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Posts Tagged ‘Romeu e Julieta’


Em 1937, três anos após a publicação de Festas galantes, de Verlaine [vide post de 23.08.2010], Onestaldo de Pennafort recebeu do então ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, grande incentivador das artes, a incumbência de traduzir a peça Romeu e Julieta, de William Shakespeare, para o fim especial de sua montagem na temporada oficial de teatro daquele ano. Foi a oportunidade de Onestaldo demonstrar sua qualidade de tradutor: trabalhando em outra língua produziu o mesmo feito que havia antes conseguido com o poeta francês. O Romeu e Julieta de Onestaldo é igualmente um clássico da literatura brasileira, que superou as traduções anteriores e jamais foi superado por aquelas que, vindas depois, tentaram, em vão, atingir os patamares de excelência em que ele o colocou. Quem se der ao trabalho, ou antes, ao prazer de cotejar a tradução de Onestaldo com o original shakespeariano verá com que souplesse, com que propriedade, com que afinação, o nosso poeta soube reproduzir as sutilezas e nuances do bardo inglês. Romeu e Julieta, obra da juventude de Shakespeare, cronologicamente sua primeira tragédia, é uma exuberância de amor juvenil, de impulso adolescente, de paixão arrebatadora, entremeadas às vezes por um linguajar cru e popularesco, ora faceto ora grosseiro, como se fossem modulações a que se entregasse o poeta para melhor provar sua capacidade de atuar em várias claves e registros diferentes. Tais modulações exigem do tradutor um antenamento perfeito, uma captação de sintonias finas, para que possa reproduzir em sua língua esses efeitos sem lhes alterar o colorido e a ressonância. O grande escritor italiano Italo Calvino, na série de conferências que fez na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, reunidas em livro sob o título Seis propostas para o próximo milênio, toma A Leveza como a primeira das  qualidades de um escritor e, para isto, lança mão precisamente de uma fala shakespeariana contida no Romeu e Julieta. Logo no início da peça, na cena IV do primeiro ato, Mercúcio, amigo de Romeu, falando a propósito dos sonhos em que este último vive imerso, invoca a figura da rainha Mab (uma fada do folclore celta) e descreve-a, de maneira brincalhona, mas ao mesmo tempo sutilissima, em versos que chegam, pela sua leveza, a ter a transparência das teias. A tradução desse texto é de grande dificuldade pela sutileza das imagens e a riqueza vocabular. Onestaldo traduziu-o assim:

Pelo que vejo, foste visitado

pela rainha Mab. Ela é a parteira

entre as fadas. E é tão pequenininha

como a ágata do anel que os conselheiros

usam no indicador. Puxada por parelhas

de minúsculos átomos passeia

por cima do nariz dos dorminhocos.

Feitos de pernas longas de tarântulas

são os raios das rodas de seu carro;

de asas de gafanhotos, a coberta;

as rédeas são da teia de uma aranha;

de úmidos raios de luar, o arreio;

de osso de grilo, o cabo do chicote

e o rebenque de um fio de cabelo.

 

O seu cocheiro, de libré cinzenta,

é um mosquitozinho duas vezes

menor do que o bichinho redondinho

tirado com uma agulha do dedinho

das criadas preguiçosas; a carruagem

é uma metade de avelã vazia

e toda trabalhada, obra de entalhe

devida ao mestre-entalhador esquilo,

ou talvez seja mesmo do caruncho,

velho segeiro imemorial das fadas.

Nessa equipagem é que ela galopa

todas as noites através do cérebro

dos amantes, que então sonham com o amor.

Recentemente apareceu uma tradução de Romeu e Julieta, devida a pessoa versada em assuntos shakespearianos, que inclusive declarou a uma revista que achava a tradução de Onestaldo “açucarada”. Ora, comparando-se a tradução deste com a da pessoa citada, poderíamos dizer que só pode achar “açucarada” a de Onestaldo quem fez do texto uma tradução pedregosa e apoética. Tornando-se dispensável fazer-se um cotejo completo de ambas, ou mesmo apenas da fala de Mercúcio antes citada, seja-nos suficiente dizer que os maravilhosos versos de Onestaldo

Feitos de pernas longas de tarântulas

são os raios das rodas de seu carro

onde as belas aliterações em “r” (raios das rodas do carro) dão, por si sós, o andamento levíssimo dessa carruagem feita de uma casca de noz, foram vertidos pela nova tradutora como

As varas são perninhas de uma aranha,

asas de gafanhoto sua coberta

em que tudo é prosa de qualidade inferior, a distâncias quilométricas da sublime beleza existente em Shakespeare e alcançada na poesia de Onestaldo.

***

O êxito nunca ofuscado da tradução de Romeu e Julieta por Onestaldo de Pennafort encontrou seu eco em 1955 quando ele traduziu especialmente para a Companhia Teatral Tônia-Celi-Autran a tragédia Otelo, também de Shakespeare. Ênio Silveira, que a editou em livro em 1940, assim se refere ao evento: “Foi numa admirável montagem, custosa, sem nenhum auxílio ou bafejo oficial, em bases e condições estritamente comerciais, com um escolhido elenco, a cuja gente figuravam dois astros que dispensam qualquer adjetivação — que a aludida Companhia encenou a tragédia nesta versão no Teatro Dulcina, desta cidade, de 6 de março a 24 de julho de 1956 (e depois em São Paulo e outras cidades do centro e do sul do país) em duzentos e tantos espetáculos — número que à época se disse jamais ter sido logrado por encenações de Shakespeare, numa só temporada, em qualquer parte do mundo, a não ser em palcos de língua inglesa. Por outro lado, a freqüência rigorosamente registrada, de 63 mil e tantos espectadores, resultou num êxito de bilheteria sem precedentes em representações do gênero”. Sem precedentes foi igualmente a cobertura jornalística dispensada à peça, seja nas referências a seu diretor, a seus intérpretes e a seu tradutor. Onestaldo conheceu seu momento de glória vendo seu nome citado centenas e centenas de vezes nos jornais e revistas de todo o país. O espetáculo, belíssimo, com Tônia Carrero no esplendor apicial de sua beleza foi fotografada com cabelos loiros e longos resvalando do leito em que a trágica máscara negra de Paulo Autran se lhe aproxima para dar-lhe a morte naquele último beijo, gesto acentuado pelas palavras magistrais recriadas por Onestaldo:

Dei-te um beijo ao matar-te e ora desejo

ao me matar, morrer dando-te um beijo.

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