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Traduzida por Ivo Barroso

  John-Keats-001

     John Keats (1795-1821), tido como o último poeta romântico inglês, escreveu sua famosa Ode on a Grecian Urn em 1819, dois anos antes de morrer, aos 26, de tuberculose, na Itália, onde fora em busca de melhores climas. Poesia não se explica, mas esta ode – considerada um dos momentos mais altos do Romantismo inglês — tem sido motivo de acaloradas discussões críticas, com ilustres adeptos tanto favoráveis como contrários aos seus méritos. Seus versos finais (“A beleza é verdade, a verdade beleza”), que a maioria dos comentaristas considera dos mais belos da língua, foram tidos por Eliot como o ponto mais fraco do poema (a blight). A propósito do título: o correto seria mesmo Ode sobre uma urna grega, pois, se Keats quisesse dedicá-la à urna, teria escrito Ode to (e não on). Mas a verdade é que logo nos primeiros versos o poeta fala diretamente a ela, chamando-a  de “Inviolada Noiva do Silêncio” e afirma que, mesmo sem falar (por ser um objeto), ela pode, com suas inscrições, relatar uma história floral mais bela que seus versos. Rigorosamente não se conhece um exemplar de urna grega autêntico, seja em museu ou em livros de arte, que corresponda às duas cenas principais descritas no poema: uma aldeia grega que se prepara para o sacrifício de um novilho e o tocador de flauta junto a um par de amantes no momento que antecede um beijo. Sabe-se do amor de Keats pela literatura e a mitologia gregas e tais cenas poderiam ser tanto frutos de sua imaginativa quanto colagens de fragmentos representativos daquela civilização. Quanto à tradução, fizemo-la em dodecassílabos brancos na tentativa de captar, tanto quanto possível, o sentido e o tom de cada verso.

+énfora - Grega Helen+¡stica

Ode on a Grecian Urn

Thou still unravish’d bride of quietness,

Thou foster-child of silence and slow time,

Sylvan historian, who canst thus express

A flowery tale more sweetly than our rhyme:

What leaf-fring’d legend haunts about thy shape

Of deities or mortals, or of both,

In Tempe or the dales of Arcady?

What men or gods are these? What maidens loth?

What mad pursuit? What struggle to escape?

What pipes and timbrels? What wild ecstasy?

 

Heard melodies are sweet, but those unheard

Are sweeter; therefore, ye soft pipes, play on;

Not to the sensual ear, but, more endear’d,

Pipe to the spirit ditties of no tone:

Fair youth, beneath the trees, thou canst not leave

Thy song, nor ever can those trees be bare;

Bold Lover, never, never canst thou kiss,

Though winning near the goal yet, do not grieve;

She cannot fade, though thou hast not thy bliss,

For ever wilt thou love, and she be fair!

 

Ah, happy, happy boughs! that cannot shed

Your leaves, nor ever bid the Spring adieu;

And, happy melodist, unwearied,

For ever piping songs for ever new;

More happy love! more happy, happy love!

For ever warm and still to be enjoy’d,

For ever panting, and for ever young;

All breathing human passion far above,

That leaves a heart high-sorrowful and cloy’d,

A burning forehead, and a parching tongue.

 

Who are these coming to the sacrifice?

To what green altar, O mysterious priest,

Lead’st thou that heifer lowing at the skies,

And all her silken flanks with garlands drest?

What little town by river or sea shore,

Or mountain-built with peaceful citadel,

Is emptied of this folk, this pious morn?

And, little town, thy streets for evermore

Will silent be; and not a soul to tell

Why thou art desolate, can e’er return.

 

O Attic shape! Fair attitude! with brede

Of marble men and maidens overwrought,

With forest branches and the trodden weed;

Thou, silent form, dost tease us out of thought

As doth eternity: Cold Pastoral!

When old age shall this generation waste,

Thou shalt remain, in midst of other woe

Than ours, a friend to man, to whom thou say’st,

“Beauty is truth, truth beauty,—that is all

Ye know on earth, and all ye need to know.” jogador-de-flauta-grego-5256280

ODE A UMA URNA GREGA

Tu ainda inviolada Noiva do Silêncio,

Filha adotiva do Sossego e a Lentidão,

Silvestre historiadora, que exprimir consegues

Um enredo floral mais doce que este canto;

Que lenda engrinaldada em teu redor perpassa

Tecida de deidades ou mortais, ou de ambos,

Junto ao vale de Tempe ou nos vergéis da Arcádia?

