Feeds:
Posts
Comentários

Posts Tagged ‘corrupção’

Alguns leitores amigos (e também dois ou três desconhecidos) insistem para que eu republique aqui mais alguns dos artigos políticos que em 1995 escrevi para o Jornal do Brasil. Confesso que a leitura deles me deixa nostálgico, descorçoado mesmo, ao ver que os descalabros contra os quais investíamos naquela época continuam os mesmos ou se agravaram nos dias atuais. Por eles vemos o quanto nós, que nos achávamos argutos e observadores, estávamos enganados, iludidos,  ao julgar que havia alguém imune e acima da lama corrupta em que nos afogávamos (e ainda nos afogamos). E, mais, constatar que estamos incorrendo no mesmo equívoco anterior, sendo enganados pela mesma lábia governamental. Em vez de ação imediata, nos oferecem um plebiscito que todos sabem impossível ou extemporâneo. Se o governo tivesse a mínima decência e honestidade, em vez de proteger a indústria automobilista, teria logo votado uma verba para atender à deficiência de nossos hospitais, fornecendo-lhes imediatamente material e gente habilitada. O mesmo para nossas escolas, nossas estradas, etc. etc ou, ainda, reduzido ontem mesmo o número absurdo de ministérios, impedido os pagamento milionários a servidores públicos e algumas das outras medidas urgentes que o povo vem exigindo quase que diariamente nas ruas. Se a palavra final, se as decisões ficarem a cargo do Parlamento é certo que nada se fará como nada se tem feito. Serão promessas, ofertas improváveis e irrealizáveis. Simples estratagemas enquanto esperam a poeira baixar. E tiveram sorte com a próxima visita do Papa, que polarizará as atenções do povo enquanto eles (políticos) se reorganizam para que tudo permaneça na mesma.  É triste pensar que só com a força e a violência as coisas podem mudar neste mundo. Mas vamos tentar com a persistência. As passeatas não podem fracassar nem esmorecer. Se, ao republicar esses artigos aqui no blog, nossa intenção foi a de despertar os atuais manifestantes para a necessidade de se pôr um paradeiro definitivo a essas mazelas, cumpre-nos igualmente  advertir-lhes das manobras dos políticos em engambelar-nos com algumas promessas inócuas ou enganosas enquanto esperam a “volta ao normal” para permanecerem aferrados às tetas do poder.

blogJB4 001A

Cientistas políticos, chegados ao Planalto, vêm procurando mostrar ultimamente que os escândalos a que estamos presenciando têm sido uma constante na vida do pais, donde se infere que não devemos falar em descalabros do governo Lula, pois tais ocorrências também e verificaram em administrações anteriores. Mas grande parte da população não pensa assim: acha que valeu a pena sair às ruas para exigir o impeachment de Collor — havia não só evidências, mas provas cabais de que a roubalheira andava à solta e a seu comando, logo, era imperativo que o apeassem do posto a que fora levado exatamente para coibir e acabar com as bandalheiras anteriores. Se houve compra de votos na reeleição de Fernando Henrique, foi uma falha dos representantes da nação não denunciá-la ao país e conclamar o povo para dar a ele o mesmo destino que se deu a Collor.

A verdade é que um erro não justifica outro. Não se trata de fazer um teste comparativo de podridões; o importante é acabar com elas. De experiências passadas o Brasil está farto. Não creio que ninguém esteja esperando a volta de Fernando Henrique ” como um novo D. Sebastião”. Ele pertence ao Terceiro Reinado principesco de nossa evolução política. Mas já passou, estamos lá na frente, com um governo socialista e populista, que tem por finalidade resolver os problemas básicos da população, negligenciados por seus antecessores. Foi para isto que o elegemos.

E se esse governo passa a cada dia o atestado de sua incompetência, isto não quer dizer que a ideologia esteja errada, mas sim que foi traída por seus arautos mal se aboletaram no poder. E se os componentes desse governo popular insistem em permanecer nas tocaias do oportunismo, à feição dos grupos anteriores, o negócio é botar essa gente pra correr. Atrás do que lá se foi, há muitos outros indiciados que merecem o mesmo tratamento. O presidente poderia acordar de seu letargo administrativo e dizer a que veio. Em vez de afirmar que ë a maior “autoridade moral e ética para combater a inflação”, devia era pôr na rua todos os seus áulicos que não se acanham em atirar lama sobre o seu governo; pedir, exigir da justiça a shylockiana libra de carne, processar e punir os culpados flagrados em delito; enfim, mudar todos nos ministérios sobre os quais paire alguma pecha comprovada.

