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Posts Tagged ‘Rilke’

Rainer Maria Rilke (1875-1926) costumava passar suas férias de verão na pequena cidade de Worpswede, na baixa Saxônia, um reduto de poetas e artistas plásticos. Sua amiga a pintora Paula Modersohn-Becker tinha ali uma escola de arte e entre suas alunas prediletas estava Clara Westhoff (1878-1954), de quem pintou um retrato, hoje famoso. Apesar de ter um caso com Paula, Rilke, que adorava a companhia de mulheres, logo após ter rompido com sua amante “tradicional”, Lou Andréas-Salomé, passou a cortejar Clara, com quem se casou, grávida, em 1901. A filha Ruth nasceu sete meses depois, quando o casal já estava praticamente separado. Rilke não fora feito para a vida do lar, dos compromissos, da paternidade. No ano seguinte, ambos se dirigem a Paris, onde Clara vai se aperfeiçoar nos estúdios de Auguste Rodin, o maior escultor francês da época, e de quem Rilke deseja se aproximar, pois está escrevendo um ensaio a seu respeito, o qual será publicado em 1903 em Berlim. Essa aproximação entre escultor e poeta vai ensejar a contratação de Rilke como secretário particular de Rodin, encarregado inicialmente de sua correspondência estrangeira. Sabe-se, por uma carta muito posterior de Rilke, que ele recebia duzentos francos mensais pela tarefa e que, além das duas horas de trabalho inicialmente combinadas, ele dedicava praticamente todo o seu tempo ao estudo da personalidade do Mestre, considerado por ele a figura modelar do Grande Criador. Foi uma das épocas mais produtivas do poeta, que modificou totalmente o sentido de sua poesia, dedicando-se ao “ofício de ver”, de transformar o que via em experiências concretas. Esse período é admiravelmente relatado no livro “Os cadernos de Malte Laurids-Brigge”, seu alter-ego, em que registra suas observações visuais no Jardin des Plantes de Paris.  Rilke sente-se feliz com a intimidade artística que Rodin lhe propicia, bem assim com a possibilidade de viver no ateliê do Mestre e desfrutar de uma existência sem muitas preocupações materiais.

Mas um incidente banal vem acabar com essa felicidade. De um momento para outro, sem aviso prévio, sem uma única palavra, sem possibilidades de defesa, Rodin põe Rilke literalmente na rua, impedindo sua entrada no ateliê e se recusando a vê-lo ou deixar-se entrevistar por ele. Sabe-se, vagamente, que o desentendimento teria sido provocado por uma carta que Rilke teria aberto e respondido diretamente sem a aprovação de Rodin. Ou que Rilke estaria se valendo das amizades importantes dele para se autopromover.

Tudo o que restou a Rilke foi escrever a Rodin a carta (cuja tradução apresentamos a seguir) em que expõe suas razões e demonstra o quanto a atitude brusca do escultor feriu a sensibilidade do poeta e servidor. Esse episódio, no entanto, não fez com que arrefecesse sua admiração e dedicação pelo artista: em futuras publicações e conferências, Rilke continuaria enaltecendo o gênio e a criatividade de Rodin.  Mas naquele momento só lhe restou regressar à pobreza de onde viera, até que outro mecenas viesse a reconhecer o seu destino de altíssimo poeta e lhe propiciasse a oportunidade de isolar-se, recluso em Duíno, para escrever suas elegias imortais.

A CARTA DE RILKE

Paris, 12 de maio de 1906

Meu Mestre,

Não quero iniciar a vida imprevista a que o senhor me condenou sem antes haver deposto em suas mãos uma breve exposição dos fatos segundo meu entendimento mais sincero.

