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Posts Tagged ‘tradução da Bíblica’

Publicado pela Gallimard em 1946, chega ao Brasil [2001], na competente tradução de Joana Angélica d’Ávila Melo, este livro que desde muito tem sido, senão a Bíblia dos tradutores, pelo menos um de seus mais frequentados breviários ou altares de culto. Invocando a figura de São Jerônimo, que institucionalizou em latim vulgar os antigos textos do velho e do novo testamentos, Valéry Larbaud — que por sua vez funcionou como uma espécie de São Jerônimo para a tradução francesa de qualidade — aproveita aqui para teorizar sobre os deveres e liberdades daqueles que se dedicam à arte nem sempre aleatória da tradução literária.

A primeira parte do livro é consagrada a comentários sobre a vida e a obra do Santo, mas Larbaud, preocupado em valorizar a produção original de Jerônimo, passa de leve sobre a história que, para os tradutores, teria sido mais didática, ou seja, de como foi feita por este a – digamos – copidescagem dos textos latinos antigos, hebreus e aramaicos que vieram a constituir a Vulgata, recriados numa linguagem que se tornaria a versão definitiva da Bíblia em latim. Larbaud justifica o en passant de sua atitude com a referência de que a enfatização do trabalho de tradutor de Jerônimo em detrimento de sua obra autônoma equivaleria a tratar Baudelaire tão somente como tradutor de Poe e não como o criador inigualável de “As Flores do Mal” — objurgatória improcedente, pois Jerônimo sem a Vulgata seria apenas um escritor menor, ao passo que a tradução para Baudelaire não passou de um “bico” circunstancial em momentos de penúria.

A história se repete em relação ao próprio Larbaud: embora sua obra original tenha certo interesse, mesmo vista do alto de nossa época, seu nome permanece referencial graças ao seu trabalho de tradutor, e sua obra magna nesse campo, à semelhança do mestre patronal Jerônimo, também foi mais um trabalho de copidescagem do que mesmo de tradução, pois embora muitos pensem que ele tenha traduzido o “Ulysses”, Larbaud na verdade foi o autor da apresentação do livro e incansável revisor do texto de Auguste Morel e Stuart Gilbert, de sua equipe, assessorado pelo próprio Joyce, que conhecia tão bem o francês quanto Larbaud o idioma inglês. A presença decisiva de Joyce certamente concorreu para que o texto francês adquirisse a “souplesse” que as condições tradutórias da época não teriam permitido, como ficou evidente no caso das traduções de Svevo, que chega a soar “flaubertiano” em francês e é totalmente “stiff” na pseudo “melhorada” que lhe emprestou o tradutor inglês Beryl de Zoete. [Esclareça-se que Larbaud traduziu apenas alguns capítulos de “A Consciência de Zeno”; a edição integral, embora com sua orientação, foi feita  por Paul-Henry Michel].

Não deixam de ser exemplares, no entanto, suas traduções de Samuel Butler, principalmente “The Way of All Flesh” (em francês “Ainsi va toute chair”) e alguns poemas de Walt Whitman, cujo estilo e vitalidade Larbaud conseguiu preservar em sua língua. Quanto à sua produção pessoal, são hoje poucos os leitores de seu romance  “Fermina Marquez” ou dos contos juvenis de “Amants, Heureux Amants”, mas resiste ao tempo, é certo, a figura de seu personagem alter-ego  Barnabooth, homem riquíssimo, cujas viagens são narradas com graça e sabedoria, reflexo da dedicação do autor pelo aprendizado de línguas e sua prática in loco, numa tentativa de não apenas falá-las mas também vivê-las. Não seria exagero, no entanto, dizer que Barnabooth é ainda hoje lembrado graças ao fato de o genial Georges Perec ter em “Vida, modo de usar” fundido essa personificação do delírio ambulatório, com o Bartleby, de Melville, o expoente máximo do maníaco-depressivo, daí resultando o excêntrico-terminal Bartlebooth, a encarnação do desprezo absoluto pelo poder aquisitivo do dinheiro, que para este se justifica apenas como a possibilidade de realizar um projeto de vida inteiramente gratuito. Bartlebooth dedica dez anos de vida a dominar a arte da aquarela; quinze anos a viajar pelo mundo pintando uma aquarela em cada um dos portos principais do planeta; aquarelas que são enviadas a Paris para serem transformadas em peças de quebra-cabeças, que ele armaria em sua volta das viagens. Finalmente, depois de armados, os quebra-cabeças, revertidos à condição de aquarelas, seriam reenviados aos portos de onde se originaram e ali submetidos a um tratamento químico para apagar a tinta, voltando ao estado de simples folhas brancas de papel Whatman de grão fino, para serem finalmente incineradas. A própria exacerbação da inutilidade do processo. Contudo, além do excêntrico Barnabooth, com suas poesias elitistas, gastronômicas e ferroviárias, Valery Larbaud tem a seu crédito outro grande livro que é “Ce vice impuni, la lecture”, cujo título exprime a mesma qualidade requintada dos comentários eruditíssimos com que analisa seus livros prediletos, lidos nos originais de várias literaturas.

