Rainer Maria Rilke (1875-1926) costumava passar suas férias de verão na pequena cidade de Worpswede, na baixa Saxônia, um reduto de poetas e artistas plásticos. Sua amiga a pintora Paula Modersohn-Becker tinha ali uma escola de arte e entre suas alunas prediletas estava Clara Westhoff (1878-1954), de quem pintou um retrato, hoje famoso. Apesar de ter um caso com Paula, Rilke, que adorava a companhia de mulheres, logo após ter rompido com sua amante “tradicional”, Lou Andréas-Salomé, passou a cortejar Clara, com quem se casou, grávida, em 1901. A filha Ruth nasceu sete meses depois, quando o casal já estava praticamente separado. Rilke não fora feito para a vida do lar, dos compromissos, da paternidade. No ano seguinte, ambos se dirigem a Paris, onde Clara vai se aperfeiçoar nos estúdios de Auguste Rodin, o maior escultor francês da época, e de quem Rilke deseja se aproximar, pois está escrevendo um ensaio a seu respeito, o qual será publicado em 1903 em Berlim. Essa aproximação entre escultor e poeta vai ensejar a contratação de Rilke como secretário particular de Rodin, encarregado inicialmente de sua correspondência estrangeira. Sabe-se, por uma carta muito posterior de Rilke, que ele recebia duzentos francos mensais pela tarefa e que, além das duas horas de trabalho inicialmente combinadas, ele dedicava praticamente todo o seu tempo ao estudo da personalidade do Mestre, considerado por ele a figura modelar do Grande Criador. Foi uma das épocas mais produtivas do poeta, que modificou totalmente o sentido de sua poesia, dedicando-se ao “ofício de ver”, de transformar o que via em experiências concretas. Esse período é admiravelmente relatado no livro “Os cadernos de Malte Laurids-Brigge”, seu alter-ego, em que registra suas observações visuais no Jardin des Plantes de Paris. Rilke sente-se feliz com a intimidade artística que Rodin lhe propicia, bem assim com a possibilidade de viver no ateliê do Mestre e desfrutar de uma existência sem muitas preocupações materiais.
Mas um incidente banal vem acabar com essa felicidade. De um momento para outro, sem aviso prévio, sem uma única palavra, sem possibilidades de defesa, Rodin põe Rilke literalmente na rua, impedindo sua entrada no ateliê e se recusando a vê-lo ou deixar-se entrevistar por ele. Sabe-se, vagamente, que o desentendimento teria sido provocado por uma carta que Rilke teria aberto e respondido diretamente sem a aprovação de Rodin. Ou que Rilke estaria se valendo das amizades importantes dele para se autopromover.
Tudo o que restou a Rilke foi escrever a Rodin a carta (cuja tradução apresentamos a seguir) em que expõe suas razões e demonstra o quanto a atitude brusca do escultor feriu a sensibilidade do poeta e servidor. Esse episódio, no entanto, não fez com que arrefecesse sua admiração e dedicação pelo artista: em futuras publicações e conferências, Rilke continuaria enaltecendo o gênio e a criatividade de Rodin. Mas naquele momento só lhe restou regressar à pobreza de onde viera, até que outro mecenas viesse a reconhecer o seu destino de altíssimo poeta e lhe propiciasse a oportunidade de isolar-se, recluso em Duíno, para escrever suas elegias imortais.
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A CARTA DE RILKE
Paris, 12 de maio de 1906
Meu Mestre,
Não quero iniciar a vida imprevista a que o senhor me condenou sem antes haver deposto em suas mãos uma breve exposição dos fatos segundo meu entendimento mais sincero.
A carta do Sr. Thyssen era endereçada a mim, na qualidade de seu secretário; dessa forma, eu não a escamoteei de maneira alguma ao lhe falar naquela mesma tarde, bem como na manhã seguinte, quando lhe propus enviarmos ao Sr. Thyssen a resposta já preparada alguns dias antes, à qual acrescentaríamos um post –scriptum a propósito da carta em alemão. Se nesse caso cometi um erro, foi o de julgá-la pouco importante, fundamentada numa falsa suposição e redundando em nada. O senhor foi de outra opinião, embora eu permaneça convencido de que meu ponto de vista era escusável em relação a uma carta que fora feita apenas para se aproveitar pouco delicadamente de uma confusão e de sua suposta ausência.
A carta do Sr. Rothenstein era a resposta de uma carta puramente pessoal que eu lhe havia endereçado; era (devo lembrá-lo) na qualidade de seu amigo que o senhor me havia apresentado ao Sr. Rothenstein, e não via nada de inconveniente em aceitar a pequena relação pessoal que se estabelecia entre seu amigo e eu por meio de nossas conversas, ainda mais que amigos bem mais caros nos eram comuns. Mas o senhor não quis mais se lembrar que foi na condição de amigo que me convidou para vir para a sua casa e a função para a qual me contratou semanas depois não era a princípio senão um meio de proporcionar a um amigo pobre um tempo calmo e favorável ao seu trabalho. Foi assim que o senhor formulou sua proposta, na manhã em que passeávamos pelo jardim deliberando sobre essa possibilidade que me deixava extremamente feliz.