A carta do Sr. Thyssen era endereçada a mim, na qualidade de seu secretário; dessa forma, eu não a escamoteei de maneira alguma ao lhe falar naquela mesma tarde, bem como na manhã seguinte, quando lhe propus enviarmos ao Sr. Thyssen a resposta já preparada alguns dias antes, à qual acrescentaríamos um post –scriptum a propósito da carta em alemão. Se nesse caso cometi um erro, foi o de julgá-la pouco importante, fundamentada numa falsa suposição e redundando em nada. O senhor foi de outra opinião, embora eu permaneça convencido de que meu ponto de vista era escusável em relação a uma carta que fora feita apenas para se aproveitar  pouco delicadamente de uma confusão e de sua suposta ausência.

A carta do Sr. Rothenstein era a resposta de uma carta puramente pessoal que eu lhe havia endereçado; era (devo lembrá-lo) na qualidade de seu amigo que o senhor me havia apresentado ao Sr. Rothenstein, e não via nada de inconveniente em aceitar a pequena relação pessoal que se estabelecia entre seu amigo e eu por meio de nossas conversas, ainda mais que amigos bem mais caros nos eram comuns. Mas o senhor não quis mais se lembrar que foi na condição de amigo que me convidou para vir para a sua casa e a função para a qual me contratou semanas depois não era a princípio senão um meio de proporcionar a um amigo pobre um tempo calmo e favorável ao seu trabalho. Foi assim que o senhor formulou sua proposta, na manhã em que passeávamos pelo jardim deliberando sobre essa possibilidade que me deixava extremamente feliz.

“O senhor me ajudará um pouco; isto não lhe tomará muito tempo. Duas horas apenas pela manhã”, foram as suas palavras.

Ora, não hesitei em lhe dar, em vez de duas horas, quase todo o meu tempo e todas as minhas forças (que infelizmente não são muitas) durante sete meses. Meus trabalhos ficaram para trás desde muito; no entanto eu me sentia feliz em o poder servir, em poder diminuir um pouco as preocupações que atormentavam os seus preciosos esforços.

O senhor próprio me havia aberto sua intimidade, na qual entrei timidamente na medida em me permitia, sem fazer outro uso dessa inesquecível preferência senão para me reconfortar no fundo de meu coração e para poder, legítima e indispensavelmente, cumprir com minhas obrigações para com o senhor e na sua presença. Se eu acalentava o sentimento de querer penetrar as suas intenções para poder um dia ajudá-lo verdadeiramente, conhecendo antecipadamente suas decisões, esse sentimento não precisa ser censurado; era natural que brotasse naquele que desejava ardentemente aliviar o seu trabalho e cumprir plenamente com o serviço que o senhor lhe havia confiado.

No entanto, tenho todas as aparências contra mim no momento em que lhe apraz transformar meus esforços sinceros numa base de desconfiança suspeitosa.

E eis-me posto na rua como um criado ladrão, de súbito, dessa habitação em que, outrora, a sua amizade me havia ternamente instalado. Já não era mais o secretário a quem o senhor havia concedido um domicílio familiar…

Fiquei profundamente ofendido.

Mas eu o compreendo. Compreendo que a sábia organização de sua vida deve alijar imediatamente o que lhe pareça nocivo para manter intactas as suas funções: como o olho rejeita o objeto que lhe incomoda a vista.

Compreendo bem isto, e, lembra-se?, o quanto o compreendi com frequência em nossas contemplações felizes? Estou convicto de que nenhum homem da minha idade (nem na França, nem algures) seja como eu (por seu temperamento e trabalho) mais bem dotado para compreendê-lo, compreender a sua vida grandiosa e admirá-la conscenciosamente.

(Minha mulher, um pouco mais distante e de maneira diversa, nutre pelo senhor um sentimento semelhante. Lamento que não tenha pensado nela ao me despedir, sem uma só palavra, pois ela (que tanto necessita de sua assistência) não o ofendeu de forma alguma; por que haveria ela de partilhar esta espécie de desgraça que recaiu sobre mim?)

Eis que o senhor, grande Mestre, tornou-se invisível para mim, como se  elevado aos céus que lhe são particulares.

