Quando estava traduzindo a poesia completa de Rimbaud, lembro-me que um de seus primeiros poemas (ele tinha 16 anos em 1870) chamou-me a atenção pela beleza da descrição, do décor e de sua habilidade em manejar os versos de oito sílabas. Além disso, algo me dizia que o tema versado – uma jovem que dorme sendo observada – não me era estranho e que já o teria visto em obra alheia.
Eis o original de Rimbaud
PREMIÈRE SOIRÉE
– Elle était fort déshabillée
Et de grands arbres indiscrets
Aux vitres jetaient leur feuillée
Malinement, tout près, tout près.
Assise sur ma grande chaise,
Mi-nue, elle joignait les mains.
Sur le plancher frissonnaient d’aise
Ses petits pieds si fins, si fins.
– Je regardai, couleur de cire,
Un petit rayon buissonnier
Papillonner dans son sourire
Et sur son sein, – mouche au rosier.
– Je baisai ses fines chevilles.
Elle eut un doux rire brutal
Qui s’égrenait en claires trilles,
Un joli rire de cristal.
Les petits pieds sous la chemise
Se sauvèrent: “Veux-tu finir!”
– La première audace permise,
Le rire feignait de punir !
– Pauvrets palpitants sous ma lèvre,
Je baisai doucement ses yeux:
– Elle jeta sa tête mièvre
En arrière: “Oh! c’est encor mieux!…
Monsieur, j´ai deux mots à te dire…
Je lui jetai le reste au sein
Dans un baiser, qui la fit rire
D´un bon rire qui voulait bien…
Elle était fort déshabillée
Et des grands arbres indiscrets
Aux vitres jetaient leur feuillée
Malinement, tout près, tout près.
E como o traduzi:
PRIMEIRA TARDE
Era bem leve a roupa dela
E um grande ramo muito esperto
Lançava as folhas na janela,
Maldosamente perto, perto.
Quase desnuda, na cadeira
Cruzava as mãos, e os pequeninos
Pés esfregava na madeira
Do chão, libertos, finos, finos.
– Eu via pálido, indeciso,
Um raiozinho em seu gazeio
Borboletear em seu sorriso
– Mosca na rosa – e no seu seio.
– Beijei-lhe então os tornozelos.
Deu ela um grito inatural
Que se esfolhou em ritornelos,
Um belo riso de cristal.
Os pés na camisola, arisca,
Logo escondeu: “Queres parar!”
– Primeira audácia que se arrisca
E o riso finge castigar!
Sinto-lhe os olhos palpitantes
Sob os meus lábios. Sem demora
Num de seus gestos petulantes,
Volta a cabeça: “Ora essa agora!…
Escuta aqui que vou dizer-te…”
Mas eu lhe aplico junto ao seio
Um beijo enorme, que a diverte
Fazendo-a rir agora em cheio…
Era bem leve a roupa dela
E um grande ramo muito esperto
Lançava as folhas na janela,
Maldosamente perto, perto.
Um dia, dei com o tal outro poema, quando examinava a obra do nosso Castro Alves:
ADORMECIDA
UMA NOITE, eu me lembro… Ela dormia
Numa rede encostada molemente…
Quase aberto o roupão… solto o cabelo
O pé descalço do tapete rente.
´Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina…
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.
De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos – beijá-la.
Era um quadro celeste!. . . A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia …
Quando ela serenava… a flor beijava-a …
Quando ela ia beijar-lhe… a flor fugia…
Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavarn duas cândidas crianças…
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!
E o ramo ora chegava ora afastava-se…
Mas quando a via despeitada a meio,
P’ra não zangá-la… sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio …
Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
“Ó flor! – tu és a virgem das campinas!
“Virgem! – tu és a flor da minha vida!…”
S. Paulo, novembro de 1868
Vejam as semelhanças: a cena ocorre ao cair da noite (soirée) em ambos os casos; uma jovem sumariamente vestida (fort déshabillée), seminua (mi-nue), o roupão quase aberto, está reclinada numa rede (em Castro) e numa poltrona (em Rimbaud). Grandes árvores indiscretas (em R.) e grandes ramos indiscretos de um jasmineiro (em C. A) penetram pela janela (em ambos) aproximando-se da face da jovem como para beijá-la. E há o detalhe dos pés descalços que roçam o assoalho (em R.) e ficam rentes ao tapete, logo ao chão (em Castro). Mas a partir daí as semelhanças acabam: o nosso poeta permanece sonhador, contemplando a jovem (virgem), ao passo que o matreiro Rimbaud beija-lhe os tornozelos, e, sem parar por aí, acaba por beijar-lhe o seio. A impressão é que se trata de um poema e sua tradução ou de duas traduções de um mesmo poema.
