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Posts Tagged ‘Leaves of Grass’

 

A poesia de Whitman teve seu momentum ao ser contraposta ao elegismo espiritual de Rilke, já que formalmente se exprimia pelo mesmo tipo de derramamento versicular-litúrgico, só que exaltava não as qualidades excelsas, angelicais do homem, mas ao contrário sua importância biológica, corpórea, o ser enquanto carne e sangue, movendo-se num meio social. Suas Leaves of Grass, publicadas inicialmente em 1855, só por volta de 1920 começaram a ser criticamente apreciadas em seu país, pois durante as três décadas precedentes o livro foi visto sob as mais severas reservas e objurgações, principalmente pela ousadia de introduzir na linguagem poética referências sexuais até então consideradas tabus.

Críticos-jornalistas (hoje desconhecidos) como Griswold e Higginson chamaram depreciativamente a obra de Whitman de Carniça, e um certo Calvin Beach chegou a sugerir que o título apropriado da obra devia ser O lixo da sarjeta ou Os guinchos do chiqueiro.  O anti-puritanismo de Whitman, amplificado por essas aleivosias, tornou sua obra o alvo de perseguições policiais e chegou a acarretar-lhe a demissão do modesto cargo público que ocupava. A única voz de responsabilidade literária que se ergueu a seu favor na época foi a de Ralph Waldo Emerson, que saudou o livro como “a mais extraordinária peça de inteligência e sabedoria que a América já produziu”, embora ele próprio viesse, em 1860, na terceira reedição ampliada da obra, aconselhar o corte de alguns poemas da nova série pois, segundo ele, o público “não estava preparado para um poeta que celebrava as prostitutas e a masturbação”.

A linguagem absolutamente original de Whitman, que misturava ao vocabulário tradicional canônico da língua inglesa as mais corriqueiras e “a-poéticas” expressões, sua grandiloquência oratória desabrida, a temática polifônica, a franqueza em falar sem embuços sobre os relacionamentos humanos – fizeram de As Folhas de Relva um dos livros mais originais e poderosos da literatura mundial. Hoje o valor dessa obra é chancelado pela soi-disant autoridade máxima da crítica de língua inglesa, Harold Bloom, que não hesita em ver Whitman como centro do cânone literário norte-americano.

Desde muito se esperava a edição completa dos poemas de Whitman em português, e agora [2005], no 150º aniversário da publicação de As Folhas de Relva, a Editora Iluminuras nos oferece os doze poemas iniciais (que compunham a primeira edição), traduzidos por Rodrigo Garcia Lopes, trabalho que embora ainda não ponha o leitor brasileiro diante da obra poética conjunta do bardo americano, pelo menos contribui com uma significativa amostragem dela, acrescida de longo estudo crítico sobre sua importância literária e a vida do autor, que dispensa navegações pela Internet.

O interesse pela obra de Whitman entre nós pode ser assinalado desde 1945, quando Luís da Câmara Cascudo publicou n´A República, de Natal, três artigos que incluíam as traduções dos poemas I hear America singing, The base of all Metaphysics e  For you, o Democracy. Já nessa época, o nosso grande foclorista reconhecia em Whitman “um dos mais difíceis originais para tradução. Um Whitman traduzido é uma diminuição infalível. O grande, imenso poeta, só o será em inglês, na plenitude de sua originalidade poderosa, manejando os recursos do seu gênio, acumulador de nuvens e espalhador de ritmos maravilhosos.”

Seguindo-lhe os passos, Gilberto Freyre, em uma conferência na Sociedade dos Amigos da América, em maio de 1947, referia-se à originalidade e ao pioneirismo daquele “anglo-americano que primeiro exaltou em poema a figura de uma negra” e, analisando a atuação poético-política do vate, dizia que, “não obstante sua confiança no homem comum, Whitman enxergou sempre a necessidade, nos postos de comando – de puro comando, nunca de domínio – do homem incomum.” Toda a digressão de Freyre é focada na conceituação de Democracia e nas interpretações  políticas de Whitman, para quem o “barco democrático não devia ser feito só para os ventos bons”, mas para enfrentar igualmente as tempestades (Ship of the hope of the world – Ship of Promise / Welcome the storm – welcome the trial).  Mas Gilberto Freyre não se inibe contudo  de abordar a questão-chave do homossexualismo de Whitman, como neste trecho: “O que teve parece que foi principalmente a coragem de grandes amizades com outros homens (algumas – admita-se – de remoto ou imediato fundo homossexual) ao lado de entusiasmos por ‘mulheres perfeitas’. O que põe em destaque seu bi-sexualismo de atitude; e o ‘narcisismo’ de exaltar a beleza do corpo humano – a do homem tanto quanto a da mulher – e não apenas a graça e o encanto do corpo da mulher visto com olhos de homem. Um homossexual inveterado dificilmente teria escrito poema tão compreensivo do sexo oposto e, ao mesmo tempo, tão masculino em sua atitude como A woman waits for me. Apenas, a mulher por ele idealizada não era a lânguida, a frágil, a excessivamente delicada das civilizações caracterizadas por um tal domínio econômico do Homem sobre a Mulher em que esta é antes um sub-sexo do que o sexo oposto”.