Já não o verei – mas como para os apóstolos que ficaram tristes e sós, a vida começa para mim, a vida que celebrará seu alto exemplo e que encontrará no senhor seu próprio consolo, seu direito e sua força.

Ambos concordamos em que na vida existe uma justiça imanente, que se  realiza de maneira lenta mas correta. Nessa justiça é que deponho toda a minha esperança; ela corrigirá um dia o erro que o senhor quis impor àquele que já não tem meios nem direito de lhe expor seu coração.

Rilke.

OUTONAL – BELO E SABOROSO

Karlos Rischbieter, o tradutor de Rilke (comentado em nosso post de 19.04.2011), editou em 1993, pela Posigraf, de Curitiba, uma seleção de poemas extraídos dos vários livros do Poeta, a que deu o título “Senhor, é tempo”. Em 2002, já pela Editora Record-Rio, saíram suas traduções de “Os Sonetos a Orfeu / Elegias de Duíno”, em edição bilíngue, amplamente distribuída por todo o país. Agora, depois de provar sua capacidade de tradutor de poesia, o autor vem demonstrar sua versatilidade nos domínios da prosa e nos presenteia com este “Outonal – Um amor de viagem pela Europa”, um livro que além de belo é literalmente delicioso. Enriquecido com inúmeras e delicadas aquarelas feitas at sight pelo próprio narrador, o texto todo exala ainda um perfume recorrente de magníficas refeições feitas ao longo do percurso. O leitor se transforma imediatamente num turista-voyeur que acompanha os viajantes pela Córsega, a Toscana, a Suíça, o sul da França e dezenas de pitorescas e minúsculas localidades, desfrutando ora do conforto ora do aconchego de seus hotéis, albergues e pousadas, apreciando a exuberância da paisagem, visitando seus sítios históricos e artísticos e sorvendo a delícia de seus vinhos juntamente com a variedade de suas iguarias. Não há outro qualificativo: um livro belo e realmente delicioso. O texto, numa linguagem informativa e pitoresca, mas nada semelhante a dos guias tradicionais, coloca o leitor diretamente em cena, dando-lhe uma carona nos vários meios de transporte utilizados pelo casal viajante. Só falta lhe emprestar o pijama e a escova de dentes. Recebi um exemplar autografado, mas o leitor que desejar entrar como entrei nesta aventura, poderá escrever à editora Kafka – Rua Francisco Alves Guimarães, 175 – 80050 210 – Curitiba-PR, que, com sorte, talvez consiga adquirir um exemplar.

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Uma preocupação vem me assaltando ultimamente: que será de meus livros?  quem ficará com eles? Serão vendidos a peso, doados a uma instituição de caridade, conservados por algum parente que goste de leitura?

Escrevo num quarto calafetado de livros: pelas quatro paredes, eles vão do rodapé ao teto e se espalham ainda pela cimeira da porta. Dispostos nas estantes sem nenhum critério, às vezes tenho dificuldade de encontrar algum, mas posso dizer que conheço a maioria pela lombada, sou capaz de “sentir” a presença de um deles mesmo quando espremido nas prateleiras mais altas. Já sonhei uma vez que as estantes se desmoronaram sobre mim, soterrando-me nos livros, por isto não ouso “pescar” nenhum do alto, puxando-o pela lombada. Há alguns que estão comigo há mais de cinco décadas, tenho certamente outros ainda mais antigos. Quantas lembranças me trazem quando reencontro um desses velhos companheiros e o tomo nas mãos para abri-lo ao acaso: este foi Fulano que me deu, aquele outro ganhei num concurso, o Casimiro tem uma dedicatória de meu pai, simples, direta, “Ao Ivo Salve  25-12-44 Oferenda s/ pae, Ormindo”, presente de aniversário dos meus 15 anos! Amo-os, é claro, como se fossem filhos de papel, os filhos de sangue que não tive. Recentemente um jornal de São Paulo me pediu um poema de Natal e escrevi:

PAPAI, NOEL

Pelo Natal eu só ganhava livros

Eu pedia carrinhos de brinquedo

e ele me dava livros no Natal

Durante o ano eu lhe pedia livros

que ele me dava mesmo sem pedir

Anos sem que eu pudesse reverter

o sentido do dar e receber

Eu sonhava lhe dar uma alegria

algo de mim que o fosse contentar

Ele sonhava que eu gerasse um filho

e nem meus livros eu lhe pude dar.