A segunda parte deste “Sob a invocação de são Jerônimo” argui sobre os direitos e deveres dos tradutores, seus instrumentos de trabalho, as várias “filosofias” do ato tradutório. Seria assim a parte “prática” do compêndio. Mas ainda aqui os assuntos são tratados de  maneira um tanto  empírica, encaminhando-se para uma “filosofia da tradução” e não para o seu exercício efetivo. Larbaud escreve numa época em que o tradutor não era “reconhecido, sentando-se no último lugar, vivendo por assim dizer apenas de esmolas, aceitando preencher as mais ínfimas funções, os papeis mais apagados, quando  servir era a sua divisa, fiel ao aniquilamento de sua própria personalidade intelectual”.  Em que essa figura do amanuense na sombra se distingue do profissional de hoje, ansioso das evidências  da mídia? Nos dias de agora a tradução, além de ser mais que nunca necessária,  tem ainda um caráter “imediatista” e “nivelador”. Os grandes sucessos literários são às vezes lançados simultaneamente em várias línguas e a pressa em traduzir conduz com frequência à contrafação. Não lemos mais o autor, cujo estilo é manipulado pelo tradutor para atender aos cânones da divulgação. Por azar, essa prática não está circunscrita à televisão e ao livro de bolso, mas invade até mesmo as grandes editoras, quando se generaliza a tendência de “modernizar” os textos, de fazê-los  “falar” a linguagem de nossa época. Recentemente num livro de Natalia Ginzburg  podia-se encontrar, na versão brasileira, expressões  como paquerava, bituca, corneia, pegando no pé, um cara,  encher o saco, não esquenta, estar gamada, briga de foice — que pela sua gritante impropriedade numa narrativa dos anos ’40, surgiam como borrões na cristalina   superfície das frases, depuradas no original de qualquer artificialismo, porém nunca indulgentes com a vulgaridade. Esse vezo de “agilizar” e “nivelar” a frase mediante a transferência das falas e situações para o tempo presente do tradutor, de colocá-las sempre ao alcance de um leitor hipotético e ignorante, só pode ser influência da massificante profissionalização da categoria. Totalmente inútil indicar o livro de Larbaud a essa casta de tradutores. Ele se destina, como em geral se destinam os livros de teoria da tradução, àqueles que ainda encaram o ato tradutório como um exercício de amor, para aqueles que fazem da tradução uma “paixão” genuína, uma auto-realização, até mesmo uma co-autoria.

[Nota triste: Em agosto de 1935 um ataque cerebral deixou Valéry Larbaud paralisado e afásico — estado em que permaneceu durante 22 anos até vir a falecer em 1957. Não pode haver agonia maior que essa de ficar tanto tempo em estado vegetativo, sem poder falar nem escrever!…]

Nos 55 anos que decorreram da publicação desta suma de Larbaud, cheia das mais criteriosas considerações, que continuam válidas para a maioria dos que se dedicam seriamente ao ofício de traduzir, muitos  foram os teorizadores que surgiram, nos especializados mercados acadêmicos, analisando a psicologia, a deontologia, a hermenêutica, etc. etc. da tradução. Desde o clássico Georges Mounin, com “Os problemas teóricos da tradução”, aos aspectos linguísticos do “After Babel” de George Steiner e os ensaios de Todorov, Walter Benjamin e Hans-Georg Gadamer — uma vasta literatura teórica está à disposição dos tradutores para esclarecê-los ou confundi-los ainda mais. O mais recente trabalho do gênero parece ser a “Poétique du traduire” (Verdier, 1999), de Henri Meschonnic, professor de literatura comparada da Paris-VIII, tradutor ele próprio além de autor de numerosos livros sobre os problemas da tradução.  Meschonnic é dos que não se contentam apenas em teorizar e dedica boa parte do livro à prática da tradução. E aí não sobra para ninguém: até mesmo aquelas consideradas exemplares,  como a da Bíblia, de Chouraqui, são por ele “fritadas” como ineptas. Como a crítica à tradução poética só é honesta quando o crítico é capaz de apresentar algo melhor em defesa de sua tese, Meschonnic analisa 9 traduções francesas do soneto 27 de Shakespeare (“Weary with toil, I haste me to my bed”), feitas em datas distintas, compreendendo um período de 115 anos (François-Victor Hugo, 1857; Charles-Marie Garnier, 1906; Pierre Jean Jouve, 1955; Jean Fuzier, 1959; Henri Thomas, 1961; Armel Guerne, 1964; Jean Rousselot, 1975; Jean-François Peyret, 1990; Jean Malaplate, 1992) e liquida inapelavelmente com todas essas “tentativas” (segundo ele) canhestras de reproduzir a riqueza semântica do original. E para mostrar o “bâton” com que castigou esses “tradutores ineptos”, apresenta a sua versão, que depois de tudo isso, teria que ser perfeita. Mas onde está em inglês, por exemplo, “To work my mind, when body’s work’s expired”, em que rebrilha o jogo de palavras com o verbo “to work” e o substantivo “work”, a solução de Meschonnic-tradutor é um anódino “Que le corps épuisé, l’esprit ravage”. Basta isto para acabar com a contenda crítico versus praticante, pelo menos no presente caso.

Se nos estendemos acima na análise de outra obra sobre os problemas da tradução foi para deixar claro ao leitor que a leitura deste Larbaud, apesar de mais de meio século decorrido, ainda é um proveitoso e despretensioso passeio pelas questões fundamentais do gênero sem a prosápia irritante dos teorizadores de hoje.

(Publicado no Mais! da Folha de S. Paulo (4.11.2001), sob o título Santo Forte)

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