Que homens ou deuses são? Que virgens relutantes?

Que afoito perseguir? Que luta na escapada?

Que pífaros e adufes? Que êxtase bravio?

 

É doce ouvir-se a melodia, inda mais doce

A que não foi ouvida; assim, ó suaves frautas,

Plangei; não para o ouvido sensorial, mais caras

Tocai para a nossa alma as músicas sem som:

Ó jovem sob as árvores, não soltarás

Jamais teu canto e nem os ramos suas folhas.

Ousado amante, nunca, nunca hás de beijar

Embora rente de teu alvo — não lamentes;

Ela assim ficará, e embora sem fruí-la,

Amarás para sempre essa beleza eterna!

 

Ditosos ramos, sim, ditosos porque nunca

Ireis secar, nem dar adeus à Primavera;

E tu, afortunado melodista, isone

Hás de entoar canções eternamente novas.

Amor, feliz amor! Feliz mais do que tudo!

Sempre ardente e no entanto sempre indesfrutado,

Sempre à beira da entrega e sendo sempre jovem,

A exultar de paixão humana e transcendente

Que deixa o coração amargurado e opresso,

As têmporas em fogo e a boca ressequida.

 

Quem estes que chegando estão para o holocausto?

A que víride altar, ó sacerdote ignoto,

Conduzes um novilho para os céus mugindo

E o suave flanco inteiro de festões ornado?

Que povo ribeirinho ou junto ao mar que aldeia,

No monte que casal, tal um bastião tranquilo,

Vazio despertou nesta manhã piedosa?

Ah! vilarejo, as tuas ruas para sempre

Desertas estarão; viv’alma por dizer

De tal desolação há de tornar jamais.

 

Ática forma! Sóbria atitude! em guirlandas

De mármore, donzelas e varões enleias

Com ramos da floresta e o joio espezinhado;

Tu, forma silenciosa, abalas-nos a mente

Qual faz a eternidade: ó fria Pastoral!

Quando esta geração o tempo houver tragado,

Tu permanecerás em meio de outras queixas,

Amiga do homem, a quem dirás: “A beleza

É verdade, a verdade beleza” – isto é tudo

Que sabemos na terra e que importa saber.

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T S Eliot_biography

Momento estelar da conjunção de homem certo no lugar exato, Thomas Stearns Eliot tornou-se o poeta maior de entre guerras ao encarnar uma transição do passado para o futuro. De formação clássica, universitária, com incursão pelos domínios da filosofia, andou de início quebrando os ídolos do Romantismo e da poesia discursiva, e entronizou no altar da novidade, um ex-deus que andava postergado: John Donne. Trocando a linguagem descritiva e passional por um discurso isento de sentimentalismo e voltado para a exposição de ideias, valeu-se grandemente da técnica da montagem, do fragmento, da intertextualidade para “eliotizar” os morceaux choisis de sua vasta erudição, que compreendia o domínio de várias línguas, inclusive o sânscrito. Seu contato com a vida literária francesa revelou-lhe o verso fluente de Laforgue, o que lhe permitiu contaminar sua expressão metafísica com um coloquialismo que lhe garantiu um tom estilístico peculiar, até então desconhecido nas letras inglesas.

Mas foi graças à confiança e pertinácia de seu conterrâneo Ezra Pound que Eliot teve seu primeiro livro publicado (The Waste Land), contornando a barreira de várias recusas e desconfianças editoriais. Sua técnica do patchwork, da colcha de retalhos, o tratamento leitmotiv dos temas, as disjunções temáticas acabaram acentuando o caráter de hermetismo dos versos, de tal forma que ao sair a lume em 1922, muitos críticos acreditaram tratar-se de uma piada ou brincadeira de mau gosto.

Desde essa época, no entanto, Eliot passou a ocupar uma posição de proeminência, para não dizer ditatorial, no cenário da literatura inglesa, tal como antes dele pontificaram Ben Johnson, Dryden, Pope, Samuel Johnson, Coleridge e Matthew Arnold, todos eles doublês de críticos e poetas. Considerava-se sua poesia como o ponto mais elevado da criatividade humana, só antes alcançado por um Rilke (outro poeta do espírito), e seus conceitos críticos, sua escala de valores artísticos, passaram a ser tidos como julgamentos magisteriais, apesar dos alguns “furos” que lhe foram apontados por sua visão estrábica em relação, por exemplo, à grandiosidade de Blake. E acentuam alguns críticos que sua implicância com Milton tem raízes antes teológicas que literárias.