Eu quis dizer, neste verso final, que não cheguei a dar a meu pai a alegria de ver publicados os meus próprios livros, pois ele morreu antes que  a Caça Virtual e meus outros opúsculos viessem a lume. Mas sabia das minhas traduções e ficava feliz quando via meu nome nos jornais.

Outra dedicatória, ainda mais sucinta, e dessa mesma data, dizia: “Do Pedro, ao Ivo. Rio, 25/12/44”. O ofertante, no caso, era meu tio materno, Pedro Pimentel, que morou por uns tempos em nossa casa na rua Pontes Correa. Autodidata, escrevia num português correto, estribado em duas ou três gramáticas e dicionários que integravam sua pequena biblioteca pessoal. Era funcionário graduado do Lloyd Brasileiro e redigia longos relatórios sobre as viagens de inspeção que fazia pelos portos do país. Numa delas, a mais demorada, voltou noivo de uma cearense, e como devia em seguida fazer outra viagem, dessa vez para o Sul do Brasil, pediu à minha mãe que fosse a Fortaleza “resgatar” a noiva. Acompanhei minha mãe nessa viagem e acabamos nos casando (por procuração) com a moça que trouxemos conosco, depois de uma cerimônia privada, certamente para satisfação da família cearense que não podia vir ao Rio. Nos tempos de solteiro que passou conosco, foi meu grande inspirador e roommate (adoro esta palavra), sabatinando-me com frequência sobre questões de português, ortografia, colocação de pronomes, significado de palavras, etc. Era poeta, compunha sonetos bem rimados e metrificados, e foi com ele que aprendi métrica, a escandir versos e a gostar realmente de poesia. Tínhamos um caderno-álbum em que transcrevíamos os poemas que julgávamos “de primeira classe”, e certa vez me censurou por eu haver acolhido uns versos que ele considerava “inferiores”. Agastado com a restrição ao meu gosto literário, arranquei num rompante a folha do álbum, entreguei-o a ele e nunca mais falamos no assunto. Eu o admirava profundamente pela aura de suas viagens, pelas histórias que contava de sua experiência marítima; tinha sido oficial da marinha mercante e conhecera vários portos estrangeiros. Em Nova York visitou a Coney Island e almoçou no famoso restaurante do Jack Dempsey. Garantia, para mim incrédulo em meu incipiente inglês, que os americanos diziam “uóra” em vez de “water”. Vestia ternos de linho Taylor 120 e tinha sapatos feitos sob medida, que guardava em alvas sacolas de flanela; havia um par que me fascinava, de duas cores, marrom e branco,  cuja imponência era acentuada pela robustez do solado. Aos sábados entregava-se a uma longa rotina dedicada aos cuidados corporais: cortava as unhas, passava-lhes talco e as friccionava com uma escova própria, de camurça, que ele guardava num estojo certamente adquirido no exterior, no qual havia ainda uma tesourinha pontuda que servia para aparar as cerdas nasais e um minúsculo pincel com que enegrecia o bigode. Engraxava os sapatos e se preparava para sair à noite, quando ia “furar cartão” (dançar) nas boates da avenida Rio Branco. Era a única ocasião em que não o acompanhávamos, pois costumávamos passear juntos na baratinha descapotável que ele havia adquirido e na qual só carregava duas pessoas de cada vez, para não afetar as molas de suspensão. Nós, mais novos, ficávamos siderados quando ele e minha mãe se punham a lembrar fatos de sua juventude no Herval. “Cedinha, você lembra quando o Ti´Tatão, etc” e ela retrucava com outro caso desse tempo, e ambos diziam: “Lá se vão uns trinta anos!” Meus irmãos se entreolhavam, impossível alguém se lembrar do que havia acontecido a trinta anos passados. Ele e eu trocávamos impressões de leitura e costumávamos declamar juntos algum longo poema, o livro revezando em nossas mãos. De tanto lermos os “Poemas” de Menotti del Picchia, já sabíamos de cor quase todo o “Juca Mulato” e “O beijo de Arlequim”. Um dia, fizemos um desafio mútuo: ver quem escrevia o melhor soneto sobre “Vida”. Passados uns dias, depois do jantar, ele tirou do bolso um papel e leu sua composição que falava de nascimento, infância, juventude, maturidade e morte. Dei um sorriso sardônico, com ares de quem já estava saboreando as batatas da vitória. E declamei o meu bestialógico, onde as presenças de Augusto dos Anjos e de Raul de Leoni eram mais que flagrantes, atropeladas por imprecisas noções de biologia:

