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Durante a II Guerra Mundial, Virginia Woolf, que se refugiara dos bombardeios de Londres em Monk´s House, sua casa de campo em Rodmel, escreveu à sua amiga Ethel Smyth: “Que estranho é ser uma mulher do campo depois de tantos anos sendo uma londrina típica! É possível que esta seja a primeira vez em minha vida que não tenha um teto em Londres… Você nunca compartilhou de minha paixão por essa grande cidade. No entanto, ela é tudo quanto, em algum nicho estranho de minha mente sonhadora, representa Chaucer, Shakespeare, Dickens. Eis o meu único patriotismo.” Essa paixão pela cidade, que Virginia mais de uma vez evoca em suas obras maiores, tornou-se patente pela descoberta em 2005 de um relato (conto? crônica?) na Biblioteca da Universidade de Sussex, no sul da Inglaterra, que viria completar a série de cinco outros  já publicados nos anos ´70 sob o título The London Scene (Cenas Londrinas), mas que se tornou definitivamente uma obra rara pouco tempo depois de sua publicação. Escritas entre 1931 e 1932, as cinco narrativas descrevem minuciosamente os passeios de Virginia pelas docas do East side, seguindo contra a corrente o curso do rio para o sul, até a chegada ao cais de desembarque de Tilbury, em plena agitação de sua vida comercial. Em outro percurso, a partir da buliçosa Oxford Street e a extravagante variedade de seu comércio excessivamente popular, a caminhada segue e serpenteia pelos grandes edifícios da City e adjacências, e Virginia se detém a contemplar a magnificência da catedral de St. Paul e a austeridade da abadia de Westminster. Daí prossegue em busca das casas de escritores ilustres e termina com um passeio insólito pelas “salas dos homens” da Câmara dos Comuns. O sexto relato – agora encontrado pela editora londrina Emma Cahill, que pretendia reeditar The London Scene – denomina-se Portrait of a Londoner (Retrato de uma londrina) e suspeita-se que sua exclusão dos primitivos cinco se deva ao fato de ser o único em que o protagonista é um personagem fictício. Informa Mrs. Cahill: “A personagem do conto é a senhora Crowe, uma londrina típica, homenagem da autora à vida cotidiana da mulher inglesa”.

Talvez esse último relato represente uma espécie de contraponto ao tom excessivamente masculino que Virgina Woolf havia assumido nas descrições anteriores. Queremos dizer com isto – como se verá em seguida – que a visão inicial, inteiramente objetiva e quase fotográfica da autora, abre aqui um pequeno espaço para as suas introspecções e considerações de cunho social. Segundo Lúcia Miguel Pereira, uma de suas mais argutas analistas no Brasil, “há em Virgina Woolf uma crítica e uma romancista tão diversas, por vezes tão opostas entre si(…): uma é tão incisiva e lógica, como lírica e fluida a outra; aquela afirma, define, usa processos diretos, palavras precisas; esta sugere, esbate, avança sinuosamente por meio de frases algum tanto preciosas, irisadas, sutis (…) Com aquele [espírito racionalista] fez crítica, com esta [sensibilidade feminina] romances. Toda graça, às vezes até um pouco maneirosa, toda suavidade e meiguice se mostra na ficção; toda clareza, ousadia e penetração aparece nos ensaios”.

Os leitores brasileiros estão mais familiarizados com as manifestações dessa primeira característica: todos os grandes romances de Virgínia foram traduzidos em português, às vezes em até mais de uma versão, e os aspectos marcantes de sua vida relatados em pelo menos três biografias. Mas seus ensaios, como o precioso The Commun Reader, e também A room of one´s own, só foram desfrutados por uns poucos e serão ínfimos os happy few que tiveram a oportunidade de, em sua companhia, admirar a visão destas Cenas Londrinas. Nesta obra – quase totalmente desconhecida e sem dúvida uma de suas mais peculiares, já que se arregimenta entre as não-ficcionais – o leitor terá agora oportunidade de apreciar esse outro aspecto da produção virginiana, que até então permanecia rarefeito.

