Alguns leitores amigos (e também dois ou três desconhecidos) insistem para que eu republique aqui mais alguns dos artigos políticos que em 1995 escrevi para o Jornal do Brasil. Confesso que a leitura deles me deixa nostálgico, descorçoado mesmo, ao ver que os descalabros contra os quais investíamos naquela época continuam os mesmos ou se agravaram nos dias atuais. Por eles vemos o quanto nós, que nos achávamos argutos e observadores, estávamos enganados, iludidos, ao julgar que havia alguém imune e acima da lama corrupta em que nos afogávamos (e ainda nos afogamos). E, mais, constatar que estamos incorrendo no mesmo equívoco anterior, sendo enganados pela mesma lábia governamental. Em vez de ação imediata, nos oferecem um plebiscito que todos sabem impossível ou extemporâneo. Se o governo tivesse a mínima decência e honestidade, em vez de proteger a indústria automobilista, teria logo votado uma verba para atender à deficiência de nossos hospitais, fornecendo-lhes imediatamente material e gente habilitada. O mesmo para nossas escolas, nossas estradas, etc. etc ou, ainda, reduzido ontem mesmo o número absurdo de ministérios, impedido os pagamento milionários a servidores públicos e algumas das outras medidas urgentes que o povo vem exigindo quase que diariamente nas ruas. Se a palavra final, se as decisões ficarem a cargo do Parlamento é certo que nada se fará como nada se tem feito. Serão promessas, ofertas improváveis e irrealizáveis. Simples estratagemas enquanto esperam a poeira baixar. E tiveram sorte com a próxima visita do Papa, que polarizará as atenções do povo enquanto eles (políticos) se reorganizam para que tudo permaneça na mesma. É triste pensar que só com a força e a violência as coisas podem mudar neste mundo. Mas vamos tentar com a persistência. As passeatas não podem fracassar nem esmorecer. Se, ao republicar esses artigos aqui no blog, nossa intenção foi a de despertar os atuais manifestantes para a necessidade de se pôr um paradeiro definitivo a essas mazelas, cumpre-nos igualmente advertir-lhes das manobras dos políticos em engambelar-nos com algumas promessas inócuas ou enganosas enquanto esperam a “volta ao normal” para permanecerem aferrados às tetas do poder.
Cientistas políticos, chegados ao Planalto, vêm procurando mostrar ultimamente que os escândalos a que estamos presenciando têm sido uma constante na vida do pais, donde se infere que não devemos falar em descalabros do governo Lula, pois tais ocorrências também e verificaram em administrações anteriores. Mas grande parte da população não pensa assim: acha que valeu a pena sair às ruas para exigir o impeachment de Collor — havia não só evidências, mas provas cabais de que a roubalheira andava à solta e a seu comando, logo, era imperativo que o apeassem do posto a que fora levado exatamente para coibir e acabar com as bandalheiras anteriores. Se houve compra de votos na reeleição de Fernando Henrique, foi uma falha dos representantes da nação não denunciá-la ao país e conclamar o povo para dar a ele o mesmo destino que se deu a Collor.
A verdade é que um erro não justifica outro. Não se trata de fazer um teste comparativo de podridões; o importante é acabar com elas. De experiências passadas o Brasil está farto. Não creio que ninguém esteja esperando a volta de Fernando Henrique ” como um novo D. Sebastião”. Ele pertence ao Terceiro Reinado principesco de nossa evolução política. Mas já passou, estamos lá na frente, com um governo socialista e populista, que tem por finalidade resolver os problemas básicos da população, negligenciados por seus antecessores. Foi para isto que o elegemos.
E se esse governo passa a cada dia o atestado de sua incompetência, isto não quer dizer que a ideologia esteja errada, mas sim que foi traída por seus arautos mal se aboletaram no poder. E se os componentes desse governo popular insistem em permanecer nas tocaias do oportunismo, à feição dos grupos anteriores, o negócio é botar essa gente pra correr. Atrás do que lá se foi, há muitos outros indiciados que merecem o mesmo tratamento. O presidente poderia acordar de seu letargo administrativo e dizer a que veio. Em vez de afirmar que ë a maior “autoridade moral e ética para combater a inflação”, devia era pôr na rua todos os seus áulicos que não se acanham em atirar lama sobre o seu governo; pedir, exigir da justiça a shylockiana libra de carne, processar e punir os culpados flagrados em delito; enfim, mudar todos nos ministérios sobre os quais paire alguma pecha comprovada.
