Por pura arte de Láquesis, fui parar na Holanda, onde atuei de 1968 a 1970 como Adido Comercial da Embaixada do Brasil na Haia (Den Haag, em neerlandês). Além do estimulante trabalho de divulgador de nossos produtos exportáveis, atividade que me levava a conhecer as várias regiões do país, tive a oportunidade de desfrutar de extenso leque cultural, abrangendo os famosos museus holandeses e suas magníficas orquestras sinfônicas. Foi quando ouvi pela primeira vez as sinfonias de Mahler, que o maestro Bernard Haitink estava revivendo no reconstruído (1966) teatro De Doelen, de Rotterdam, dotado da melhor acústica que havia na época. Em Amsterdam, além do Concertgebouw, havia o imperdível museu de Van Gogh, o Rijkmuseum e, ali perto em Otterlo, o Kröller-Müller, com a segunda maior coleção de obras desse gênio, tais os expressivos “Comedores de batatas” (Aardappeleters), de que adquiri algumas reproduções. Mas não precisava sair da Haia para me deparar com os grandes mestres da pintura holandesa. Lá estava o Gemeentemuseum (Museu municipal), onde se podiam ver os quadros de Piet Mondrian, e, enfileiradas em ordem cronológica, as várias transformações por que passou sua árvore impressionista até chegar à sua versão final, cubista, em quadradinhos. Mas o sumo do sumo era mesmo a Mauritshuis (Casa de Maurício de Nassau), onde, entre outras preciosidades, estava exposta a obra-prima de Jan Vermeer, “Vista de Delft” (Gesicht op Delft), que – obviamente como a todo mundo – me fascinou a ponto de ir visitá-la com frequência. Quando estava para voltar ao Brasil, adquiri uma bela reprodução (53X55cm) do quadro, que me acompanhou em todas as minhas deslocações e hoje adorna o hall de meu apartamento no Leblon.
Portanto, muito tempo antes de ler Proust – que li mal, fragmentariamente, e nunca ao todo, na verdade – eu já achava razão em sua célebre frase escrita numa carta a seu amigo Jean-Louis Vaudoyer (Correspondance, tome XX):“La vue de Delft est le plus beau tableau du monde”. E só voltei a me interessar por ele, Proust, quando surgiu, já em fins do século XX, o curioso debate sobre o que seria o “petit pan de mur jaune”, no quadro de Vermeer. O que deu origem a esse debate foi um trecho de “Em busca do tempo perdido”, encontrado no 5º tomo (La Prisonnière), que narra a morte do escritor Bergotte. Ei-lo no original e na tradução de Manuel Bandeira:
« … un critique ayant écrit que dans la Vue de Delft de Ver Meer (prêté par le musée de La Haye pour une exposition hollandaise), tableau qu’il adorait et croyait connaître très bien, un petit pan de mur jaune (qu’il ne se rappelait pas) était si bien peint, qu’il était, si on le regardait seul, comme une précieuse œuvre d’art chinoise, d’une beauté qui se suffirait à elle-même, Bergotte mangea quelques pommes de terre, sortit et entra à l’exposition. Dès les premières marches qu’il eut à gravir, il fut pris d’étourdissements. Il passa devant plusieurs tableaux et eut l’impression de la sécheresse et de l’inutilité d’un art si factice, et qui ne valait pas les courants d’air et de soleil d’un palazzo de Venise, ou d’une simple maison au bord de la mer. Enfin il fut devant le Ver Meer, qu’il se rappelait plus éclatant, plus différent de tout ce qu’il connaissait, mais où, grâce à l’article du critique, il remarqua pour la première fois des petits personnages en bleu, que le sable était rose, et enfin la précieuse matière du tout petit pan de mur jaune. Ses étourdissements augmentaient; il attachait son regard, comme un enfant à un papillon jaune qu’il veut saisir, au précieux petit pan de mur. « C’est ainsi que j’aurais dû écrire, disait-il. Mes derniers livres sont trop secs, il aurait fallu passer plusieurs couches de couleur, rendre ma phrase en elle-même précieuse, comme ce petit pan de mur jaune. » Cependant la gravité de ses étourdissements ne lui échappait pas. Dans une céleste balance lui apparaissait, chargeant l’un des plateaux, sa propre vie, tandis que l’autre contenait le petit pan de mur si bien peint en jaune. Il sentait qu’il avait imprudemment donné le premier pour le second. « Je ne voudrais pourtant pas, se disait-il, être pour les journaux du soir le fait divers de cette exposition. »