O ideal mesmo seria uma limpeza radical, uma varredura para a lata de lixo e não para baixo do tapete: alijar do cenário político as velhas raposas dos conluios, os ratões dos conchavos, as baratas cascudas das falcatruas, os marimbondos das articulações, e até mesmo os pernilongos sanguinários que chegaram ao poder à custa do crime, da violência, do tráfico, do contrabando, da lavagem de dinheiro. Sabemos, no entanto, que a camarilha se autoprotege; numa democracia — que queremos a todo custo preservar — tal limpeza só seria possível por meio de uma reforma institucional: Constituinte neles! Impõe-se um enxugamento dos partidos, uma seleção rigorosa de candidatos, com seus currículos devidamente investigados antes da homologação de suas candidaturas. E, mais que tudo, os olhos agora bem abertos do eleitor.

Tolice falar em “golpe branco” (ou vermelho); ninguém está — graças a um generoso crédito de confiança — querendo “desestabilizar” o presidente. Queremos vê-lo é assumir de fato. Queremos exatamente aquilo que foi conquistado com a sua vitória e agora desvirtuado pela ambição de seu partido. Queremos moralidade na aplicação dos dinheiros públicos, queremos educação, saúde, estradas… Tudo isso nos prometia o PT para chegar ao poder. Agora que lá está, é justo que se venha exigir dele o cumprimento das promessas.

***

A OUTRA MARGEM DO RIO

LULA no SfcIlula94_16 Foto publicada na Folha de S. Paulo do dia 13.07.1994

 

No dia 13 de junho de 1994, o fotógrafo¬cineasta Hélcio Nagamine fez um flagrante histórico que pode se transformar num símbolo nacional. Em plena campanha para a Presidência da República, Lula da Silva acena para a população de uma vila à beira do rio São Francisco, na Bahia. Em primeiro plano, meio de viés, o candidato está de camisa branca sem mangas, calça cáqui, enquadrado a partir da altura da coxa. O braço esquerdo pende ao longo do corpo, deixando ver nitidamente a falha do dedo mínimo, que se tornaria uma espécie de talismã carismático, sinal identificador de origem, unção do destino. O braço direito está erguido um pouco acima da cabeça; a mão esboça um aceno discreto; há uma fita votiva em torno do pulso levantado. À sua frente, as águas lamacentas do rio São Francisco e,  do outro lado, ao longe, na outra margem do rio, uma população ribeirinha, de umas 200 ou 300 pessoas, aglomera-se na faixa assoreada e acena esperançosa para o candidato. A foto lembra vagamente a chegada de Cabral à terra de Pindorama… Foi nessa, ou em ocasião semelhante, que o candidato idealista assim falou ao povo: “Visitando o Nordeste brasileiro, eu comecei a matutar: se foi possível o presidente Roosevelt fazer o Vale do Tennessee ser o que ele é hoje, por que a gente não pode fazer o Nordeste brasileiro deixar de ser a parte pobre e começar a produzir alguma coisa? Ah, tudo bem! Não dá petróleo, não dá gás, mas dá mamona. Então, vamos produzir o biodiesel da mamona.”

O candidato foi derrotado em 94 e novamente em 98, mas há dois anos e meio enverga a faixa presidencial em cima de roupas menos populares. Alcançou o poder, fez novas promessas para esquecê-las em seguida, por utópicas ou inconvenientes, aprimorou-se na arte da oratória, entregou-se ao fascínio da imagem transmitida, virou de repente Luiz Inácio, o presidente do Brasil de exportação, que desfila pelo Arco do Triunfo e se banqueteia com Chirac no Palais de l’Élysée. Pois o símbolo em questão é este: Lula da Silva, você deixou toda aquela gente abanando a mão na outra margem do rio. Você nos deixou, a todos nós, na mão. Não só o projeto do São Francisco foi esquecido; muitos outros, surgidos de seu antigo ideal, logo se estiolaram diante do pragmatismo daqueles que você chama fidelmente de “companheiros”, os mesmos que o puseram num avião e o mandaram para longe, a fim de poderem “governar” o país a seu jeito. O resultado foi este (lamentável): a reincidência no descalabro, os conchavos, os aproveitamentos ilícitos, os apadrinhamentos, as trocas despudoradas, a corrupção, e o grande escândalo final, que promete enlamear ainda mais o país.

