HINO A DELOS (fragmentos)
Quisera estes leões voltados para o mar.
Mas os Naxos puseram-nos de frente para o Kyntos:
olhos fitos nas fáculas de Apolo.
Cidade aberta ao estrangeiro.
Na praia
poderiam parecer sentinelas hostis
com o radar de seus urros sem ruído
a varrer águas ásperas de velas.
Feras jacentes,
nelas não há o pressuposto salto à espera da presa;
antes seres votivos
que ambulassem prosaicos pelas ruas
despertando respeito em vez de pânico.
O vento que das Cíclades
sopra por sobre a espraiada extensão desta ilha
e x s u r g e n t e,
gastou o dorso hirsuto destes grifos
e o cansaço das eras se reflete nas ancas derreadas,
nesse olhar cujas pupilas foscas
ficaram para sempre abertas para a morte.
II
De há muito que os deuses desertaram.
Lá na enseada onde se ouviam vozes
antes mesmo que o Sol se houvesse erguido
há vagas de silêncio
e as águas gastas pelas quilhas
que sem cessar entravam pelo porto
hoje se adensam em quase lodo e lembram
apenas o ferir de cascos que se foram.
Mas eles
presos pelos pés
na pedra
que lhes serve de jaula, permanecem
reverentes a Phoibos que penteia
com o garfo de seus raios as jubas aljofradas.
Ai que da orla do secluso bosque
Artêmis já não surge como outrora,
quando de suas mãos alçava as alpercatas
e os precedia à fímbria da água
onde sedentos os leões sorviam
em mil fragmentos sua própria imagem!
III
O artista que os criou decerto nunca
defrontara uma fera; talvez nem mesmo
de uma distância precatada os visse
pascendo na savana.
Pois do contrário
a massa estuaria em perfeições estéticas:
ordenada ossatura do volume / tensão elétrica dos
músculos / juba hierática / fundo olhar hiante —
a fauce, a força, a FORMA enfim da fera.
É que esta fera, mais do que uma fera
reproduzida em pedra para os pósteros,
é uma fera feita para ser
a imagem da fera, mais que a fera;
como se em vez d’après nature ,
fosse um projeto contra-a-natureza,
além dessa harmonia inquestionada
que aceitamos como sendo a fera,
a vera fera feita realidade.
Por que leões? Não sei. Mas hic sunt
nos portulanos desta ágora,
gráficos mais que grifos,
signos, indícios mais que goelas,
mais que carne e garra
outra verdade em verbo.
IV
Aqui diante destes
leais
leões, aqui de
joelhos,
a que deus orar
se é que há
deuses?
Se não houver,
ora,
por que orar?
Orar só porque não há.
Aqui diante deles
Delos
aprender a esperar
na pedra
ou seja
na parada
posição de quem
espera
por esperar,
aprender
a pensar
a pedra,
a pura perda
de pensar.
Aprender
preso o pé
que apesar
de preso podes
pensar.
(1978)
(In A Caça Virtual e outros poemas – Ed. Record – 2001 – pp. 89-92)