A vida é o resultante grau da orgânica

Evolução da célula. É energia

Que mais se apura, dia para dia,

Desde os tempos remotos da Era Oceânica.

É movimento, é força que se cria;

De potencial transforma-se em dinâmica.

Evolveu-se da Micro à Pterodâmica

Espécie em fecunda embriogenia.

(etc)

Meu tio conseguiu disfarçar sua perplexidade diante daquele despautério. Pegou o papel, leu-o com atenção, elogiou o emprego de “evolver” em lugar de “evoluir”, que o Cândido de Figueiredo (em quem costumava estribar-se para a elucidação de dúvidas gramaticais) considerava um galicismo. Sem dizer o que achava, falou que tinha uma dúvida: Não seria pterodáctila em vez de pterodâmica? Finquei pé no pterodâmica, sem o que lá se iria embora a minha rima rica (achava eu, rara e riquíssima).  O Lello Universal Ilustrado de sua estante particular não me abonava o termo, nem sequer trazia o pterodáctilo proposto. Meu professor de biologia é quem resolveria o caso. No dia seguinte, fui à aula (noturna, que eu costumava matar) e submeti meu mostrengo ao professor, a quem já havia mostrado outros escritos meus. “Do ponto de vista científico, não faz sentido; é confuso e incongruente. Mas os versos são bons e você deve insistir. Na sua idade, seria melhor escrever poemas de amor”.  Confessei ao tio o meu fracasso científico e minha vitória poética. Ele me incentivou dizendo que de fato eu seria um grande poeta. Ele, o meu guia, acreditava em mim, achava que eu podia caminhar sozinho. Fiquei determinado a não decepcioná-lo no futuro. Quando nos deixou para montar a própria casa, praticamente na mesma rua, senti um vazio indescritível: lá se foram as gramáticas, os sapatos ensacados, as tesourinhas de unha, além do encantamento mútuo com a leitura de nossas produções. Lá se fora o amigo, o companheiro, o roommate,  meu ídolo,  meu mestre. Ali tão perto e já tão distante, como se entre nós o tempo tivesse colocado uma barreira intransponível.