O ideal mesmo seria uma limpeza radical, uma varredura para a lata de lixo e não para baixo do tapete: alijar do cenário político as velhas raposas dos conluios, os ratões dos conchavos, as baratas cascudas das falcatruas, os marimbondos das articulações, e até mesmo os pernilongos sanguinários que chegaram ao poder à custa do crime, da violência, do tráfico, do contrabando, da lavagem de dinheiro. Sabemos, no entanto, que a camarilha se autoprotege; numa democracia — que queremos a todo custo preservar — tal limpeza só seria possível por meio de uma reforma institucional: Constituinte neles! Impõe-se um enxugamento dos partidos, uma seleção rigorosa de candidatos, com seus currículos devidamente investigados antes da homologação de suas candidaturas. E, mais que tudo, os olhos agora bem abertos do eleitor.
Tolice falar em “golpe branco” (ou vermelho); ninguém está — graças a um generoso crédito de confiança — querendo “desestabilizar” o presidente. Queremos vê-lo é assumir de fato. Queremos exatamente aquilo que foi conquistado com a sua vitória e agora desvirtuado pela ambição de seu partido. Queremos moralidade na aplicação dos dinheiros públicos, queremos educação, saúde, estradas… Tudo isso nos prometia o PT para chegar ao poder. Agora que lá está, é justo que se venha exigir dele o cumprimento das promessas.
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A OUTRA MARGEM DO RIO
Foto publicada na Folha de S. Paulo do dia 13.07.1994
No dia 13 de junho de 1994, o fotógrafo¬cineasta Hélcio Nagamine fez um flagrante histórico que pode se transformar num símbolo nacional. Em plena campanha para a Presidência da República, Lula da Silva acena para a população de uma vila à beira do rio São Francisco, na Bahia. Em primeiro plano, meio de viés, o candidato está de camisa branca sem mangas, calça cáqui, enquadrado a partir da altura da coxa. O braço esquerdo pende ao longo do corpo, deixando ver nitidamente a falha do dedo mínimo, que se tornaria uma espécie de talismã carismático, sinal identificador de origem, unção do destino. O braço direito está erguido um pouco acima da cabeça; a mão esboça um aceno discreto; há uma fita votiva em torno do pulso levantado. À sua frente, as águas lamacentas do rio São Francisco e, do outro lado, ao longe, na outra margem do rio, uma população ribeirinha, de umas 200 ou 300 pessoas, aglomera-se na faixa assoreada e acena esperançosa para o candidato. A foto lembra vagamente a chegada de Cabral à terra de Pindorama… Foi nessa, ou em ocasião semelhante, que o candidato idealista assim falou ao povo: “Visitando o Nordeste brasileiro, eu comecei a matutar: se foi possível o presidente Roosevelt fazer o Vale do Tennessee ser o que ele é hoje, por que a gente não pode fazer o Nordeste brasileiro deixar de ser a parte pobre e começar a produzir alguma coisa? Ah, tudo bem! Não dá petróleo, não dá gás, mas dá mamona. Então, vamos produzir o biodiesel da mamona.”
O candidato foi derrotado em 94 e novamente em 98, mas há dois anos e meio enverga a faixa presidencial em cima de roupas menos populares. Alcançou o poder, fez novas promessas para esquecê-las em seguida, por utópicas ou inconvenientes, aprimorou-se na arte da oratória, entregou-se ao fascínio da imagem transmitida, virou de repente Luiz Inácio, o presidente do Brasil de exportação, que desfila pelo Arco do Triunfo e se banqueteia com Chirac no Palais de l’Élysée. Pois o símbolo em questão é este: Lula da Silva, você deixou toda aquela gente abanando a mão na outra margem do rio. Você nos deixou, a todos nós, na mão. Não só o projeto do São Francisco foi esquecido; muitos outros, surgidos de seu antigo ideal, logo se estiolaram diante do pragmatismo daqueles que você chama fidelmente de “companheiros”, os mesmos que o puseram num avião e o mandaram para longe, a fim de poderem “governar” o país a seu jeito. O resultado foi este (lamentável): a reincidência no descalabro, os conchavos, os aproveitamentos ilícitos, os apadrinhamentos, as trocas despudoradas, a corrupção, e o grande escândalo final, que promete enlamear ainda mais o país.
Esperava-se que, como aquele outro líder carismático, o sangue do pudor lhe subisse agora às faces e você saísse azorragando os vendilhões. Mas você voltou com a mesma indecisão de sempre, às apalpadelas, ouvindo uns e outros, esperando a opinião daqueles que nos seus ouvidos só poderiam soprar palavras de cautela e de acomodação, deixando-se peitar, tutelar, amedrontar pelos ogres que hoje parecem mandar no país. Todos nós sabemos quanto é difícil criar um líder, um depositário da confiança do povo, alguém que se sonha capaz de medidas realmente de alcance social — enfim, alguém como pensávamos que você fosse. Por isso, é possível que em toda essa escória, nesse mar de dejetos flutuantes, você ainda se salve.