Esperava-se que, como aquele outro líder carismático, o sangue do pudor lhe subisse agora às faces e você saísse azorragando os vendilhões. Mas você voltou com a mesma indecisão de sempre, às apalpadelas, ouvindo uns e outros, esperando a opinião daqueles que nos seus ouvidos só poderiam soprar palavras de cautela e de acomodação, deixando-se peitar, tutelar, amedrontar pelos ogres que hoje parecem mandar no país. Todos nós sabemos quanto é difícil criar um líder, um depositário da confiança do povo, alguém que se sonha capaz de medidas realmente de alcance social — enfim, alguém como pensávamos que você fosse. Por isso, é possível que em toda essa escória, nesse mar de dejetos flutuantes, você ainda se salve.

Read Full Post »

Lista dos artigos publicados no Caderno B do Jornal do Brasil                           entre maio/outubro de 2005:

07.05 – Uma lembrança de Drummond *
14.05 – A paixão da leitura – Em louvor da Bienal *
21.05 – Lula, uma vocação contrariada
28.05 – Protestos e implicâncias
04.06 – O nariz de Villaça *
11.06 – A bandeja da abjeção *
18.06 – Está faltando um nome para a Presidência *
25.06 – Corrupção e/ou incompetência
02.07 – U arraiá di Lula e a maratona de ridículos *
09.07 – Brasil, o país da cultura esférica *
16.07 – Um pouco mais de pão, senhores do destino
25.07 – A outra margem do rio
30.07 – A enganosa ilusão do Eldorado
06.08 – Brasil de duas faces
13.08 – Esperando Erwartung *
20.08 – Depois do Muro de Babel
27.08 – Lições de culinária parlamentar
03.09 – Vim do Norte Severino
10.09 – Bastou um vento para a desfolhar *
17.09 – ‘Passons au déluge’
24.09 – Briga de cachorro grande
01.10 – Fim do Bolo Brasil
08.10 – Esta arma nós não podemos depor
15.10 – A generalização do mineirismo
22.10 – O verdadeiro plebiscito
29.10 – Ainda resta uma esperança *

(Os assinalados com asterisco foram republicados aqui no blog)

 JB 004

Talvez para amenizar a visão depressivamente ridícula dos” espetáculos populares” que integram em geral nossas representações oficiais no exterior, a televisão francesa (canal TV5) apresentou na semana passada um documentário de quase duas horas sobre a cidade mineira de Diamantina, considerada patrimônio da humanidade. Em geral, toda vez que os estrangeiros documentam alguma coisa sobre o Brasil, é fatal que o foco da reportagem recaia sobre os aspectos mais deprimentes do nosso país: favela, miséria, doenças, pauperismo, indigência, ignorância, extermínio de índios, folclore mambembe, exotismo primitivista. Desta vez, foi um tanto diferente: embora fossem registrados demoradamente aspectos da procissão de Notre-Dame des Douleurs, a ênfase recaiu sobre 1.700 alunos (disseram), uniformizados e bem-portantes, que se dedicam ao aprendizado da música instrumental naquela cidade.

Por algum tempo, ficava-se na dúvida se a cena se passava realmente na terra do futebol e do carnaval. Em vez de estarem na rua jogando pelada ou batendo tamborim, os meninos de Diamantina empunhavam com seriedade seus violinos, seus instrumentos de sopro, de percussão, etc. e se dedicavam ao estudo da música barroca. Qual seria a entidade pública capaz de criar em Minas um projeto tão avançado e tão benéfico? Que sociedade progressista e instruída estaria por trás desse milagre brasileiro? A objetiva dos franceses não permitia dúvidas: a garotada local estava levando a sério aquela atividade pelo fato de nela reconhecer os benefícios desse aprendizado na formação de sua personalidade.

