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Posts Tagged ‘Edward FitzGerald’

 

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Descobri Omar Khayyam em 1948 na bela coleção Rubaiyat, da José Olympio, em tradução de Otávio Tarquínio de Souza com base na versão francesa de Franz Toussaint. O livro estava na 7ª. edição e, para minha surpresa, ali se falava que a primeira saíra em 1928, portanto havia 20 anos que o livro circulava em português sem que eu soubesse da existência desse texto. A linguagem do livro e também, porque não dizer, a “filosofia’ de seus conceitos me cativaram, deixando-me inteiramente fascinado por aquele mundo oriental das mil e uma noites, que então se abria numa pregação hedonística e inoculava uma pecaminosa negação da crença e do sentido da vida. É certo que no posfácio havia uma carta que o líder católico Alceu de Amoroso Lima dirigira ao tradutor, na qual buscava conciliar a “doutrina” de Khayyan com os ensinamentos cristãos do Eclesiastes e do Cântico dos Cânticos de Salomão. Mas o que o impacto do livro conseguiu mesmo foi derrubar minhas crenças precárias e abrir-me as portas largas do nihilismo e das liberdades totais de pensamento. Eu queria escrever coisas iguais e, para tanto, me “orientalizava” assumindo a persona de um poeta árabe. Cheguei a adotar um nome pseudo-persa, Hadiadat Maahatama, e comecei a compor poemas a que dei o título de Yezedis, palavra que eu havia encontrado em minhas leituras e sabia referir-se aos adoradores do diabo. Mas meus poemas não passavam de decalques do Rubaiyat e resolvi assumir o pastiche. Achava expressivo o texto de Tarquínio, mas faltava-lhe ritmo, faltava rima; eu queria transformá-lo em pequenos poemas rimados e metrificados. Foi o que fiz, aproveitando palavras e frases inteiras da tradução.

Eu sabia – como todos sabem – que esses rubaiyat (plural de rubai, que significa quadra poética) tinham sido “traduzidos” do persa pelo inglês Edward Fitzgerald (1809/1883), que praticamente os transformou em poemas seus tantas foram as alterações e acréscimos introduzidos por ele no texto original de Omar Khayyan, isso talvez para manter a estrutura original (1º, 2º e 4º versos com a mesma rima e o 3º branco, ou seja sem rima). Resultado: as quadras foram mantidas, mas o sentido dos versos e as palavras empregadas são bem outras. Depois de FitzGerald, o francês Franz Toussaint (1879/1955), já em 1924 empreendeu uma tradução em prosa dessas quadras, conseguindo assim manter-se mais próximo do sentido original. Decidido a parafrasear ou a adaptar em versos rimados o maravilhoso texto que Otávio Tarquínio traduziu da transposição feita por Tousaint, criei um caderninho com folhas da metade do A4, datilografadas, perfuradas e presas por grampo. Na capa, arranhei numa escultura rústica, os nomes Hadiadat / Yezedis/ Poemas sobre um fundo negro. Numerei os “rubaiyat” na mesma ordem da edição da José Olympio e… guardei o caderno.

Escavando agora os meus guardados, fazendo jus ao espírito deste blog que é uma velha gaveta atulhada de papeis amarelecidos, dou-os à curiosidade dos leitores, não sem antes reiterar que os meus rubaiyat nada têm de meus a não ser os atavios de uma forma poética extremamente livre e os berloques das rimas, que lhes dão uma sonoridade a mais.

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Rubai 2

Que vale mais? Fazer exame de consciência
Sentado na taberna, entre plebeus,
Ou na mesquita, em ampla reverência
À hipócrita caterva
dos fariseus?
Não desejo saber se tenho um deus
E o destino que acaso me reserva.

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Procura ser feliz ainda hoje;
Nada sabes do dia de amanhã!
Toma uma urna de vinho e foge
Da ciência, limitada e vã.
E antes que o dia de todo se acabe,
Escuta, ao luar, esta sábia canção:
“Amanhã, talvez, quem sabe?
te procure a Lua em vão!”

Rubai 9

Eu considero vil o coração
Que, sendo incapaz de amar, não pode
Conhecer o delírio da paixão,
O amor brutal que explode
Em chamas
E nem o beijo — essa divina
Esmola.
Se não amas
És indigno do Sol que te ilumina
E da Lua que à noite te consola.

Rubai 10

Sinto reflorescer a minha mocidade.
Desejo aquele vinho que me dá calor,
Felicidade,
Amor
— o vinho que conforta…
— Homem, porque meu passo embarga?
Ofende-lhe a bebida?
Quero vinho!… Dirá que o vinho amarga?
Não importa!…
Tem o gosto da vida!

Rubai 12

Lancei minh’alma além da Terra e do Infinito
A procurar o Céu e o Inferno, a esmo.
Quando voltou a mim, disse num grito:
“O Céu e o Inferno estão dentro em ti mesmo.”

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Na Primavera, gosto de sentar-me
À sombra amiga de um vergel florido;
E enquanto a rapariga entoa um carme,
Eu bebo do meu vinho preferido
E acaricio-lhe o frescor da face
Sem me lembrar da minha salvação.
Se de tal pensamento me ocupasse,
Eu valeria menos do que um cão,

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Rubai 41

Bebe um pouco de vinho!
Amanhã dormirás muito tempo sozinho
Nas entranhas da terra, num degredo,
Sem ar, sem dor, sem fé, sem ais…
Antes disto, confio-te um segredo:
— Tulipas murchas não florescem mais.

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Vi, ontem, um oleiro que, sentado
Diante de seu torno,
ia modelando as alças e o contorno
de uma urna, um cântaro afilado.
De quem supões
Era formado o jarro
Que, no futuro, adornará jazigos?
Pois amassava o oleiro um barro
Que era feito de crânios de sultões
E de mãos espalmadas de mendigos!

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Sê prudente, ó viajante!
Perigoso é o caminho que palmilhas;
E, na ânsia de ir avante,
Flores de mancenilhas
Não vás, impávido, colhendo-as
Ao longo do terreno!
Nem comas as amêndoas
Que no chão encontrares: têm veneno!

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Um jardim, ondulosa rapariga,
Pele de suave brancura,
Olhar bem terno
E voz amiga,
Uma ânfora de vinho, o meu desejo eterno,
A minha velha amargura
E todo o bem que eles me ensejam:
— eis o meu Paraíso e o meu Inferno!
Mas, quem sabe o que o Céu e o Inferno sejam?

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Rubai 54

… E da Sabedoria escuta a voz que tantas
vezes já repetiu aos que delas se esquecem:
“A Vida é breve, e não és como as plantas
que, depois de podadas, reflorescem!”

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Meu nascimento
Não trouxe nenhum proveito à humanidade,
E a minha morte
Não lhe diminuirá a imensidade.
Eu fui apenas um momento
Nessa intérmina coorte.
Amei o vinho e, para mim,
Esse momento foi uma hora!…
Ninguém pode explicar-me porque vim,
Porque vivi, porque me vou embora.

Rubai 67

Podes obcecar-me, ó miragem de outra vida!
Ao meu ouvido a voz do amor ressoe!
Eu só contemplarei minha elegida;
Só quero ouvir a voz a que me seduzi.
E se alguém me disser: “Deus te perdoe!”
Eu recuso o perdão que não pedi!

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Porque tanta ternura e suavidade,
De nosso amor tivemos nas primícias?
E depois uma real felicidade
Bafejou-nos os beijos e as carícias?
E… hoje, só sei dizer
Que teu único prazer
É de dilacerar meu coração.
Por quê, meu bem, por quê razão?

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Vinho! Vinho em torrentes!
Que ele palpite em minhas veias lassas,
Que em ondas voluptuosas, ondas quentes,
Percorra-me a cabeça!. Taças! Taças!
Antes que anoiteça!
Quero do vinho que em meu corpo gira
Gozar a sensação de seu circuito.
Taças! Silêncio! Vem! Tudo é mentira!
Taças! Depressa! Envelheci-me muito…

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Não aspires a paz neste mundo
E nem creias no eterno repouso:
O teu sono será muito breve
Quando a Morte vier te buscar.
Renascerás depois de um segundo
Nas raízes de um cedro orgulhoso
Ou no verde de um junco tão leve
Que há de o sol, num só dia, crestar.

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Dúvida e convicção, erro e verdade
— são palavras inúteis – fatuidade!
Vazias como a bolha de ar que, fraca,
De súbito, é rompida…
Irisada ou opaca,
Essa bolha é a imagem desta vida.

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Escuta o meu segredo:
Quando a primeira aurora cor-de-rosa
Iluminou o mundo,
Adão já era um ser cheio de medo,
Criatura dolorosa,
Sem ideal, sem sorte,
Abismado no tédio mais profundo,
Ansiando pela noite e pela morte.

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Não pedi a ninguém a vida que possuo!
Portanto,
Farei por acolher sem cólera, sem ira,                                                                                               Sem espanto, sem tédio e sem amuo,                                                                                           Tudo, tudo o que a vida me ofereça;
Quer me fira
Ou quer me favoreça.
Eu sou de modo tão conformativo,
De um desprezo tão profundo,
Que irei sem indagar o secreto motivo
Da minha misteriosa estada neste mundo.

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Quando eu não viver mais não haverá mais rosas
Nem vinhos de rubi em taças perfumosas.
E mortos os meus nervos, os meus músculos,
não haverá auroras nem crepúsculos,
nem castigos, nem penas,
nem ais, nem sofrimento.
Pois que tudo havia apenas
Em função de meu próprio pensamento.

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A abóbada celeste sob a qual vivemos
Semelha uma lanterna
Mágica, de que o Sol é o centro e nós
Os extremos.
O Sol é a luz eterna
E nós um momento de luz e nada após…
Ama a vida, por isso, jovem!
E desfruta-lhe os pomos,
Porque nada se leva
Para onde vou, para onde vais…
— Dessa lanterna mágica nós somos
apenas figurinhas que se movem
ao Sol, que vão voltar depois à treva
para nunca mais!…

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O amor que não devasta não é amor!
Possuirá uma brasa o calor
Da fogueira?
Não pode ser.
Noite e dia, durante
A vida inteira
O verdadeiro amante
Consome-se na dor e no prazer!

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A minha boca não blasfema, não alterca:
— Sou incapaz perante o Etéreo!
Podes sondar a noite que nos cerca
E podes penetrar o seio do mistério?
Em vão! Pois dize apenas a essa treva
Que por todos os lados
Nos circunda num letargo:
“Ó Adão e Eva,
Como deve ter sido o vosso beijo amargo
P ara que nos gerásseis tão desesperados!”

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Bebo o meu vinho assim como a raiz
Do salgueiro bebe a água da corrente,
E sou feliz!
— Recordas-me o Alcorão como bom crente:
“Só Deus é Deus por isto teme-o”
— Pois bem, quando me criou, Ele sabia
que vinho eu beberia.
Foi seu desejo que esta fosse a minha estrada.
Se eu me tornasse abstêmio,
Toda a ciência de Deus se quedaria errada!

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Toda manhã, o orvalho acorda na tulipa,
Na violeta ou no cardo,
Mas logo vem o Sol e o orvalho se dissipa,
Aliviando-se a flor do belo fardo,
Toda manhã eu sinto o coração
Tão pesado, mas logo o teu olhar
Como um raio de sol alegre e são
Vem a minha tristeza dissipar.

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Se queres
Gozar a solidão perfeita que nos vem
Das estrelas e das flores,
Rompe com os homens – servos ou senhores –
Desliga-te de todas as mulheres,
Não busques companhia de ninguém.
Prefere a taça cheia
E sem espuma…
Não participes da alegria alheia
E nem te inclines sobre dor alguma.

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Homem, se este mundo é uma miragem,
Por que te desesperas?
Por que tens esperança e tens coragem?
Por que tens ilusões e tens quimeras?
Por que pensas sem tréguas, todo o dia,
Na tua miserável condição?
Abandona a tua alma à fantasia
Das horas.
Teu destino está escrito
Com letra indelével no livro de Allah.
É em vão
Que choras,
É vão teu grito:
— Emenda alguma agora adiantará!

Rubai 122

Cansado de escutar os sábios,
Interroguei a taça;
Colei meus lábios aos seus lábios
E murmurei à minha audaz consorte:
— Volverei, ou tudo passa?
Para onde irei depois da morte?
E escutei, da taça oriundo,
Este credo de conforto:
“Não haverá um outro Fiat!
Não volverás jamais ao mundo!
Bebe o meu vinho, pois, haure-o, inebria-te,
Porque nada serás depois de morto!”

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