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Posts Tagged ‘machado de assis’


É quase certo que o nosso Machado de Assis nunca ouvira falar de William Blake (1757-1827), quan­do publicou as suas Phalenas em 1870. Isso porque a obra de Blake permaneceu desconheci­da do público, mesmo em sua Londres natal, por quase meio século depois de sua morte. Al­guns de seus poemas foram li­dos, em vida do autor, apenas por uns poucos privilegiados que os manusearam em belos manuscritos em folhas soltas gravados e coloridos pelo pró­prio Blake: as suas Illuminated plates. Mas somente em 1874, quarenta e sete anos após sua morte, é que saiu a primeira edi­ção impressa de suas Canções da inocência e da experiência, de que vamos tratar. Cumpre dizer que já em 1863 esboça-se na Inglaterra o primeiro reco­nhecimento da obra genial de Blake, tanto a pictórica quanto a poética, quando Alexander Gilchrist publica a Life of Wil­liam Blake na qual afirma (em­bora timidamente e atribuindo a opinião a Fuseli e Flaxman, artistas contemporâneos de Bla­ke), que “tempo virá em que as primorosas gravuras de Blake serão tão apreciadas e enalteci­das quanto são hoje as de Mi­guel Angelo”. No livro, Gilchrist nos revela principalmente o homem-Blake, um gênio autodidata, rigorosamente do povo, que nasceu pobre e viveu pobre, sujeito em sua miséria a crises de loucura mansa segui­das de visões, que iriam consti­tuir o corpus posterior de sua estranha filosofia mística.

Além de poeta era gravador e seu talento foi reconhecido por um grupo de importantes figuras da época, que infeliz­mente preferiam encomendar­-lhe gravuras e ilustrações para livros alheios, às vezes medío­cres, temerosos de bancar os próprios escritos do poeta que lhes pareciam demasiado excên­tricos. Sua cabeça andava a mil, cheia de sonhos e mitos, e vários testemunhos de pessoas que o conheceram falam dele como de um verdadeiro “profeta vivo”; um visionário que tomava Swedenborg por mestre, mas não um mero nefelibata: tinha os pés no chão e enxergava as injustiças sociais de seu tempo, a escravização das camadas carentes de trabalho que afluíam a Londres com a industrializa­ção dos grandes centros; pena­lizava-o ver os pobres meninos que limpavam chaminés mor­rendo à míngua como anjinhos sujos de fuligem.

Os primeiros poemas de Bla­ke são letras de canções que ele próprio cantava, mas cujas me­lodias nunca foram escritas e re­fletem sua visão religiosa (mui­to pessoal) do mundo, sua mi­tologia, seus anseios sociais. Mas essa lírica é hoje posta em pé de igualdade com a poesia de Shakespeare, Chaucer e Milton, cujo Paraíso perdido Blake costumava ler em companhia da espo­sa, em trajes de Adão e Eva, embaixo da parreira que havia em seu quintal e que nunca per­mitiu fosse podada. Via na re­ligião um freio, um elemento de coerção, de inibição da ativida­de criadora e, se era capaz de entusiasmar-se com a Revolução francesa e com a americana (que celebrou em poemas), pensava antes e mais incisivamente na libertação do indivíduo através da conscientização de seu papel na sociedade e no mundo. Pregou a libertação sexual e era adepto de um lugar mais representativo para a mulher no lar e no trabalho. Seu vocabulário é o que há de mais simples e segue o modelo da Bí­blia (sua leitura predileta) no que respeita à força da imagem e do símbolo. Mas a poesia de Blake, pela sua simplicidade, e a sua filosofia, pelo seu caráter esdrúxulo, foram permanecen­do no limbo, só dele resgatadas já em nosso século, quando W. B. Yeats publica em 1903 seu ensaio William Blake and the Imagination, G. L. Keynes em 1925 e 1927 suas edições dos Writings em 3 vols. e a Prose and Poetry, M. Wilson em 1927 e T. Wright em 1929 as duas res­peitáveis biografias do poeta, e em 1947, já nos domínios uni­versitários, Northrop Frye sua Fearful Simetry: a Study of Wil­liam Blake. Igualmente, só no princípio do século o nome de Blake atravessa a Mancha: os primeiros estudos franceses de sua obra (F. Benoit e P. Berger) datam de 1906 e 1907.

Mesmo um leitor de eleição, que dominava línguas estrangeiras, como André Gide, só se inteira da obra fundamental de Blake, O Casamento do Céu e do Inferno, em 1922, quando escreve em seu Journal a 16 de janeiro: “Como um astrônomo que determina a existência de um astro cujos raios ainda não observou diretamente, eu pressentia Blake, mas não me dava conta ainda de que ele pertencesse à mesma constelação de Nietzsche, Browning e Dostoiévski, talvez a estrela brilhante desse grupo – sem dúvida alguma a mais estranha e a mais remota”. O entusiasmo de Gide foi de tal monta que já em junho daquele ano estava revendo as provas de sua tradução da obra… No Brasil, a chegada de Blake certamente ocorreu bem mais tarde, talvez na década de 40, com algum artigo de Carpeaux, e as primeiras traduções que vão aparecer nos anos ´50.

Nesse contexto, pois, é quase impossível que Machado de Assis, não obstante sua familiaridade com poetas da estirpe de Poe, tivesse conhecimento seja mesmo da existência de Blake, para não falarmos do texto em inglês de seus poemas. No entanto, há na obra de Machado, uma poesia, publicada na edição de Phalenas, de 1870, que apresenta uma curiosa semelhança com um dos mais belos e sintéticos poemas de Blake. Trata-se de The sick rose, constante das Canções da expe­riência, cujo original damos a seguir, ao lado de uma tradução quase literal, mantendo o ritmo (equivalente ao nosso verso de 5 sílabas), mas sem as rimas dos versos pares existentes em in­glês:

Rose, thou art sick!

 The invisible worm,

 That flies in the night,

 In the howling storm,

 

Has found out thy bed

Of crimson joy.

And his dark secret love

Does thy life destroy.

 

(Oh! Rosa, estás doente!

O verme invisível

Que voa de noite

No uivar da tormenta

 

Achou tua alcova

De rútilo gozo:

Negro amor oculto

Te destrói a vida.)

 

O mais curioso é que a poesia de Machado também se estrutura em quadras, só que quatro em vez de duas, com versos setissílabos e rimas do esquema abab/abba:

 

Existe uma flor que encerra

Celeste orvalho e perfume.

Plantou-a em fecunda terra

Mão benéfica de um nume.

 

Um verme asqueroso e feio

Gerado em lodo mortal,

Busca essa flor virginal

E vai dormir-lhe no seio.

 

Morde, sangra, rasga e mina,

Suga-lhe a vida e o alento;

A flor o cálix inclina;

As folhas, leva-as o vento.

 

Depois, nem resta o perfume

Nos ares da solidão…

Esta flor é o coração,

Aquele verme o ciúme.

 

Os elementos constituintes do poema de Blake e de Machado são os mesmos: o verme (invisível, em Blake; asqueroso, em Machado), que busca/acha a rosa/flor, vai dormir-lhe no leito/seio e a destrói/suga-lhe a vida. A diferença fundamental é que Blake está falando efetiva e sinteticamente da rosa e do verme, enquanto Machado procura nesses elementos os símiles do coração e do ciúme. Embora o tema seja um clichê do arsenal lírico/romântico, não se pode negar que a proximidade seja curiosa#.

(Posfácio de “O Casamento do Céu e do Inferno”, de William Blake, Editora Hedra Ltda., SP, 2010)

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