É sabido que a música estimula a capacidade mental, que age como uma espécie de matemática sonora, enriquecendo o raciocínio e a criatividade. Não é sem razão que os povos civilizados da Europa e do continente norte-americano investem nas escolas de música, nos orfeões, nos corais, incluindo esse aprendizado mesmo nos currículos primários. Bastante diferente aqui da terra em que os nossos dirigentes, sempre antenados na demagogia mais rendosa e eleitoreira, só pensam em criar campos de futebol e terreiros de capoeira. Não que se tenha algo contra o esporte, igualmente necessário para a eugenia da raça; nem contra os ritmos populares, a alegria do povo; o que se gostaria de ver é a não exclusividade deles em detrimento de quaisquer outras atividades que poderiam ser úteis ao desenvolvimento intelectual da nossa juventude

Recentemente o governo do Rio de Janeiro anunciou, em campanha publicitária, que estava liberando verbas para a construção de duas centenas de campos de futebol. Seria mais construtivo se parte dessa verba pudesse ser aplicada em outros tipos de educação de massa, no auxílio às entidades culturais falidas por falta de recursos oficiais, na manutenção de orquestras sinfônicas que se estiolam pela ausência de interesse particular ou público, pela criação de mais bibliotecas. Mas falar em cultura no Brasil desperta o escárnio daqueles que vêem na atividade cultural um ato de elitismo. O povo tem que ter é bola; bater bola na rua, nas calçadas, nos pátios, nos playgrounds, na praia, no saguão dos prédios, e até nos elevadores de edifícios (já vimos!). A bola é o nosso deus, nosso futuro, nosso único momento de glória. Músicos, pintores, escultores, artistas plásticos, arquitetos, escritores, tudo isto é frescura. Se a fome-zero não deu certo, a bola­-milhão certamente dará: 120 milhões de bolas para serem distribuídas por todo o país e seremos os invencíveis campeões do mundo. A cabeça não nasceu para pensar, mas para poder cabecear.

JB 005

Na maratona de ridículos à qual estamos assistindo, surge, a cada semana, um fato mais grotesco para superar a marca anterior. Só que desta vez tivemos um empate. Que será mais hilariante: o prefeito de Campinas proibindo o uso de “roupas típicas” na festa de São João ou o presidente Lula editando mais um de seus “arraiá” nos jardins do Palácio do Planalto? No caso de Campinas, o ato é tão absurdo como seria um desfile de carnaval sem escolas de samba. E, quanto à festa junina do Planalto, ela nos parece redundante, já que o governo vive num permanente forró caipira, em que o mais lamentável provincianismo se alia ao que de pior existe no folclore (cultural) brasileiro. Animados pelo quentão, certamente irão ouvir o mestre-de-cerimônias Dr. Dirceu, com impecável sotaque caipira, dizer: “0 PT não róba nem deixa róbar”, e já talvez por força do hábito roubando um “u” na conjugação verbal.

Enquanto isso, fogos, foguetes, foguetões, bombinhas, traques, girândolas, busca-pés, rojões estarão pipocando, explodindo, espiralando pelos salões do Congresso nas mil e uma CPIs que se instalam, se enroscam, se desfazem ou se multiplicam, sempre gerando ainda a ilusão ingênua de que veremos alguns fogos-de-bengala luzindo no céu da esperança de que algo vai mudar com essas movimentações. Mas, até agora, pelo rolar da carruagem, ou melhor, pelo rinchar preguiçoso dos fueiros dos carros-de-boi, a única vítima certa e previsível é o deputado Roberto Jefferson, que será, nas linhas do atual clima folclórico, impiedosamente malhado como um Judas de sábado da Aleluia.

O mais triste de tudo é que essa maratona de ridículos representa apenas uma parte ínfima do descrédito nacional. Desmotivada pelos exemplos negativos que vêm de seus governantes e das elites apodrecidas, a classe média– a verdadeira espinha dorsal da nação, na frase estereótipo — só pode sofrer as artroses do arrocho, os entorses do achatamento. Sem acesso à cultura, que foi escamoteada, varrida dos ideogramas nacionais como uma doença que tem de ser erradicada; sem possibilidades de ascender na escala de conhecimentos imprescindíveis à vida moderna; e intoxicada pelo mau gosto das artes populares, que lhes são impostas como o supra-sumo da criatividade humana, as gerações atuais estão sofrendo um processo de catarata progressiva, de otite obstrutora. de olfação degenerante em que os odores mefíticos são confundidos com aromas transcendentes.