Embora tenha dito que o “poeta deve adotar como material sua própria linguagem tal como é realmente falada ao seu redor”, a poesia de Eliot é em geral “difícil” e exige formação intelectual, a ponto de ele próprio ter acrescentado uma série de notas no final de “The Waste Land” para orientar a compreensão dos leitores. Mas sua técnica do verso, seu poder de transformar conceitos em palpitações poéticas isentam a compreensão imediata do conteúdo discursivo em proveito de uma fruição indistinta da beleza plástica do verso. Em “Four Quartets”, seu momentum definitivo de 1943, as linhas iniciais transportam o leitor a um dos mais elevados patamares da arte de dizer e de sentir. Neles Eliot atingiu a condição de “suma”, tornou-se o Dante da modernidade.

A apreciação da obra poética de Eliot se tornou ao longo do século XX em verdadeira devoção. Nos meios universitários de todo o mundo perdeu-se a conta das teses, estudos, críticas e papers que lhe foram dedicados, ainda que surgissem vozes discordantes como um estertoroso Harold Bloom a trombetear que sempre odiou a poesia e a nova-crítica de Eliot. A palavra final pode ficar com Northrop Frey, quando afirma: “Um conhecimento generalizado da obra de Eliot é impositivo para quem quer que se interesse pela literatura contemporânea. Gostar ou não dela não tem a menor importância, mas é preciso lê-la”.

 A influência de Eliot na poesia, não só de língua inglesa como de resto em todo o mundo, se fez sentir durante toda a sua fase produtiva (1922-1943), e só começou a arrefecer quando ele se volta para a criação teatral. O sucesso do drama em versos “Crime na Catedral” tem sido hoje creditado de certa forma à dedicação de Martin Brown, que o encenou em função de comprometimentos com sua convicção religiosa. Fartamente revisto, sabe-se que grandes trechos do drama (principalmente os corais) foram então submetidos a hábeis “-ctomias” que os transformaram em poemas fragmentários, posteriormente incorporados a “Burnt Norton” (dos “Quartetos”). Sua tentativa de atingir, no teatro, um público mais amplo, escrevendo comédias “leves” em versos, sem preocupações devocionais, como “O Secretário Particular” e “O Velho Estadista”, trouxe a Eliot apenas algum sucesso de estima, de curta duração. Ele só conheceria a glória do palco depois que Lloyd Weber transformou seus practical cats num espetáculo musical, que o poeta não chegou a assistir.

Pound

 No Brasil, como não podia deixar de ser, abundaram os Eliots, doutrinários ou simplesmente hermético-fragmentários. Mas a ambição do poema longo pelo menos frutificou num dos pontos mais altos da lírica nacional, na “Invenção de Orfeu”, de Jorge de Lima. É curioso notar que a influência de Pound foi muito mais pronunciada e visível entre nós que a de Eliot. Embora os “Quatro Quartetos” tenham conhecido pelo menos três traduções completas, os “Cantos”, de Pound, eram permanentemente citados, traduzidos e plagiados em nossos suplementos literários dos anos 50-60. Mário Faustino, o mais atuante crítico literário daquela geração, nas suas excelentes análises “Fontes e correntes da poesia contemporânea”, dedica 68 páginas (Poesia Experiência – ed. Perspectiva, 1977) a Ezra Pound e nem uma única a T.S, Eliot.” #

Publicado no suplemento literário MAIS! da Folha de S. Paulo em 28.06.2009

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Fundada em 1948 por Saldanha Coelho, a Revista Branca desempenhou um papel de alta relevância cultural em sua época, embora destinada a um pequeno grupo de leitores que tinham Marcel Proust como a expressão máxima da literatura universal. Consciente de sua restrita divulgação em território nacional, a revista se pretendia destinada a divulgar nossos escritores no exterior, tanto que se anunciava na contracapa como um órgão trimestral em cinco línguas. Na verdade o que ocorria era aparecer um artigo em português acompanhado de tradução em uma das línguas mencionadas (espanhol, francês, inglês ou italiano) ou artigos originalmente escritos em língua estrangeira com sua respectiva tradução em português. Creio que foi em suas páginas, em 1955, que publiquei minha primeira colaboração na imprensa da capital e surpreende-me agora ver que se tratava nada menos que de Eliot! Não me lembro como cheguei até lá nem se fui levado por alguém, mas certamente que por indicação de meu velho amigo Bráulio do Nascimento (na época um dos diretores da revista), pois trabalhávamos juntos na Editora Delta. A ele fico muito grato por ter conseguido exumar de seus arquivos esta tradução que eu julgava definitivamente perdida.