Ora sabemos que Rimbaud escreveu Première Soirée em maio/junho de 1870 com o título de Trois baisers (Três beijos) e conseguiu publicá-lo em 13 de agosto do mesmo ano no jornal satírico La Charge. Quanto a Castro Alves, também sabemos que o poema foi escrito em São Paulo em novembro de 1868 (a data está consignada no final dos versos) e publicado em seu primeiro livro Espumas Flutuantes em 1870.
Claro que, embora sendo ambos do mesmo ano, nem Rimbaud leu Castro Alves nem este sabia sequer da existência de Rimbaud. Aliás, os poemas de Rimbaud só começaram a ser conhecidos de uma pequena elite literária na França depois que Verlaine publicou em 1884 o seu Les poètes maudits com a transcrição de uns poucos poemas de Rimbaud, Tristan Corbière e Stéphane Mallarmé. E Castro Alves morreu um ano depois da publicação de seu livro em 1871.
A conclusão lógica era que ambos haviam se inspirado em um mesmo poema ou que o assunto não passava de clichê da época. Foi a edição fac-similar de Espumas Flutuantes, feita pela Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro em 2011, que me deu a pista. O poema de Castro Alves vem antecedido de uma epígrafe, de uso muito comum na época:
Ses longs cheveux épars la couvrent tout entière.
La croix de son collier repose dans sa main,
Comme pour témoigner qu’elle a fait sa prière,
Et qu’elle va la faire en s’éveillant demain.
ALFRED DE MUSSET
(Em tradução literal: Seus longos cabelos esparsos cobriam-na inteiramente / A cruz de seu colar repousa em sua mão / Como para testemunhar que ela fez sua prece /E que irá fazê-la de novo ao despertar.)
Ali estava a fonte: ambos se inspiraram num poema de Alfred de Musset (1810-1897), um dos poetas românticos franceses de maior projeção em sua época. E qual seria o poema? Depois de alguma pesquisa, cheguei a Rolla (1833), poema declamatório que procura reinterpretar o mito de Don Juan. Nele há a descrição de uma adolescente adormecida (Elle dort toute nue et la main sur son cœur) e também dos ditos ramos indiscretos (Regardez cette chambre et ces frais orangers,/ Ces livres, ce métier, cette branche bénite/ Qui se penche en pleurant sur ce vieux crucifix), uma virgem, como em Castro Alves, o nosso poeta que conhecia bem a obra de Musset e foi mesmo seu tradutor. O poema é um rolo só e esse Rolla do título é uma espécie de Don Juan francês que está prestes a seduzir a jovem, vendida pela mãe. Impossível descrever todo esse lio. Mas, onde entra aqui a criatividade de Rimbaud? Eu sabia bem que ele abominava a poesia de Musset. Como seria então possível que se inspirasse nela para compor seus poemas? É que Rimbaud começou a fazer versos imitando Hugo, Théodore de Banville e Alfred de Musset. Mas em sua vertiginosa evolução poética logo ultrapassa seus modelos e passa a criticá-los. Em 24 de maio de 1870, por exemplo, expede uma carta laudatória a Banville, pedindo-lhe a publicação de seus versos Credo in unum (“Caro Mestre, ajude-me: Levante-me um pouco: sou jovem: estenda-me a mão”), mas logo em 14 de julho de 1871 escreve de novo ao mesmo Banville criticando-lhe a “poesia inócua” e instigando-o a escrever uma “poesia utilitária”; e ainda no fim desse mesmo ano, já em Paris, levado por Verlaine a conhecer o Mestre, acaba por considerá-lo un vieux con! (algo como Um velho babaca!). Quanto a Musset, apesar de lhe ter imitado a dicção oracular e mitológica, o que deseja realmente provar com seu Credo in unum (depois rebatizado como Soleil et chair – Sol e carne) é que ele, Rimbaud, é capaz de fazer MELHOR, de enriquecer o quadro, de suplantar o mestre. A mesma coisa deve ter acontecido com A Primeira Tarde, em que o tema tem um tratamento eroticamente superior ao do modelo. Aliás, sobre Musset, ele já dissera em 15 de maio de 1871 numa carta a seu amigo Paul Demeny: “Musset é catorze vezes execrável para nós, gerações sofredoras e obcecadas pelas visões, insultadas por sua angelical preguiça! Ó! Os contos e provérbios insípidos! Ó as noites! Ó Rolla, ó Namouna, ó a Taça! Tudo é francês, ou seja, odiento ao grau supremo; francês, não parisiense (…) Qualquer jovem empregado de mercearia é capaz de desembuchar uma apóstrofe à la Rolla; todo seminarista traz suas quinhentas rimas no segredo de um caderno (…) Musset não soube fazer nada: havia visões por trás da gaze das cortinas: ele fechou os olhos para elas.” E parece nos dizer: Mas eu, eu sei ver além! Vejam só o que eu consigo fazer com a história da menina adormecida, inocentemente fustigada pelos ramos indiscretos!!!