A televisão, a propaganda martelante, o consumismo pé-de-chinelo, tudo puxa para baixo, para o inferior; para a falta de classe, de bom gosto, de cultura, de civilização. Entregue a uma governança sem programa, sem meta, cujo único objetivo é o de salvar a própria pele (e a de seus familiares, segundo Severino), a população brasileira está chegando aos mais baixos níveis de alfabetização, de desempenho cultural, de atividade criadora de que se tem notícia. Em vez de música séria, tome forró. Em tez de, espetáculos enriquecedores da mente, as baboseiras da vulgaridade rastaquera.

Enquanto os outros povos se aculturam, avançam no domínio da técnica, progridem no campo das artes, constroem países mais ricos e mais poderosos, nós vamos aqui — com a ajuda dos de cima, que pisam sobre as nossas costas — cada vez nos afundando mais na ignorância, na grossura e, daí para baixo, no crime e na devassidão. Chega de forró, chega de folclore esclerosante, chega de cultuar o que temos de pior e de mais preguiçoso. Está na hora de um governo decente e progressista nos dar educação, cultura, tecnologia e arte, que são os instrumentos garantidores da verdadeira liberdade.

Read Full Post »

Apresentação escrita por Ivo Barroso para a peça Medida por Medida, de William Shakespere, traduzida por Beatriz Viégas-Faria e editada pela L&PM em 2012.

ESTA OBRA, cuja classificação já de início nos leva à categoria das chamadas “peças problemáticas” de Shakespeare, foi inicialmente escrita e editada como sendo uma comédia (como está no First Folio de 1623), mas com boas razões os críticos e comentaristas posteriores se inclinaram a arrolá-la entre as tragédias do Bardo.

A peça gira toda em torno dos conceitos de justiça e corrupção, equidade e abuso do poder, castidade e volúpia, ou seja, de sentimentos conflitantes que não raro ocorrem num mesmo personagem. A busca de uma justiça equânime leva a uma série de equívocos, sentenças e condenações capitais, embora amparados em lei, mas que, não obstante, poderiam ser circunstancialmente revogados ou que são desfeitos diante de ocorrências tão condenáveis quanto as que deram lugar às próprias condenações. Daí parecer estranho que um tema tão crucial como o da administração da justiça, assombreado ainda pelas cogitações da inexorabilidade da morte, tenha levado Shakespeare a introduzir na peça algumas cenas cômicas ou mesmo burlescas que destoam grandemente da seriedade do tema.

Embora o argumento não tenha as características do tom dramático de suas outras peças do gênero, parece visível que os trechos supostamente cômicos nela inseridos constam apenas para amenizar a ação central, em que argumentações de ordem jurídica e debates sobre a consciência ética então intimamente relacionados com os sentimentos de orgulho e de humildade. Assim como está concebida, tudo indicaria que Shakespeare tinha em mente dois públicos distintos: um altamente sofisticado, ocupando os lugares superiores do teatro, e composto de representantes da aristocracia para os quais suas elaborações no campo jurídico teriam amplo significado; e outro, para a plateia “diferenciada”, representada por  aqueles que ocupavam a arena ao rés do chão, fronteira ao palco, em geral composto de palafreneiros e criados, que esperavam seus mestres,  e se divertiam com os momentos cômicos da peça, aliás vazados numa linguagem como que feita a propósito para satisfazê-los. Essa ambiguidade, essa duplicidade vai permear toda a peça, fazendo com que também os personagens se apresentem ora sob uma faceta ora sob outra que lhes pode ser até contraditória.

