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Posts Tagged ‘Padre Teófilo’

Quero cumprir agora uma promessa que fiz neste blog há muito tempo. Em 15.03.2011, numa rentrée intitulada Regresso do Recesso, eu acrescentava, com o título Dois Panfletos, um segundo capítulo às Minhas Incursões Literárias, começadas em 14.09.10, ao fim da qual eu prometia uma continuação. Também essa segunda acabou com um Continua – que não se havia concretizado até agora. Pois aqui vai a parte III, que desde já considero o encerramento da série, o The End definitivo, sem continuas.

RAPSÓDIA HERVALENSE

Em janeiro de 1951, pedi demissão de meu primeiro emprego (que eu havia exercido por um ano e pouco) e resolvi passar umas longas férias em Ervália (ex-Herval), minha terra natal, no interior de Minas. Nós já morávamos no Rio desde 1945, mas meu pai lá ficara com sua farmácia filantrópica, incapaz de deixar aquela população que tanto se beneficiava de seus serviços gratuitos e à qual fornecia (fiado) receitas e medicamentos sem a menor possibilidade de retorno. A idéia inicial era ajudá-lo um pouco a receber essas contas antigas e a organizar o estoque atual, além de poder passar algum tempo com ele, já que fracassara a tentativa de convencê-lo a vir também para o Rio.  Durante meses, fiquei dormindo em casa de minha Avó, e pretendia ir todas as manhãs ajudar na farmácia, atender os clientes, vender remédios, cuidar da caixa. Mas minha atividade mesmo acabou sendo a de escrever na velha máquina Remington, que permanecia a maior parte do tempo sem função. Até o Quidinho [prometo um artigo inteiro sobre ele], nosso prático, que tirava as contas para serem enviadas aos devedores “esquecidos”, preferia escrever à mão, com sua bela caligrafia de contador, a se utilizar da barulhenta máquina, que ficava escondida sob uma enorme tampa negra de metal. Pois foi nessa máquina que compus minha Rapsódia Hervalense, versos simplórios que exaltavam a cidade e seu povo, falava sobre o jardim e as retretas, o Santo Cristo, a Biquinha e o Cemitério. Depois de pronto o texto, que em parte eu havia composto no Rio, curtindo as saudades e antecipando a vagabundagem das férias, resolvi imprimi-lo por minha conta e risco. Na Casa Paroquial havia uma prensa rudimentar, usada para imprimir avisos fúnebres e propagandas comerciais, que o Sebastião do Tietre distribuía na rua, trombeteando uma corneta acústica. O proprietário da tipografia era o Juca Valente, pai do então vigário paroquial, Pe.Teófilo de Andrade, com quem eu mantinha boas relações intelectuais e me iniciava no mundo da ópera, pois a igreja recebia nessa época uns vinis de grandes dimensões (capazes de tocar uma boa meia hora de música sem interrupção) e ficávamos tentando saber o que era Noi siamo gente avvezza e Nella tua freda stanza (que ouvíamos como soando fredazansa – que seria?)…

Fugindo de bancar a impressão, seu Juca Valente me confiou a tipografia para que eu mesmo compusesse o livreto. Creio que estava certo de que eu iria desistir diante das dificuldades, pois nunca tinha visto aquelas caixas de tipos, nem sabia sequer como movimentar a prensa. Fui aprendendo a compor os tipos à medida que os manuseava, tirando-os um a um dos caixotins e os alinhando no componedor. Logo estava conhecendo as versais e os versaletes, as entrelinhas, os quadratins, a galé e o paquê, que ia amarrando e guardando nas prateleiras de granéis.  Para não me enganar, fiz um “boneco” do livreto: ele teria 24 páginas, equivalentes a três páginas A4 divididas ao meio e dobradas em duas. Isto facilitava a composição gráfica, pois cada impressão compreenderia 4 páginas do libreto, de modo que a primeira impressão devia incluir as páginas 24 – 01 e 22 – 03;  a segunda, as páginas 20 – 5 e 18 –7, e assim por diante. O cuidado maior seria quando da impressão do verso dessas páginas, que eu não podia me enganar pondo-as de cabeça para baixo, nem hesitar em sua correspondência numérica. Era um quebra-cabeças, e certamente devo ter me exasperado quando as páginas saíam trocadas ou viradas ao revés. Fiz o cálculo para a aquisição do material, que iria adquirir na casa do Sr. Pedro Lopes, cuja loja vendia fazendas mas dispunha também de um escolhido setor de papelaria: lá comprei trinta folhas de papel almaço (o nome antigo do A4) para o miolo e dez folhas de cartão alaranjado (a cor disponível) para a capa.. Eu pretendia fazer apenas dez exemplares do livrinho, dedicado naturalmente à minha Avó, que receberia  o primeiro, encabeçando uma lista de ofertas com os nomes de meu pai, o Quidinho, o Pe. Teófilo, o Sr. Pedro Lopes, duas de minhas antigas professoras e duas de minhas atuais namoradas, que já conheciam os versos de antemão. Minha Avó apelidou-o de “catecismo”, por causa do formato e da cor da capa, e o trouxe para o Rio, onde veio morar e onde faleceu. Passados 60 anos, o dela e o meu foram os únicos exemplares que restaram da “tiragem”.

Ainda hoje leio com certa emoção estas rimas ingênuas, a maioria delas em redondilha menor, salvo os sonetos que já eram decassilabos.  E A Biquinha continua sendo para mim um dos versos mais puros e sentidos que a minha juventude concebeu. Rio-me da pretensão do título, ou melhor, das “divisões” da “obra”. Se ficasse só em Rapsódia, tudo estaria bem, pois as rapsódias compõem-se em geral de um único movimento, explorando motivos folclóricos ou tradicionais. Mas me meti a sabichão e introduzi outros “movimentos” com nomes extraídos de uma terminologia sinfônica, incabíveis no caso. No entanto, o que mais me surpreende em tudo isto é a epígrafe, em latim, extraída do Gênesis XIX-17: Salve animan tuam: noli respicere post tergum, que o tipógrafo amador não conseguiu colocar à direita, e cuja tradução poderia ser: Salva a tua alma e não olhes para trás. Estranha maneira de homenagear a minha terra! Ou quem sabe eu quis, com o livreto, despedir-me dela?!…

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