Vejam: abre-se um livro e de sua dedicatória, amarelecida e quase desfeita pela idade, surgem tantas lembranças, flashes-back de uma vida, viagem de regresso ao tempo nunca perdido da juventude. Então, digam-me lá: o que fazer dos meus livros já que me pesa tanto ter que deixá-los  sem destino,  sem definição? Estive pensando em várias soluções. Durante mais de trinta anos andei colecionando livros relativos a Rimbaud e à sua obra: edições integrais, biografias, ensaios, dicionários, revistas especializadas, etc. No fim do ano passado, quando editei o terceiro e último volume de minha tradução de sua obra completa, percebi que estava diante de um acervo bastante expressivo, não só quanto ao valor artístico mas igualmente quanto ao material, pois nele se incluem algumas obras raras, primeiras edições, livros fac-similados, etc. Depois de considerar cumprida a incumbência a que me autodeterminei de colocar ao alcance do leitor brasileiro tudo o que o gênio de Charleville havia escrito, a visão diária desses 120 volumes à minha frente na estante acaba sendo um pequeno suplício, pois me faz lembrar cada um dos momentos em que estive em combate ferrado com o Anjo. Resolvi, pois, doá-los a Biblioteca do Centro Cultural Banco do Brasil, onde eles poderiam continuar formando uma coleção especializada, e também ao alcance de minha vista em caso de me bater uma (inexplicável) saudade repentina.

Excelente ideia. Mas, e os outros? Que destino darei, por exemplo, àquele magnífico “Les Fleurs du Mal” da coleção Pastels, ilustrado por Jacques Roubille, Éditions du Panthéon, do qual só foram impressos 500 exemplares “sur pur fil Johannot” (o meu é o nº 318), em MCMXLVI, hoje considerado obra rara e fora do comércio? Comprei-o com o meu primeiro salário, na livraria francesa que havia no térreo da Faculdade de Filosofia, onde eu cursava Línguas Neolatinas, ali onde é hoje a Maison de France. Preciosidade que eu guardava numa caixa de charutos e em cujas páginas comecei a acumular algumas notas graúdas, talvez para novas e temerárias aquisições.

Assim como ocorreu em relação a Rimbaud, também quando organizei em 1995 para a Nova Aguilar o volume ”Poesia e Prosa”, de Charles Baudelaire, acabei formando uma coleção com as dezenas de livros que tive de ler para selecionar o material existente em português, além de várias edições francesas que eu já tinha ou que vim a adquirir. Lá estão eles ocupando toda uma prateleira da estante. Também os livros de e sobre Rilke, arrecadados para uma edição quase completa de sua obra, que a Nova Aguilar pretendia fazer logo depois do Baudelaire; são ainda 34 volumes, mesmo depois da devolução de cerca de mais 20, emprestados pelo Dr. Rischbieter. Mais em cima, a minha paixão da juventude, o romantíssimo Edmond Rostand, com todas as belas edições do “Cyrano de Bergerac” e do “L´Aiglon”, inclusive a famosa edição da Impremerie Nationale de 1983, sem falar na raríssima biografia escrita por sua mulher, Rosemonde Gérard, em 1935, e com uma dedicatória da própria “pour Jacques Chabanne, très sympathiquement” (peça de colecionador, de 1935). Falar de Rostand seria falar de todos os sonhos, vitórias e decepções de amor que sagraram os meus anos juvenis, arroubos, versos ardentes, lágrimas contidas, coração convulso…

Da parte superior da estante, ocupando mais de duas prateleiras, Shakespeare me observa através de ricas edições de suas obras completas e uma porção de traduções em várias línguas. Não, não o esqueci, foi meu primeiro cometimento, minha “glória” maior de quando o vi (em minha tradução) sob o formato de imponente coffee-table book, ilustrado por Isolda Hermes da Fonseca e editado por Carlos Lacerda, a quem eu assessorava na redação da Enciclopédia Século XX. Que será destes tesouros sentimentais, desses pedaços líricos de mim? Talvez o melhor será deixá-los também para o Banco do Brasil, onde trabalhei por 37 anos, para o seu CCBB cuja biblioteca saberá guardá-los com cuidado, ainda que não lhes possa dispensar o mesmo carinho que lhes dediquei. Mas, você, o que faria em meu lugar?

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CONSELHO LITERÁRIO

Depois que recebeu as cartas de Rilke, o jovem poeta Franz Xaver Kappus não escreveu mais nada.