Shakespeare inspirou-se  na “História de Epitia”, que figura no Hecatommithi, de Cinthio, uma coletânea de narrativas respigadas de várias fontes, inclusive das Mil e Uma Noites. Este Cinthio (cujo nome aparece escrito também como Cintio e Cinzio) era o pseudônimo de Giovanni Battista Giraldi (1504-1573), professor de filosofia universitário, autor de 9 peças de teatro, entre as quais a tragicomédia Orbecche, apresentada em Ferrara em 1541 e que alguns críticos consideram a primeira manifestação teatral de características modernas e bem assim modelo de todas as tragédias subsequentes. Suas histórias, vazadas num estilo que lembra vagamente Boccaccio e Matteo Bardello, tiveram uma tradução francesa em 1583, e presume-se que tenha sido esta a fonte em que se inspirou o Bardo para a composição de Medida por Medida. Nessa  obra do dramaturgo e contista italiano, também conhecida como “Ecatomiti”, foi que  Shakespeare encontraria igualmente as linhas mestras do argumento de Otelo, que escreverá por essa mesma época. Mas há discordância quanto àquela origem: outros críticos tendem a indicar como fonte inspiradora não esse núcleo original, mas um drama de George Whetstone, de 1578, Promos and Cassandra, que, por sua vez, estaria baseado na história de Cinthio, em que o autor só acrescentou os elementos cômicos e o quiproquós que envolvem alguns dos personagens – recurso este utilizado à larga no teatro da época com intenções de divertimento.

Outra discrepância interessante: a ação da peça transcorre em Viena, mas todos os personagens têm nomes italianos: Vicentio, Isabella, Claudio, Angelo, etc. Os estudiosos Gary Taylor e John Jowett, em seu livro Shakespeare Reshaped, de 1993, argumentam que parte do texto de Medida por medida, tal com o conhecemos hoje, não corresponde ao original shakesperiano, sendo produto de uma revisão póstuma executada por Thomas Middleton, que teria mudado o cenário original (Itália) para Viena, talvez por motivos de ordem política ou por considerar a capital austríaca na época mais adequada ao clima de concupiscência em que se desenrola a ação. Também seria devido a Middleton o encaixe das cenas humorísticas (e quase imorais), responsáveis pela falsa classificação da peça na categoria de comédia. Essas alterações foram processadas tanto no próprio tempo de Shakespeare, seguindo as conveniências das várias companhias que as encenaram, quanto em épocas posteriores, e em tal quantidade que, em 1699, o produtor teatral Charles Gildon, ao adaptá-la com o nome de Beauty the Best Advocate [A beleza é o melhor advogado], não só remove os personagens espúrios, como elimina ainda a sexualidade pseudoilícita, apresentando os pares Angelo/Mariana e Claudio/Julieta como sendo casadosem segredo. Jácônscio de tantas alterações infligidas ao texto do Bardo, esse mesmo Gildon ousou ainda introduzir na peça um epílogo em que o fantasma de Shakespeare surge em cena e reclama das constantes revisões a que seu trabalho estava sendo submetido.

Quanto ao título, porém, nenhuma controvérsia: o próprio autor consigna sua fonte numa fala do personagem principal, o duque Vicentio, quase ao fim do quinto ato: Haste still pays haste, and leisure answers leisure. / Like doth quit,  and MEASURE still FOR MEASURE (A pressa sempre redunda em pressa, e a morosidade corresponde à morosidade. Só as igualdades se equivalem, e a medida é sempre de acordo com a medida), expressão que corresponde aos versículos bíblicos “Não julgueis para que não sejais julgados, pois, conforme o juízo com que julgardes, sereis julgados; e a medida com que tiverdes medido vos hão de  medir a vós.” [Mateus, 7: 1-2], que, como se sabe, é uma versão cristã light do velho brocardo talmúdico do “Olho por olho, dente por dente”.