Ainda no campo das apreciações críticas, o nosso sempre citado Otto Maria Carpeaux, em sua História da Literatura Ocidental, de 1959, estabelece: “Julgava-se ‘Poeta do Povo’, mas nunca foi lido nem querido pelo povo, que não gosta do verso livre e da ‘melodia permanente’. Seja porque o povo teima em adorar a métrica tradicional, seja por qualquer outro motivo que a sociologia da história literária terá que esclarecer, o ‘poeta da democracia’ ficou um ‘poet´s poet´, assim como Verhaeren, Claudel, Romains e todos os inúmeros whitmanianos hispano-americanos”.

Propriamente quanto à tradução dos poemas, as contribuições mais próximas vieram de Oswaldino Marques com seus livros Cantos de Walt Whitman e Videntes e Sonâmbulos (agora reeditado com o título O Livro de Ouro da Poesia dos Estados Unidos, no qual figuram 6 poemas de Whitman traduzidos por Manuel Ferreira Santos, por Cascudo — o já citado O Fundamento de toda Metafísica —, por Emílio Carrera Guerra, por Pompeu de Souza e o próprio Oswaldino). Geir Campos, que já nos dera em 1953 amostras de Rilke, reaparece em 1964 com Folhas de Relva (da Civilização), que na reedição pela Brasiliense traz o título de Folhas das Folhas de Relva (23 poemas) e um prefácio acoplado de Paulo Leminski, alheio à tradução de Geir. Consigne-se ainda o Song of myself / Canção de mim mesmo, em tradução de André Cardoso para a coleção Biblioteca Alumni, da Imago, que, destinada a uso escolar, mantém embora uma linguagem muito próxima do original.

A contribuição mais significativa até agora, em quantidade e qualidade dos poemas traduzidos, se deve à edição da Zahar (1988) de Walt Whitman – a formação do poeta, de Paul Zweig, uma biografia definitiva, em tradução de Ângela Melim, com os poemas citados vertidos por Eduardo Francisco Alves. Grande parte (e sem dúvida a mais significativa) da poesia de Whitman está aí em toda a sua ressonância.

A nova tradução de uma obra poética é sempre louvável pois dela se espera um avanço em relação àquelas que a antecederam, seja no sentido de sua completude ou de uma abordagem diversa ou mais acurada em função do aparato crítico interpretativo superveniente. No caso da tradução de Rodrigo Garcia Lopes, se não podemos falar em completude como esperávamos, já que se restringe aos 12 poemas da edição de 1855,  no que respeita à abordagem muita coisa há que se dizer. O tradutor optou programaticamente por “modernizar” a linguagem do poeta, emprestando-lhe termos coloquiais e mesmo jargões que parecem  destinados a orientar a leitura para um público teen-ager sem grandes compromissos vernaculares. Assim, por exemplo, “few embraces” é traduzido por “alguns amassos”, “the rush of the streets” por “o agito das ruas”, “lack of money” por “falta de grana” e “watching and wondering” pelo um tanto suspeito “sacando e viajando”. É possível que esse tipo de interferência ou re-escrita atualizada do tradutor possa concorrer para uma melhor aceitação da obra por aquele público-alvo, mas se acatarmos a lição de Carpeaux de que Whitman é um “poeta para poetas”, essa opção de linguagem certamente causará estranheza quando cotejada com as frases coloquiais mas sempre no âmbito do idioma-padrão utilizadas por Whitman. A introdução desse tipo de apelo popular não raro se choca com a grandiloquência e pirotecnia vocabular que se vê no original. Salvo esse tipo de discordância, Rodrigo Garcia Lopes soube mostrar na quase totalidade dos versos sua tarimba de tradutor profissional, saindo-se em muitos casos brilhantemente das armadilhas e tonalidades que Câmara Cascudo dizia intraduzíveis. Sirva a edição comemorativa como incentivo aos nossos editores e tradutores para nos trazerem finalmente um Walt Whitman complete and unabridged.

Fomos informados de que a editora Hedra, de S.Paulo, lançará em agosto uma edição completa das Folhas de Relva (edição do Leito de Morte [Deathbed Edition 1892], em tradução de Bruno Gambarotto, a única versão autorizada pelo autor em testamento (e a mais completa).

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