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PSEUDO HAI KAI

Em breve estaremos

Nas varandas da Lua

Contemplando a Terra

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POEMA DE AMOR

Um amigo-leitor me pergunta se o Poema (de Amor), que publiquei aqui no blog em 04.02.2011, era um poema concreto. Não diria; o concretismo tinha por programa acabar com o discurso tradicional,  abolir as frases completas, o sentido coerente; esperava que as palavras isoladas conseguissem dar ao leitor uma sugestão do que seria – digamos — o “sentido” do verso. Já no caso do meu poema de amor o que houve foi uma utilização de recursos espaciais em voga durante aquele movimento, além de lançar mão, principalmente, de uma estrutura – também digamos —  bifronte, que permitisse ao poema dizer duas coisas distintas ao mesmo tempo, mas unidas por um eixo significante comum: ou seja uma espécie de poema-xifópago. Isto foi obtido com a utilização de palavras semelhantes de dois campos diversos: palavras referentes a órgãos do corpo humano (peito, aorta, cava, crossa, termos todos estes correlatos ao coração) justapostas a palavras relativas a casa, habitação (pátio, porta, cave, fossa). A duplicidade é logo introduzida pela flexão verbal “late”, que tanto pertence ao verbo later (pulsar) como ao verbo latir (ladrar), prosseguindo com um cruzamento de ações dos dois campos, atribuíveis ao cão e ao homem, para concluir numa alternância de extremos (matar/morrer) que se amalgamam numa ação única.

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O FUTURO DA CRÔNICA

Discutiu-se ultimamente o futuro da crônica. Que formato terá daqui a alguns anos essa categoria ambígua que escapa a definições precisas e invade atualmente um espaço cada vez mais amplo dos jornais? Alguns estrelados medalhões deitaram fala, expuseram teorias quase antagônicas e chegaram mesmo a esquematizar modelos aplicáveis à maioria dos profissionais do gênero.

Um deles seria o do cronista-padrão, esse que consegue se incluir em todas as regras, vestir todas as camisas, adotar como bíblia o manual do politicamente correto, para agrado total de seus leitores. Ele votou no governo, mas para acompanhar o rumo atual da mídia, vez por outra aplica uma cotovelada no baço presidencial, nada no entanto que lhe possa comprometer a esperança de reeleição. É de esquerda, é claro, daquela esquerda que ganha, mora e come bem; opõe-se em passeata ostensiva às potências opressoras (os EUA, é claro), e sonha com Aspen e a Disneylândia. Mesmo sem propósito, arranja sempre  uma oportunidade para falar no reacionarismo ou na pedofilia da Igreja e condenar o atual Papa como ex-participante das milícias nazistas. Seu posicionamento ético vai ao cuidado de evitar os adjetivos, de nunca incidir no elitismo de um advérbio de modo, e, se acaso emprega, sem querer, uma palavra proparoxítona, não deixa de fazê-la seguir-se de um (opa!) (hein!) (urgh!) para que o leitor saiba que ele abomina a erudição e ser tratado de culto seria para ele o mesmo que saber-se aidético.

Outro filão abrigaria os cronistas-biográficos. Mesmo tendo lido Drummond (“Não recomponhas /tua sepultada e merencória infância”), eles estão certos de que os leitores se amarram em suas conquistas amorosas (falsas ou não), que se tornarão sonhadores com suas histórias familiares ou lendo as descrições do tempo em que soltavam pipa ou batiam uma – bola – no quintal. O papagaio do vizinho, o porteiro do 301, a moça que passa de bicicleta para a praia assumem no seu teclado a condição de heróis, o fascínio das lendas.   Quando alertados, dizem sempre que Drummond, em prosa e verso, se socorreu com frequência (com mestria, digo eu) de suas recordações infantis, seus casos de família, a cobertura do cotidiano, mas se esquecem de que a um Drummond se perdoam todas as contradições ante a força de um estilo irretocável.