 

The Eagle soars in the summit of Heaven

 

T. S. Eliot

The Eagle soars in the summit of Heaven.

The Hunter with his dogs pursues his circuit.

O perpetual revolution of configured stars,

O perpetual recurrence of determined seasons,

O world of spring and autumn, birth and dying!

The endless cycle of idea and action,

Endless invention, endless experiment,

Brings knowledge of motion, but not of stillness;

Knowledge of speech, but not of silence;

Knowledge of words, but not of the Word.

All our knowledge brings us nearer to our ignorance,

All our ignorance brings us nearer to death,

But nearness to death no nearer to God.

Where is the Life we have lost in living ?

Where is the wisdom we have lost in knowledge?

Where is the knowledge we have lost in information?

The cycles of Heaven in twenty centuries

Bring us farther from God and nearer to the Dust.

(From “The Rock”- Corus part)

 

A ÁGUIA SE ERGUE NOS CONFINS DO CÉU

A Águia se ergue nos confins do Céu.

O Caçador com seus cães persegue-lhe o circuito.

Ó perpétua revolução de estrelas configuradas,

Ó perpétua recorrência de determinadas estações.

Ó mundo de outono e primavera, nascimento e morte!

O ciclo interminável da ideia e da ação,

Invenção perene, perpétua experiência,

Traz a noção do movimento, mas não a do repouso;

A ciência da fala, mas não a do silêncio;

A ciência das palavras, e a ignorância da Palavra.

Todo o nosso saber nos aproxima de nossa ignorância,

Toda a nossa ignorância nos acerca da morte,

Mais próximos da morte, e não mais perto de Deus.

Onde a Vida que perdemos no viver?

Onde a sabedoria que perdemos no saber?

Onde o saber que perdemos na informação?

Os ciclos do Céu em vinte séculos

Nos afastam de Deus e nos acercam do Pó.

Tradução de Ivo Barroso


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Apelidado por Ezra Pound de Old Possum (aproximadamente, Gambazão), por causa de seu caráter arredio e reservado, T. S. Eliot era padrinho de dois dos filhos de seus editores Faber & Faber. Talvez para mostrar que também sabia rir, ele costumava levar aos meninos, como  presente de aniversário, um poema escrito especialmente para a ocasião, cuja temática era sempre a mesma: a história de um gato. Para o bem da poesia e dos leitores em geral, os meninos nunca disseram que preferiam um carrinho de plástico. Anos mais tarde, já crescidos, perceberam que os versos — além de histórias infantis deliciosamente contadas — eram excelentes poemas para adultos em tom de galhofa, o que permitiu ao sisudo autor brincar com mirabolantes rimas, jogos de palavras, temperados aqui e ali com sutis inuendos eróticos. Além disso, o conjunto dos poemas formava um microcosmo da sociedade inglesa com seu gato ator, o gato snob que usa polainas e frequenta clubes fechados, o gato ferroviário, apanágio da pontualidade do serviço público inglês etc. Daí insistirem mais tarde com o padrinho para que os poemas fossem editados em livro. Horror e comoção de Eliot, que, depois de concordar, se refugia no campo, temeroso da crítica que pudesse vir a empanar sua glória de poeta.  Só depois de receber o telegrama: “Venha. Grande sucesso” – é que voltou a Londres. Posteriormente, a obra começou a ser mais apreciada pelos adultos que pelas crianças e considerada mais livro de poemas que de histórias infantis. Mas seu grande momento de popularidade chegou na década de oitenta, quando o compositor inglês Andrew Lloyd Weber usou (sem qualquer alteração) o texto eliotiano com lirics para o musical Cats.

Quando cheguei a Londres em 1983, levava comigo o propósito de ver o que Andrew Lloyd Weber tinha feito com o Old Possum´s Book of Practical Cats, de Eliot, que já fazia carreira no West End havia dois anos. Encontrei em José Guilherme Merquior, que também morava lá, a mesma curiosidade de saber como os versos pirotécnicos de Eliot tinham sido transpostos para a cena e fomos juntos verificar. Além de ter criado um score musical de gênio, Lloyd Weber tinha respeitado integralmente todos os versos, todas as rimas, todas as letras do original. E naquela mesma noite, José Guilherme me fez o desafio: se era possível transpor tudo aquilo para a cena, certamente seria possível traduzi-lo integralmente para a nossa língua. Fiz um primeiro ensaio, mostrei-lhe, e aí começou a cobrança, pois quase todos os dias ele me telefonava perguntando pelo andamento da tradução.