Para os poucos que não se aprofundaram no conhecimento da personalidade da autora, alguns lances de sua vida, no entanto, são necessários de se rememorar para o justo entendimento dessa “dicotomia” a que acima nos referimos: Virginia (Adeline V. Stephen) Woolf (1882-1941) nasceu em Londres, e era filha do crítico e historiador Leslie Stephen (1832-1904); sua mãe, Julia Duckworth morreu quando Virginia tinha 13 anos, deixando-a com os primeiros sinais de depressão, agravados com a morte do pai, nove anos depois, quando ela tentou o suicídio atirando-se pela janela. Seus escritos biográficos, durante muito tempo inéditos, revelam que aos seis anos sofreu abuso sexual por parte de seu meio-irmão, Gerald. Começou a escrever profissionalmente em 1905, de início para o Times Literary Supplement, artigos de crítica e contos, nem sempre assinados, o que tem dado grande trabalho de identificação aos seus pesquisadores. Em 1909, Giles Lytton Stranchey (1880-1932), escritor e historiador, dândi e homossexual, pediu-a em casamento, mas o pedido, embora aceito, foi retirado em seguida, e Virginia acabou se casando logo depois com o intelectual Leonard (Sidney) Woolf. O casal foi viver numa casa de campo em Sussex, onde Virginia escreveu seu primeiro romance The Voyage Out, publicado em 1915 e editado entre nós com o título de “A Viagem”. Os Woolfs montaram uma pequena editora para uso pessoal, que depois se tornou a prestigiosa The Hogarth Press, editando obras de grandes nomes da literatura inglesa como T. S. Eliot, Katherine Mansfield, E. M. Forster, e traduzindo para o inglês textos de Freud, Proust e Rilke. Em 1923, retornaram a Londres, e Virginia voltou a ser acometida por acessos de loucura e constante desconforto com sua condição de mulher, o que a levou a se internar várias vezes para tratamento. Em 1925, já mantendo uma estranha atração por sua irmã, Vanessa, veio a conhecer a aristocrata bissexual Vita (Victoria) Sackville-West (1892-1962), casada com o homossexual Harold Nicholson, e iniciou com ela um relacionamento platônico que durou dezoito anos e a quem dedicou o romance “Orlando” (1928). Sabe-se que os respectivos maridos também trocavam figurinhas e outras coisas entre si. Em 1932, com a morte de seu primeiro pretendente, Lytton Stranchey, as crises depressivas de Virginia retornaram, mais frequentes. Desesperada com seus tomentos existenciais, recorreu ao suicídio, redigindo três cartas, duas ao marido, numa das quais dizia: “Sinto que não podemos atravessar outra dessas crises terríveis. Não vou me recuperar desta vez. Começo a ouvir vozes e não consigo me concentrar. Então estou fazendo o que me parece ser  melhor. Você me proporcionou a maior felicidade possível… Não posso mais lutar, sei que estou destruindo a sua vida, que sem mim você poderá realizar-se.”  No dia 28 de março de 1941, Virginia encheu de pedras os bolsos do seu casaco e afogou-se no rio Ouse, perto de sua casa. O corpo foi encontrado três semanas depois numa das margens e suas cinzas enterradas sob um dos grandes olmeiros da propriedade onde viveu.

Talvez por ter projetado em sua obra alguns desses caracteres ambivalentes de sua personalidade, o que chamamos aqui de “visão masculina” da autora, ao falarmos de Cenas Londrinas, é que nelas, como observou acima Lúcia Miguel Pereira, a clareza do estilo, a precisão do vocabulário, inclusive técnico, a apreciação de aspectos materiais de maior interesse para o público masculino que para o feminino, predominam sobre a conhecida fluidez e sutileza da autora enquanto ficcionista. A realidade ensaística de Virgínia como que se contrapõe à indecisão, à ambigüidade de sua obra literária. A visão aqui é analítica, quase científica, sem obscurecer, no entanto, sua “sensibilidade de ver”. Essa sensibilidade (mais exatamente essa hipersensibilidade) – decorrente de sua indecisão ou ambigüidade sexual, seus traumas e depressões – reflete-se visivelmente em sua literatura. Diga-se que ela foi um dos primeiros autores ingleses a pôr em prática o stream-of-conciousness (aproximadamente, o fluxo do consciente), abolindo a exposição sistemática e linear da ação, da descrição e/ou do enredo, e subvertendo o conceito do tempo literário. Ou, nas palavras de E. M. Forster, “ela impulsionou a língua inglesa um pouco mais para dentro da escuridão”.

Tal obscuridade – essa “escuridão” estilística ou psicológica – inexiste em seus ensaios: neles (ou aqui no caso de Cenas Londrinas) tudo é claro e objetivo, e embora a narrativa não tenha a frivolidade dos guias turísticos, o leitor se sente na companhia de uma mulher inteligente e sensível que o leva a “conhecer sua cidade” no que ela tem de mais objetivo e “inglês”: seu comércio, sua navegação, seus edifícios públicos, seus homens ilustres, suas casas legislativas. Não há jardins, nem flores, nem líricos passeios à margem do Tâmisa; ali podem-se ver apenas barcaças e navios que vão e vêm em suas viagens comerciais, muito lixo, armazéns e depósitos de mercadorias. E o leitor certamente se surpreenderá com a curiosidade da autora, capaz de levá-la, gambiarra à mão, a percorrer as extensas adegas subterrâneas onde envelhecem, armazenados, milhares de tonéis de vinho. A descrição do trabalho das gruas, com seus movimentos pendulares e oscilantes, apreendendo e transladando as cargas, além de configurar um quadro naturalista perfeito, faz vibrar, aqui e ali, uma nota quase humana, como se a autora visse nesses guindastes os futuros substitutos dos estivadores.