O enredo da peça é algo desconcertante: a tentativa de promover a justiça perfeita acaba num happy-end a bem dizer injusto. Não se tem uma idéia precisa das intenções de Shakespeare: se está favorecendo a norma estabelecida ou apontando a sua inaplicabilidade. Vicentio, por exemplo, o duque governante dessa suposta Viena, é sábio e justo, mas tem dúvidas quanto ao seu exercício da justiça, pois devia condenar os abusos sexuais, vetados por lei, que seus súditos vêm praticando há muito, mas sobre os quais tem feito vista grossa. Em sua tentativa de reparar o mal passado e estabelecer a observância irrestrita da lei no presente, confia o poder a Angelo, o supremo magistrado, conhecido por sua intransigência em relação à imoralidade sexual. Angelo é inflexível na atribuição e cumprimento da lei, e descrito como “um homem que tem neve derretida nas veias, que não sente nem as ardências do desejo carnal nem os movimentos prementes dos cinco sentidos”, mas ao se ver na posse do poder revela sua verdadeira personalidade freudiana, ao barganhar uma sentença de morte pela virgindade da irmã do réu. A tentativa de Isabella de salvar a vida do irmão, obtendo a clemência de Angelo, enseja a Shakespeare um dos momentos altos da peça: é uma troca de argumentos pró e contra, num duelo de dialética em que se embatem as noções de dever e crueldade e de culpa e clemência.

Muitos comentaristas apreciam a maneira com que Shakespeare estaria mostrando aos fidalgos que iam assistir às suas peças o quanto ele era versado nas intrincâncias do discurso jurídico, o que, aliás, já fizera à saciedadeem Júlio César, na falaem que Marco Antônioconsegue subverter a opinião pública contra a ideia, propalada por Brutus e os outros assassinos, de que César era um político ambicioso. Outra mudança extremada de posição ocorre relativamente ao condenado à morte, que admite a princípio o seu erro e considera a sentença justa, diante da defesa da ars moriend – um dos altos momentos da peça – em que há a famosa sequência: “Argumente assim com a vida: se eu te perder, perco uma coisa que só os tolos querem preservar”. Pouco mais tarde, porém, diante da real perspectiva da execução da sentença, insurge-se contra a ideia da morte e contra a sua própria inevitabilidade, em palavras que se tornaram antológicas na obra shakesperiana: “Sim, mas morrer e ir para não se sabe onde (…) é pavoroso demais! A vida mais cansativa e odiosa deste mundo, que a velhice, as dores, a penúria e a prisão /podem impor à natureza — é um paraíso /em face ao que tememos da morte”. Durante todo o transcorrer da peça, Isabella, a irmã do condenado, parece ser o único personagem coerente, capaz de manter sua integridade mesmo diante de situações conflitantes e constrangedoras. O enigmático Shakespeare não nos deixa saber, no fim do drama, se ela aquiesce ou não à proposta do duque, o que, em caso positivo, poderia ser interpretado também como desvio de comportamento. O drama alcança tons de absoluta modernidade quando o juiz dito incorruptível se corrompe vencido pelo sexo e invoca a sua imunidade quando ameaçado de denúncia. Que importaria a denúncia contra alguém todo poderoso, se ninguém iria acreditar na palavra do denunciante? Ele é o dono da lei, e se acredita acima dela,  considerando-se portanto inatacável e  impune. (Até parece que Shakespeare estava se inspirando em alguns exemplos surgidos ultimamente!).

Que mensagem Shakespeare estaria nos transmitindo com sua peça, se é que havia outra intenção além de criar um texto para ser representado e lhe proporcionar algum pecúlio? Onde estaria a justeza do título? Se alguns personagens são julgados com extrema severidade, até mesmo com pena de morte, por um desvio comportamental inteiramente passível de ser corrigido de maneira prática e espontânea pelo  próprio delinquente, outros – como e principalmente Angelo – contra os quais há abundância de provas de sua iniquidade e prepotência, o juízo e as penas finais aparecem brandas e inócuas, dando a impressão de que a ausência do duque Vicenzio com o intuito de observar os desmandos de sua corte de nada teria servido para uma administração mais correta da justiça, já que, após seu julgamento coletivo, as coisas em Viena (?) voltam ao seu statu quo ante. Estaria Shakespeare zombando da justiça dos nobres e poderosos, expondo-lhes a fraqueza de julgamento diante de seu poder de condenação? Será que estaria retratando a sua época? Será que desde o seu tempo já era usual “blindar-se” o poderoso negligenciando as acusações dos humildes caseiros? A leitura desta peça – a menos que a encaremos como não mais que  um mero divertimento, e portanto como uma comédia banal – deixa os leitores do Bardo curiosos por saber qual o sentido moralista que o título (bíblico) prefigurava.

Read Full Post »

%d blogueiros gostam disto: