
POEMA TESTAMENTO
[Em homenagem ao Dia das Mães]
Mamãe:
se eu morrer de avião ou de males do fígado
(eu, que, em menino, pensei morrer, liricamente, de tuberculose),
quero que a senhora avie estas coisas para mim:
primeiro —
Queimar todos os meus versos, os meus papeis,
as minhas eternas escrevinhações
que lhe causavam aquela gozada papel-fobia
de que eu me ria, sem dizer nada.
Era preciso que eu tirasse uma tarde inteira,
uma tarde igual àquela em que lhe falei
das minhas tristezas, da minha inconformidade
para com um mundo que me era hostil;
ou uma tarde dessas em que, a família toda reunida,
nos pomos a falar coisas do Herval;
pois é, uma tarde assim, para dizer de minha vida
em relação à poesia… mas não convém.
Sempre tive um egoísmo tolo
em me passar por incompreendido,
que até, agora, me sinto bem.
segundo —
Venda os meus livros e a estante.
não deixe o Ney e a Lia tocar neles.
Nos livros aprendi tanta desilusão,
tanto aniquilamento
(Meus autores prediletos pareciam escrever
para nos ensinar que não devemos escrever)
… tanto aniquilamento,
que não quisera ver os manos
presas do mesmo sentimento.
Há um, no entanto, que desejo
que alguém conserve com carinho:
é uma edição maravilhosa
do “Fleurs du Mal” de Baudelaire;
está na caixa de charutos…
e, dentro dele, entre os poemas do “Spleen”,
tenho dois contos e quinhentos
(mas não rezem missa com eles, pelo amor de Deus!)
terceiro –
Guarde os meus óculos como lembrança
de meu olhar resignado;
embora sempre me aborrecessem,
tornassem velho o meu semblante,
habituei-me a eles:
aclararam e aproximaram as coisas belas
que eu quis ver
(Quanto desejei também que vissem
a Place de la Concorde, a Via Appia e Biskra!).
Dê o “ray-ban” para o Papai;
ele sempre achou que eu ficava alinhado com eles…
Coitado do velho! sempre quis ter um filho alinhado,
peito pra frente, olhar na torre da igreja,
um filho “pinta” militar…
E eu, meu Deus, no que fui dar?! …
Talvez nem chegue a ser doutor…
Mas a senhora sabe que isso não me importa;
que o que preocupou verdadeiramente a minha vida
foi um desejo de viagens e aventuras,
e embora tudo me faltasse para empreendê-las,
vislumbrei todas as loucuras
e fui, no sonho, às últimas estrelas!
A senhora sabe que no ser frágil e literato
que viam em mim
morava também um esquisitão meio áspero
que procurava fugir ao doce sentimentalismo caseiro.
Ainda bem que todos me compreendiam nesse ponto
e não faziam de mim nenhum “caso especial”.
Sempre vivi a meu gosto,
embora sonhasse demais para viver assim.
Não vá pensar, no entanto, que lhe deixo
o travo de algum ressentimento inconformado;
pelo contrário, mãe; quisera deixar a grande paz
que tenho aqui comigo, bem guardada,
uma paz alveolar, meridiana e clara,
que me faz acreditar que triunfei.
(1948)
Curtir isso:
Curtir Carregando...
Read Full Post »