Il se répétait : « Petit pan de mur jaune avec un auvent, petit pan de mur jaune. » Cependant il s’abattit sur un canapé circulaire; aussi brusquement il cessa de penser que sa vie était en jeu et, revenant à l’optimisme, se dit : « C’est une simple indigestion que m’ont donnée ces pommes de terre pas assez cuites, ce n’est rien. » Un nouveau coup l’abattit, il roula du canapé par terre, où accoururent tous les visiteurs et gardiens. Il était mort. »
Lendo, porém, num crítico, que na Vista de Delft de Ver Meer (emprestada pelo museu de Haia para uma exposição holandesa), quadro que ele apreciava muitíssimo e julgava conhecer em todos os pormenores, havia um panozinho de muro amarelo (de que não se lembrava) tão bem pintado que era como uma preciosa obra de arte chinesa, de uma beleza completa em si mesma, Bergotte comeu umas batatas, saiu de casa e entrou na exposição. Logo nos primeiros degraus que teve de subir sentiu umas tonteiras. Passou em frente de alguns quadros e teve a impressão da secura e da inutilidade de uma arte tão factícia, e que não valia as correntes de ar e de sol de um palazzo de Veneza, ou de uma simples casa à beira-mar. Enfim chegou diante do Ver Meer, de que se lembrava como sendo mais luminoso, mais diferente de tudo o que conhecia, mas onde, graças ao artigo do crítico, reparou pela primeira vez numas figurinhas vestidas de azul, na tonalidade cor-de-rosa da areia e finalmente na preciosa matéria do pequenino pano de muro amarelo. As tonteiras aumentavam; não tirava os olhos, como faz o menino com a borboleta amarela que quer pegar, do precioso panozinho de muro. “Assim é que eu deveria ter escrito, dizia consigo. Meus últimos livros são demasiado secos, teria sido preciso passar várias camadas de tinta, tornar a minha frase preciosa em si mesma, como este panozinho de muro”. Não lhe passava, porém, despercebida a gravidade das tonteiras. Em celestial balança lhe aparecia, num prato a sua própria vida, no outro o panozinho de muro pintado de amarelo. Sentia Bergotte que imprudentemente arriscara o primeiro pelo segundo. “Não gostaria nada, disse consigo, de vir a ser para os jornais da tarde a nota sensacional desta exposição”. Repetia para si mesmo: “Panozinho de muro amarelo com alpendre suspenso, panozinho de muro amarelo”. Nisso deixou-se cair subitamente, num canapé circular; subitamente também, cessou de pensar que estava em jogo a sua vida e, recobrando o otimismo, disse consigo: “É uma simples indigestão causada por aquelas batatas mal cozidas, não há de ser nada”. Nova crise prostrou-o, ele rolou do canapé ao chão, acorreram todos os visitantes e guardas. Estava morto.
Esta cena, atribuída por Proust a Bergotte, na verdade aconteceu com ele próprio, sem o final fatídico por sorte, mas provavelmente previsto por ele. Em fins de maio de 1921, de acordo com seu biógrafo George Painter, os jornais parisienses anunciaram a exposição no Jeu de Paume de uma coleção de quadros holandeses, cedidos pelo museu da Casa de Maurício, entre os quais estavam a “Vista de Delft” e “A moça com brincos de pérola”, de Vermeer (que Proust grafa Ver Meer). Seus amigos Leon Daudet e Jean-Louis Vaudoyer haviam escrito artigos laudatórios a respeito e, num deles, falava-se de um “pequeno lanço de parede amarelo” no quadro “Vista de Delft”, como sendo “um inestimável espécime de arte chinesa, de uma beleza completa em si mesma”. Proust ficara intrigado, pois julgava conhecer o quadro melhor do que ninguém e, angustioso, deu-se conta de nunca ter atentado para aquele “pedaço amarelo do muro”. Por isso, convocou seu amigo Vaudoyer a levá-lo à exposição e acordou naquele dia às 9 da manhã, hora em que habitualmente ia dormir. Logo à saída, no entanto, sentiu uma espécie de vertigem, mas logo se recuperou e, assistido por Vaudoyer, que lhe notou as mãos trêmulas, pôde ver toda a exposição e, mais ainda, almoçar fora com o amigo. Trabalhando na quinta parte de sua Recherche, Proust transpôs para seu personagem Bergotte não só a angústia da visita à exposição como a frustração de não ter localizado o dramático “pedaço de muro” (ou de parede, mur em francês).
Mas onde estaria localizado, no quadro, o misterioso fragmento amarelo ?
Ao longo do tempo, dezenas de críticos e comentaristas levantaram hipóteses ou preferências sobre sua localização. O quadro vai reproduzido aqui com algumas indicações para você escolher, em sua opinião, a mais provável.