Um terceiro nicho seria habitado pelos cronistas-truculentos: nas duas primeiras frases já mostram as bordunas com que vão baixar o cacete (agora diz-se pegar pesado) em quem quer que seja o bode (agora diz-se a bola) da vez. Seus leitores (em geral frustrados) se divertem com suas grosserias, seu desrespeito generalizado, suas atitudes contra-culturais. Ele interpreta a voz enrustida dos que não sabem reclamar, dos que têm medo de falar alto, dos que vivem pagando mico sem pedir sequer abatimento. Numa sub-seção se acoitam os pornógrafos e os escatológicos (pois há quem goste).

Finalmente, há muitos outros que vivem à sombra dos faits divers. Em geral escrevem diariamente e nada mais cômodo que embarcar na notícia quente: mortes trágicas, sismos, inundações, chacinas (eles adoram chacina até como palavra) são os estímulos que os levam às 3500 batidas com espaço ou sem. Soltam-se nos sueltos. Quando o tema das notícias se repete à náusea, por ex. ilustres mortes sucessivas (de figurões e artistas de cinema, sem contar com a de policiais ou de pessoas inocentes assassinadas por policiais) – recorrem logo à direção oposta: maternidades, jardins-de-infância, inseminação artificial, gravidez tubária, dia das Mães. Ou ainda: telefonam aos zoológicos para saber se não veio à luz algum cacarequinho capaz de disputar (e ganhar) as próximas eleições.

Como resultado dessas parlendas, tivemos a proclamação de que esses cronistas do cotidiano serão forçados, no futuro, a mudar de divisão com a crescente concorrência das próprias notícias dos jornais, das revistas e da televisão, veículos mais empenhados ainda em baixar o nível para subir no Ibope da audiência. Depois de analisarem essas categorias, os novos apóstolos das mesas-redondas acabaram profetizando a volta da crônica literária, de reflexão ou filosófica, ou seja, de textos no estilo de um  Ruben Braga, um  Carlos Drummond, uma Clarice Lipector. Com a carência atual de valores desse nível, talvez quisessem assinalar com isso a futura desaparição da crônica.

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CARREIRA PROFISSIONAL

Meu pai queria ver os filhos encaminhados para as grandes profissões liberais ou, melhor ainda, para a carreira das armas (Exército, Marinha e Aeronáutica). Eu, a contra-gosto, andei namorando as três, mas a essa altura já estava de beiço caído pela Dama Branca da Literatura.

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OUTRO PSEUDO HAIKAI

Já não tenho auroras

Vivo em crepúsculos

A meia-luz é o meu amanhecer

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EXTREMA UNÇÃO

No artigo sobre Alphonsus de Guimaens, publicado aqui na semana passada, aludimos à observação de Dom Marcos Barbosa a respeito da expressão “olhos bentos”, que o poeta empregou no soneto VI da Segunda Dor de seu livro “Setenário das Dores de Nossa Senhora”. A ressalva de Dom Marcos (“óleos bentos”) é de todo pertinente e não sabemos por que as edições posteriores não emendaram o que teria sido um erro de revisão da primeira. Sabe-se que a extrema unção, sacramento ministrado aos enfermos in articulo mortis, em que o moribundo é ungido (untado) pelo sacerdote por seis vezes (nos olhos, narinas, ouvidos, boca, e nas mãos e nos pés), é feita mediante a umidificação dos dedos do celebrante numa espécie de plaqueta branca embebida de azeite puro de oliva. Este azeite, chamado óleo dos enfermos, é consagrado pelos Bispos na Quinta-feira Santa, na Missa Crismal, e é denominado comumente de santos óleos ou óleos bentos. Fica evidente que o poeta quis dizer que as mãos de Maria eram feitas da mesma essência pura desses óleos e não compará-las a improváveis olhos astrais e bentos, que seriam algo fantasmagóricos.

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