“O senhor me ajudará um pouco; isto não lhe tomará muito tempo. Duas horas apenas pela manhã”, foram as suas palavras.
Ora, não hesitei em lhe dar, em vez de duas horas, quase todo o meu tempo e todas as minhas forças (que infelizmente não são muitas) durante sete meses. Meus trabalhos ficaram para trás desde muito; no entanto eu me sentia feliz em o poder servir, em poder diminuir um pouco as preocupações que atormentavam os seus preciosos esforços.
O senhor próprio me havia aberto sua intimidade, na qual entrei timidamente na medida em me permitia, sem fazer outro uso dessa inesquecível preferência senão para me reconfortar no fundo de meu coração e para poder, legítima e indispensavelmente, cumprir com minhas obrigações para com o senhor e na sua presença. Se eu acalentava o sentimento de querer penetrar as suas intenções para poder um dia ajudá-lo verdadeiramente, conhecendo antecipadamente suas decisões, esse sentimento não precisa ser censurado; era natural que brotasse naquele que desejava ardentemente aliviar o seu trabalho e cumprir plenamente com o serviço que o senhor lhe havia confiado.
No entanto, tenho todas as aparências contra mim no momento em que lhe apraz transformar meus esforços sinceros numa base de desconfiança suspeitosa.
E eis-me posto na rua como um criado ladrão, de súbito, dessa habitação em que, outrora, a sua amizade me havia ternamente instalado. Já não era mais o secretário a quem o senhor havia concedido um domicílio familiar…
Fiquei profundamente ofendido.
Mas eu o compreendo. Compreendo que a sábia organização de sua vida deve alijar imediatamente o que lhe pareça nocivo para manter intactas as suas funções: como o olho rejeita o objeto que lhe incomoda a vista.
Compreendo bem isto, e, lembra-se?, o quanto o compreendi com frequência em nossas contemplações felizes? Estou convicto de que nenhum homem da minha idade (nem na França, nem algures) seja como eu (por seu temperamento e trabalho) mais bem dotado para compreendê-lo, compreender a sua vida grandiosa e admirá-la conscenciosamente.
(Minha mulher, um pouco mais distante e de maneira diversa, nutre pelo senhor um sentimento semelhante. Lamento que não tenha pensado nela ao me despedir, sem uma só palavra, pois ela (que tanto necessita de sua assistência) não o ofendeu de forma alguma; por que haveria ela de partilhar esta espécie de desgraça que recaiu sobre mim?)
Eis que o senhor, grande Mestre, tornou-se invisível para mim, como se elevado aos céus que lhe são particulares.
Já não o verei – mas como para os apóstolos que ficaram tristes e sós, a vida começa para mim, a vida que celebrará seu alto exemplo e que encontrará no senhor seu próprio consolo, seu direito e sua força.
Ambos concordamos em que na vida existe uma justiça imanente, que se realiza de maneira lenta mas correta. Nessa justiça é que deponho toda a minha esperança; ela corrigirá um dia o erro que o senhor quis impor àquele que já não tem meios nem direito de lhe expor seu coração.
Rilke.
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OUTONAL – BELO E SABOROSO
Karlos Rischbieter, o tradutor de Rilke (comentado em nosso post de 19.04.2011), editou em 1993, pela Posigraf, de Curitiba, uma seleção de poemas extraídos dos vários livros do Poeta, a que deu o título “Senhor, é tempo”. Em 2002, já pela Editora Record-Rio, saíram suas traduções de “Os Sonetos a Orfeu / Elegias de Duíno”, em edição bilíngue, amplamente distribuída por todo o país. Agora, depois de provar sua capacidade de tradutor de poesia, o autor vem demonstrar sua versatilidade nos domínios da prosa e nos presenteia com este “Outonal – Um amor de viagem pela Europa”, um livro que além de belo é literalmente delicioso. Enriquecido com inúmeras e delicadas aquarelas feitas at sight pelo próprio narrador, o texto todo exala ainda um perfume recorrente de magníficas refeições feitas ao longo do percurso. O leitor se transforma imediatamente num turista-voyeur que acompanha os viajantes pela Córsega, a Toscana, a Suíça, o sul da França e dezenas de pitorescas e minúsculas localidades, desfrutando ora do conforto ora do aconchego de seus hotéis, albergues e pousadas, apreciando a exuberância da paisagem, visitando seus sítios históricos e artísticos e sorvendo a delícia de seus vinhos juntamente com a variedade de suas iguarias. Não há outro qualificativo: um livro belo e realmente delicioso. O texto, numa linguagem informativa e pitoresca, mas nada semelhante a dos guias tradicionais, coloca o leitor diretamente em cena, dando-lhe uma carona nos vários meios de transporte utilizados pelo casal viajante. Só falta lhe emprestar o pijama e a escova de dentes. Recebi um exemplar autografado, mas o leitor que desejar entrar como entrei nesta aventura, poderá escrever à editora Kafka – Rua Francisco Alves Guimarães, 175 – 80050 210 – Curitiba-PR, que, com sorte, talvez consiga adquirir um exemplar.