Embora na carta à sua amiga, a sufragista e compositora Ethel Smyth, tenha Virginia Woolf pretendido dizer que seu conceito de “patriotismo” se limitava a associar o país à evocação da grandeza de seus vultos ilustres, como Chaucer, Shakespeare e Dickens – talvez pelo seu desencanto com os rumos nada pacifistas pelos quais a Inglaterra enveredou logo ao término da I Grande Guerra – o certo é que a escritora, como se pode depreender desta primeira narrativa, tinha a ingênua noção de que os países pobres cresciam e prosperavam pelos benefícios que a Grã Bretanha lhes proporcionava adquirindo seus produtos. Ela vê a chegada de mercadorias vindas de regiões remotas do globo, para serem desembarcadas nas docas do Tâmisa,  como uma benesse para os países que as exportavam, e não como a espoliação a que o Império  submetia os colonizados pela imposição de preços aviltantes e a manutenção das condições primitivas de produção e exploração de seus produtos.

Na descrição que faz do tumultuado comércio ambulante da Oxford Street de seu tempo, Virginia não deixa de acrescentar, com  certo laivo de elitismo, que essa rua “não é a mais distinta de Londres” e que os dândis e moralistas “têm seus nichos secretos próximos a Hannover Square”. As novas fortunas que edificaram suntuosas  construções ao longo da via fizeram-no segundo o espírito da época, ou seja frágeis e ostensivas, bem diversas das sólidas mansões dos antigos Percys e Cavendishes do Strand. Mas Virginia não é saudosista e arremata: “O encanto da Londres moderna é ser construída para não durar, para passar”. E no burburinho do tráfego e da intensa movimentação dos ambulantes, seus olhos percucientes descobrem uma cena inusitada: “ver uma mulher parar e acrescentar uma tartaruga a seu monte de pacotes talvez seja a visão mais rara que olhos humanos podem divisar”.

Nas perambulações em visita a casas de homens famosos, Virginia tem, em Cheyne Row nº 5, onde viveu Thomas Carlyle,  Jane Welsh e Helen, sua única empregada, a visão perfeita das condições precárias em que viveram esse gênio da historiografia e da crítica inglesas, e sua   idolatrada esposa – uma casa sem água encanada, sem luz e sem gás, onde o inverno era a única das quatro estações do ano. Vendo na casa o retrato perfeito de seus antigos e ilustres ocupantes, a autora termina com a curiosa observação de que Carlyle não teria sido Carlyle se tivesse vivido em pleno conforto, com luz abundante e água quente nas torneiras.

Interessante é o paralelo que faz entre a catedral de St. Paul e a abadia de Westminster, comparando a primeira à “confusão democrática da rua”, e a segunda a uma “brilhante assembléia de homens e mulheres da mais alta distinção”. Aqui não foi possível disfarçar sua preferência elitista, no caso agravada pela  opção religiosa. E é com algum escárnio que descreve a figura de parlamentares anônimos e decerto provincianos a fazerem perguntas desembaraçadas ao Primeiro Ministro e outros membros do Governo.

A narrativa final, Retrato de uma Londrina, é o epílogo perfeito das observações anteriores. Aqui, no entanto, o olhar da autora não se fixa em objetos, lugares ou instituições, mas na figura humana típica da mulher de classe média inglesa. E esta adquire impressionante nitidez, talvez mais do que as casas e monumentos, exatamente por ser uma ficção; é um personagem, uma criação de Virginia Woolf, mas com a nítida intenção de criar um clichê da sociedade inglesa, com sua tendência à bisbilhotice, à afetação de insensibilidade e obediência às convenções. Figura emblemática, síntese deste conjunto de retratos perfeitos.  Creio que estas Cenas Londrinas ficariam incompletas sem a presença da Sra. Crowe, pois é exatamente descrevendo-a que a autora conseguiu dar ao leitor a visão de um microcosmo representativo de toda uma nacionalidade. Feliz do leitor brasileiro que poderá agora apreciar tais relatos au grand complet.#

 

 

(Apresentação do livro Cenas Londrinas, de Virginia Woolf, coleção Sabor Literário, J.O editora, 2005)

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