Durante muitos anos, andei à procura de rimas estapafúrdias, jogos de palavras, polissemias e corres­pondências que pudessem dar ao leitor brasileiro a equivalente impressão dos versos humorísticos de Eliot. Pela primeira vez em minha experiência literária, me vi diante de um texto que, para ser fiel ao seu espírito poético, tinha que ser alterado. Tive que optar pelo que abusivamente se chamou de recriação, substituindo o referencial inglês, quando ininteligível ou pouco familiar ao leitor médio brasileiro, por equivalências que, sem traírem o texto original, funcio­nassem da mesma forma no território de nossa língua. Esse esforço de reelaboração isotópica foi para mim, no entanto, um período igualmente de recreação, pois à medida que ia encontrando soluções sen­tia aumentar minha possibilidade lúdica, brincando e me divertindo com os versos da maneira como o próprio Eliot deve ter procedido ao criá-los.

A tradução saiu inicialmente pela Nórdica, em 1991, com as ilustrações originais de Nicolas Bentley e, reeditada logo em 1992, obteve o prêmio Jabuti de tradução daquele ano. Por questões de direitos autorais, o livro passou bom tempo esgotado e sem a possibilidade de uma reedição, até que finalmente a Companhia das Letras conseguiu adquirir os direitos de uma nova edição inglesa, desta vez ilustrada especialmente por Axel Scheffler. É esta a edição que pode ser encontrada nas livrarias.

Minha segunda incursão pela literatura infantil não foi tão significativa, mas igualmente divertida: traduzi para a CosacNaify em 2003 o livro A giraffe and a half, texto (poeminhas e ilustrações) do famoso Shel Silverstein, com título em português de Uma girafa e tanto. Para atender à rima do original, eu tinha sugerido Uma girafa muito safa, mas acabei concordando em que Uma girafa e tanto condizia melhor com o significado do título. Na série de ilustrações, a girafa aumenta de tamanho à medida em que o menino vai lhe acrescentando coisas (e os versos acrescentando rimas) até um clímax em que se dá a desconstrução, passo a passo, até a volta ao tamanho original. Foi muito divertido arranjar rimas e mais rimas que correspondessem com os desenhos da história.

Já a terceira acabou sendo uma experiência negativa. O Livro do Foguete (The Rocket Book), de Peter Newell (também texto e ilustrações), que traduzi igualmente para a CosacNaify, em 2008, é uma curiosa bolação gráfica, que condiz com o texto: um menino encontra no porão de seu prédio um morteiro, que ativado por ele vai furando o teto de cada apartamento até chegar à cobertura, onde cai numa sorveteira, apagando-se. Todas as páginas são perfuradas no mesmo local, como se o rojão tivesse passado por elas. Espetacular história e realização gráfica. Ficou assentado que o tradutor manteria os nomes em inglês para dar maior ambientação à história. Isto permitia ótimas rimas como Phil/ mil, Jack/ ataque, Lou/quebrou, etc. Empolgado com a história, o editor andou colaborando na tradução e até arranjou uma rima excelente: Roney/pônei. Mas acontece que essa mania de julgar que as crianças são incapazes de absorver um vocabulário que não seja o vulgar titibitate, fez com que me alterassem vários versos, ora quebrando a métrica e, até numa vez, atribuindo-me uma rima que não rima. Eu tinha escrito: O avô roncava em falsete/ quando, em manobra maluca,/ de um baú sobe o foguete/ que lhe arranca com a peruca! Mas o editor não gostou da construção clássica arrancar com (igual a tirar da espada, em que a preposição enfatiza o movimento) e tirou o com, deixando o verso de pé quebrado. Também não admitiu para as crianças a existência do verbo desandar. Onde escrevi: Neste momento os esguichos/ do petardo que desanda/ vão arrastando com os bichos/ numa tremenda ciranda. E alterou para: do petardo que avança, rimando avança com ciranda, rima que não me pode ser de todo atribuída. Por ora, dou por encerradas minhas incursões pela fascinante literatura infantil. Mas recomendo vivamente o livro – este e os demais – pois são verdadeiras obras-primas dessa arte peculiar e dificílima de escrever para as crianças.

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