sagrado, e sagrado é o corpo da mulher;

Não importa quem seja, é sagrado;

É um escravo? É um desses imigrantes de face sombria que acabam de chegar ao cais?

Cada um deles pertence a este ou a outro lugar, tanto quanto os ricos — tanto quanto tu;

Cada homem ou mulher tem seu lugar no desfile.

(Tudo é desfile;

O universo é um desfile, com seu movimento perfeito e ritmado.)

Conheces tanto a ti mesmo para chamares de ignorante ao mais humilde deles ?

Achas que tens direito a um bom lugar, e que ele ou ela não tenha esse direito ?

Achas que a matéria se condensou de seu estado fluido — que o solo esteja na superfície, e as águas corram e a vegetação germine,

Apenas para ti, e não para ele ou para ela ?

7

O corpo de um homem em leilão,

(Pois antes da guerra constumava ir ao mercado de escravos para assistir aos leilões,)

Ajudo o leiloeiro, o desleixado mal conhece o seu ofício.

Cavalheiros, vejam esta maravilha!

Sejam quais forem os lances dos licitantes, jamais serão suficientemente altos para ele;

Para recebê-lo o globo se preparou durante quintilhões de anos, sem um animal ou planta;

Para ele os ciclos recorrentes rolaram unívocos e perfeitos.

Nesta cabeça o instigante cérebro,

Nele e abaixo dele a saga dos heróis.

Examinem estes membros, vermelhos, negros ou brancos — são tão destros em tendões e nervos,

Vamos descobri-los para que os possam ver.

Sentidos aguçados, olhos vivazes, garra, determinação,

Camadas de músculos peitorais, pescoço e espinha flexíveis, carne rija, braços e pernas bem proporcionados,

E outras maravilhas internas.

Dentro corre o sangue,

O mesmo sangue de sempre!

O mesmo sangue rubro corre!

Aqui um coração dilata-se e bombeia, aqui todas as paixões, desejos, alcances, aspirações,

Acham que eles não as têm porque deles não se fala nas salas de visita e nos salões de conferências?

Este não é apenas um homem — este é o pai daqueles que por sua vez serão pais,

Nele está o começo de países populosos e prósperas repúblicas,

Dele surgirão vidas imortais sem conta e incontáveis encarnações e júbilos.

Como sabem quem virá das descendências de sua descendência através dos séculos ?

De quem acham que saíram, se pudessem retroceder através dos séculos?

8

Um Corpo de mulher em hasta pública!

Ela tampouco é apenas ela, mas a fértil mãe de mães;

A portadora daqueles que crescerão para se tornarem os companheiros dessas mães.

Já apreciaram alguma vez o Corpo da mulher ?

Já apreciaram alguma vez o Corpo do homem ?

Não vêem que são exatamente os mesmos, em todas as nações e tempos, em qualquer parte da terra ?

Se algo é sagrado, o corpo humano é sagrado,

E a glória e a doçura do homem o emblema da humanidade imaculada ,

E no homem ou na mulher um corpo são, forte, musculoso, é mais belo do que a mais bela das faces.

Já viram o insensato que perverteu o próprio corpo? ou a insensata que perverteu o próprio corpo dela?

Pois eles não se escondem, não podem esconder-se a si mesmos.

 9

Ó meu corpo! Não ouso fugir ao que preferes em outros homens e mulheres, nem as preferências de algumas de tuas partes,

Creio que tuas preferências se erguerão ou cairão com as preferências da alma, (e que elas são a alma,)

Creio que as tuas preferências se erguerão ou cairão com meus poemas — e que elas são poemas,

Poemas do homem, da mulher, da criança, do jovem, da esposa, do marido, da mãe, do pai, do rapaz, da moça,

Cabeça, pescoço, cabelo, ouvidos, lóbulos e tímpanos,

Olhos, órbitas, íris, sobrancelhas, e o acordar e adormecer das pálpebras,

Boca, língua, lábios, dentes, céu da boca, maxilares, e as articulações,

Nariz, narinas, e o septo nasal,

Faces, têmporas, testa, queixo, garganta, nuca, fossa jugular,

Ombros fortes, barba viril, omoplatas, espáduas, e a ampla arcada do peito,

Bíceps, axilas, o pilão do cotovelo, ante-braço, tendões, os ossos do braço,

Pulso e as articulações do pulso, a mão, a palma, os nós dos dedos, polegar, indicador, as articulações, as unhas,

O amplo arcabouço do peito, os cabelos ondulados do peito, os ossos do peito, as laterais do peito,

Costelas, ventre, espinha dorsal, as junções da espinha,

Quadris, cavidades do fêmur, a força dos quadris, as chãs internas e externas, os testículos, a raiz do homem,

Forte conjunto de coxas, belos suportes do tronco acima,

Filamentos da perna, joelho, rótula, alto da coxa, barriga da perna,

Tornozelos, a curva do pé, o peito do pé, os artelhos, as articulações, o tornozelo;

Todas as atitudes, todas as simetrias, todas as propriedades do meu ou do teu corpo, de qualquer um, homem ou mulher,

As esponjas pulmonares, a bolsa estomacal, os intestinos limpos e saudáveis,

O cérebro com suas circunvoluções na caixa craniana,

O nervo simpático, as válvulas cardíacas, as válvulas palatais, a sexualidade, a maternidade,

A feminilidade e tudo o que é da mulher — e o homem que provém da mulher,

O ventre, os seios, os mamilos, o leite materno, as lágrimas, os sorrisos, o pranto, olhares amorosos, perturbações do amor e excitações,

A voz, a dicção, a linguagem, o murmúrio, os gritos altos,

Comida, bebida, pulso, digestão, suor, sono, passeios, natação,

O equilíbrio dos quadris, os saltos, as flexões, os braços que se curvam para abraçar as pernas,

As modificações contínuas dos movimentos da boca e em torno dos olhos,

A pele, o bronzeado que o sol lhe causa, as sardas, o cabelo,

A curiosa sensação que se tem quando se apalpa a carne desnuda de um corpo,

Os círculos recorrentes da respiração, aspirando e expirando,

A beleza da cintura, e logo dos quadris, e ainda para baixo em direção aos joelhos,

Os pequenos glóbulos vermelhos dentro de ti ou de mim — os ossos e a medula dentro deles,

A fantástica conscientização da saúde;

Ó eu digo que estas não são apenas partes e poemas do Corpo, mas também da Alma,

Digo mesmo que elas são a própria Alma!

1855/1881.

(Tradução de Ivo Barroso encomendada pela diretora teatral Christiane Jatahy para servir de texto em prova de leitura para os alunos de seu curso de artes cênicas e ser publicado nos Cadernos de Espetáculos 2, de setembro de 1996 – Revista do Teatro Carlos Gomes da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro – Vide post de 07.09.2010) 

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A poesia de Whitman teve seu momentum ao ser contraposta ao elegismo espiritual de Rilke, já que formalmente se exprimia pelo mesmo tipo de derramamento versicular-litúrgico, só que exaltava não as qualidades excelsas, angelicais do homem, mas ao contrário sua importância biológica, corpórea, o ser enquanto carne e sangue, movendo-se num meio social. Suas Leaves of Grass, publicadas inicialmente em 1855, só por volta de 1920 começaram a ser criticamente apreciadas em seu país, pois durante as três décadas precedentes o livro foi visto sob as mais severas reservas e objurgações, principalmente pela ousadia de introduzir na linguagem poética referências sexuais até então consideradas tabus.

Críticos-jornalistas (hoje desconhecidos) como Griswold e Higginson chamaram depreciativamente a obra de Whitman de Carniça, e um certo Calvin Beach chegou a sugerir que o título apropriado da obra devia ser O lixo da sarjeta ou Os guinchos do chiqueiro.  O anti-puritanismo de Whitman, amplificado por essas aleivosias, tornou sua obra o alvo de perseguições policiais e chegou a acarretar-lhe a demissão do modesto cargo público que ocupava. A única voz de responsabilidade literária que se ergueu a seu favor na época foi a de Ralph Waldo Emerson, que saudou o livro como “a mais extraordinária peça de inteligência e sabedoria que a América já produziu”, embora ele próprio viesse, em 1860, na terceira reedição ampliada da obra, aconselhar o corte de alguns poemas da nova série pois, segundo ele, o público “não estava preparado para um poeta que celebrava as prostitutas e a masturbação”.

A linguagem absolutamente original de Whitman, que misturava ao vocabulário tradicional canônico da língua inglesa as mais corriqueiras e “a-poéticas” expressões, sua grandiloquência oratória desabrida, a temática polifônica, a franqueza em falar sem embuços sobre os relacionamentos humanos – fizeram de As Folhas de Relva um dos livros mais originais e poderosos da literatura mundial. Hoje o valor dessa obra é chancelado pela soi-disant autoridade máxima da crítica de língua inglesa, Harold Bloom, que não hesita em ver Whitman como centro do cânone literário norte-americano.

Desde muito se esperava a edição completa dos poemas de Whitman em português, e agora [2005], no 150º aniversário da publicação de As Folhas de Relva, a Editora Iluminuras nos oferece os doze poemas iniciais (que compunham a primeira edição), traduzidos por Rodrigo Garcia Lopes, trabalho que embora ainda não ponha o leitor brasileiro diante da obra poética conjunta do bardo americano, pelo menos contribui com uma significativa amostragem dela, acrescida de longo estudo crítico sobre sua importância literária e a vida do autor, que dispensa navegações pela Internet.

O interesse pela obra de Whitman entre nós pode ser assinalado desde 1945, quando Luís da Câmara Cascudo publicou n´A República, de Natal, três artigos que incluíam as traduções dos poemas I hear America singing, The base of all Metaphysics e  For you, o Democracy. Já nessa época, o nosso grande foclorista reconhecia em Whitman “um dos mais difíceis originais para tradução. Um Whitman traduzido é uma diminuição infalível. O grande, imenso poeta, só o será em inglês, na plenitude de sua originalidade poderosa, manejando os recursos do seu gênio, acumulador de nuvens e espalhador de ritmos maravilhosos.”

Seguindo-lhe os passos, Gilberto Freyre, em uma conferência na Sociedade dos Amigos da América, em maio de 1947, referia-se à originalidade e ao pioneirismo daquele “anglo-americano que primeiro exaltou em poema a figura de uma negra” e, analisando a atuação poético-política do vate, dizia que, “não obstante sua confiança no homem comum, Whitman enxergou sempre a necessidade, nos postos de comando – de puro comando, nunca de domínio – do homem incomum.” Toda a digressão de Freyre é focada na conceituação de Democracia e nas interpretações  políticas de Whitman, para quem o “barco democrático não devia ser feito só para os ventos bons”, mas para enfrentar igualmente as tempestades (Ship of the hope of the world – Ship of Promise / Welcome the storm – welcome the trial).  Mas Gilberto Freyre não se inibe contudo  de abordar a questão-chave do homossexualismo de Whitman, como neste trecho: “O que teve parece que foi principalmente a coragem de grandes amizades com outros homens (algumas – admita-se – de remoto ou imediato fundo homossexual) ao lado de entusiasmos por ‘mulheres perfeitas’. O que põe em destaque seu bi-sexualismo de atitude; e o ‘narcisismo’ de exaltar a beleza do corpo humano – a do homem tanto quanto a da mulher – e não apenas a graça e o encanto do corpo da mulher visto com olhos de homem. Um homossexual inveterado dificilmente teria escrito poema tão compreensivo do sexo oposto e, ao mesmo tempo, tão masculino em sua atitude como A woman waits for me. Apenas, a mulher por ele idealizada não era a lânguida, a frágil, a excessivamente delicada das civilizações caracterizadas por um tal domínio econômico do Homem sobre a Mulher em que esta é antes um sub-sexo do que o sexo oposto”.

Ainda no campo das apreciações críticas, o nosso sempre citado Otto Maria Carpeaux, em sua História da Literatura Ocidental, de 1959, estabelece: “Julgava-se ‘Poeta do Povo’, mas nunca foi lido nem querido pelo povo, que não gosta do verso livre e da ‘melodia permanente’. Seja porque o povo teima em adorar a métrica tradicional, seja por qualquer outro motivo que a sociologia da história literária terá que esclarecer, o ‘poeta da democracia’ ficou um ‘poet´s poet´, assim como Verhaeren, Claudel, Romains e todos os inúmeros whitmanianos hispano-americanos”.

Propriamente quanto à tradução dos poemas, as contribuições mais próximas vieram de Oswaldino Marques com seus livros Cantos de Walt Whitman e Videntes e Sonâmbulos (agora reeditado com o título O Livro de Ouro da Poesia dos Estados Unidos, no qual figuram 6 poemas de Whitman traduzidos por Manuel Ferreira Santos, por Cascudo — o já citado O Fundamento de toda Metafísica —, por Emílio Carrera Guerra, por Pompeu de Souza e o próprio Oswaldino). Geir Campos, que já nos dera em 1953 amostras de Rilke, reaparece em 1964 com Folhas de Relva (da Civilização), que na reedição pela Brasiliense traz o título de Folhas das Folhas de Relva (23 poemas) e um prefácio acoplado de Paulo Leminski, alheio à tradução de Geir. Consigne-se ainda o Song of myself / Canção de mim mesmo, em tradução de André Cardoso para a coleção Biblioteca Alumni, da Imago, que, destinada a uso escolar, mantém embora uma linguagem muito próxima do original.

A contribuição mais significativa até agora, em quantidade e qualidade dos poemas traduzidos, se deve à edição da Zahar (1988) de Walt Whitman – a formação do poeta, de Paul Zweig, uma biografia definitiva, em tradução de Ângela Melim, com os poemas citados vertidos por Eduardo Francisco Alves. Grande parte (e sem dúvida a mais significativa) da poesia de Whitman está aí em toda a sua ressonância.

A nova tradução de uma obra poética é sempre louvável pois dela se espera um avanço em relação àquelas que a antecederam, seja no sentido de sua completude ou de uma abordagem diversa ou mais acurada em função do aparato crítico interpretativo superveniente. No caso da tradução de Rodrigo Garcia Lopes, se não podemos falar em completude como esperávamos, já que se restringe aos 12 poemas da edição de 1855,  no que respeita à abordagem muita coisa há que se dizer. O tradutor optou programaticamente por “modernizar” a linguagem do poeta, emprestando-lhe termos coloquiais e mesmo jargões que parecem  destinados a orientar a leitura para um público teen-ager sem grandes compromissos vernaculares. Assim, por exemplo, “few embraces” é traduzido por “alguns amassos”, “the rush of the streets” por “o agito das ruas”, “lack of money” por “falta de grana” e “watching and wondering” pelo um tanto suspeito “sacando e viajando”. É possível que esse tipo de interferência ou re-escrita atualizada do tradutor possa concorrer para uma melhor aceitação da obra por aquele público-alvo, mas se acatarmos a lição de Carpeaux de que Whitman é um “poeta para poetas”, essa opção de linguagem certamente causará estranheza quando cotejada com as frases coloquiais mas sempre no âmbito do idioma-padrão utilizadas por Whitman. A introdução desse tipo de apelo popular não raro se choca com a grandiloquência e pirotecnia vocabular que se vê no original. Salvo esse tipo de discordância, Rodrigo Garcia Lopes soube mostrar na quase totalidade dos versos sua tarimba de tradutor profissional, saindo-se em muitos casos brilhantemente das armadilhas e tonalidades que Câmara Cascudo dizia intraduzíveis. Sirva a edição comemorativa como incentivo aos nossos editores e tradutores para nos trazerem finalmente um Walt Whitman complete and unabridged.

Fomos informados de que a editora Hedra, de S.Paulo, lançará em agosto uma edição completa das Folhas de Relva (edição do Leito de Morte [Deathbed Edition 1892], em tradução de Bruno Gambarotto, a única versão autorizada pelo autor em testamento (e a mais completa).

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Fernanda Montenegro e Jean-Louis Steuerman

Creio que minha primeira incursão pelos domínios teatrais foi quando, a pedido da diretora Chistiane Jatahy, traduzi o longo poema de Walt Whitman, EU CANTO O CORPO ELÉTRICO, para servir de teste de leitura-interpretativa aos seus alunos de teatro, e publicação nos Cadernos de Espetáculos 2, de setembro de 1996.
Já quanto a ENOCH ARDEN, poema romântico de Lord Alfred Tennyson (1809-1892), a história vai mais longe. O texto inglês é de 1864, e com base em sua tradução alemã, feita por Adolf Strodtmann, o compositor Richard Strauss (1870-1909) criou, em 1897, um melodrama para piano e declamação, dedicado a seu amigo Ernst von Possart. Os dois atuaram inúmeras vezes em concertos, executando este que seria o seu opus 38. Ao longo dos anos, vários foram os pianistas e declamadores que se apresentaram nesse tipo de recital e, modernamente, o legendário Glenn Gould e o ator de teatro e cinema, Claude Rains, registram o trabalho num CD.
Para atender a uma encomenda da Interarte, de S. Paulo, fiz a versão do poema obedecendo ao registro da partitura, em que vários trechos foram eliminados, para maior condensação da narrativa. Sua interpretação coube a Fernanda Montenegro, com Jean-Louis Steuerman. ao piano, apresentando-se em duas ocasiões: em 2001, nos concertos BankBoston, e em 2006, no projeto Care Brasil, ambas em São Paulo. Como a tradução permanecia inédita, salvei-a em plaquete e ofereci-a aos amigos no Natal de 2009.
Em 2001, para a grande Exposição Surrealista montada no CCBB do Rio, traduzi, a pedido do prof. Guilherme Castelo Branco, a peça AS QUATRO MENINAS, de Picasso. Interpretada pelas atrizes Suzana Kruger, Ângela Noal, Ludmila Breitman e Maura Baiochhi, e tendo como narrador Sérgio Mambertti, era, como dizia o programa, uma “leitura nos moldes estritamente surrealistas, respeitando as convicções mais marcantes do movimento quanto ao teatro: indiferença com a verossimilhança e com os aspectos formais, desprezo pelas regras de interpretação convencional, preferência pelo humor e/ou inesperado”. As atrizes ora sentavam-se estáticas ora arrastavam as cadeiras pelo palco, voltando a sentar-se às vezes até de costas para os espectadores, que, um tanto estupefatos, se deixavam levar pelas fortes imagens picassianas que em nada ficavam a dever àquelas suas visões de olhos, narizes e artelhos destorcidos… Um verdadeiro painel pintado com palavras que o público só pode contemplar no dia 13 de setembro de 2001. Convívio inesquecível do tradutor com aquelas quatro meninas francesas que não falavam coisa com coisa, mas que tudo o que diziam soava genial. Eta Picasso!
A terceira experiência foi uma ópera – sobre a qual irei falar mais adiante.
E a última, a peça de teatro DOZE HOMENS E UMA SENTENÇA, de Reginald Rose, levada no cinema em duas versões, a primeira, de 1957, dirigida por Sidney Lumet, com Henry Fonda e Lee J. Cobb nos principais papeis, e a segunda, em 1997, por William Friedkin, com Jack Lemmon e George C. Scott. Fiz a tradução a pedido da produtora Ana Elisa Paz, para um espetáculo a ser realizado no CCBB de São Paulo. Traduzir essa peça me deu ânimo para tentar outro texto teatral, a SALOMÉ, de Oscar Wilde, cuja história vale um capítulo à parte.#

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