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Posts Tagged ‘búfalo’

Nos anos 1959/60, Reynaldo Jardim era o redator-chefe (hoje diríamos editor) do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, ali surgido com a revolução gráfica encabeçada por ele, quando a Condessa Pereira Carneiro (dona da folha) resolveu finalmente permitir a modernização do órgão. O JB era tempos antes um jornal exclusivamente de anúncios (imóveis, carros, empregos, funerais, etc) que enchiam da primeira à última página, em caracteres compactos e impessoais. Reynaldo reformulou o jornal de cabo a rabo: acabou com os anúncios de primeira página, transferiu-os para um caderno à parte, criou os editoriais, as reportagens, a cobertura de eventos, o noticiário enfim, à semelhança dos grandes periódicos estrangeiros. Mas a grande revolução se deu mesmo no suplemento literário, antes dele um morno coquetel de assuntos domésticos, trabalhos manuais, receitas de bolo e fotografias de equívocos alfenins em sapatilhas de balé. Reynaldo, tendo ao lado o artista gráfico, Amílcar de Castro, criou uma paginação em que predominavam os espaços em branco, a ousadia dos corpos tipográficos, sem falar na excelência e modernidade dos temas literários (poemas, traduções, ensaios, contos, entrevistas) que se destacavam na estruturação das matérias.

Entre os colaboradores fixos estava o Ferreira Gullar, que escrevia sobre complexos problemas de artes plásticas e vez por outra comparecia com um poema seu. Em 1959, o suplemento dominical (que saía chaplinianamente aos sábados) lançou a página Poesia Experiência, assinada pelo jovem poeta-crítico Mário Faustino, que foi outra revolução dentro da revolução. Era uma página vibrante, que publicava, comentava, discutia, ensinava poesia aos jovens iniciantes do ofício. Entre suas seções havia o Poeta Novo e a Poesia Traduzida. A primeira aceitava (selecionava) colaborações dos leitores; a segunda ilustrava os grandes poemas universais traduzidos em nossa língua. Um dia, vencendo uma histórica timidez, mandei para o suplemento um poema que havia traduzido (“Ein Gott vermags”, de Rilke), na esperança de vê-lo aparecer na seção correspondente. Para minha surpresa, ele saiu na seção o Poeta Novo, com uma nota em que Faustino dizia considerar a tradução de poemas uma verdadeira recriação. Inflado de coragem, resolvi ir à Avenida Rio Branco, 118 agradecer pessoalmente pela publicação. E fiquei conhecendo Reynaldo Jardim. Foi o Assis Brasil, então de bigodinho, um dos poucos  funcionários efetivos do jornal e secretário do suplemento, quem me apresentou àquele senhor corado, cabelos cor de palha, já com uma entrada de calvície, de sotaque nitidamente paulista e poucos anos mais velho do que eu. Reynaldo tinha à mão uma régua e paginava o próximo seguinte número do suplemento. Perguntou-me se eu tinha outros poemas e traduções (que eu por cautela havia levado comigo) e naquele mesmo dia me convidou a colaborar permanentemente com o jornal. Embora recebendo por colaboração publicada, passei a frequentar o suplemento, onde havia um grupo de poetas jovens que circulavam em torno de Faustino, ansiosos por se verem publicados. Havia na publicação um endeusamento permanente de Ezra Pound, e Reynaldo achou que devia apresentar a outra face do argumento: foi assim que traduzi As máscaras de Pound, um ensaio de R. P. Blackmur, cuja publicação se estendeu por umas três semanas e me isolou definitivamente do grupo de satélites. Reynaldo comentou comigo que a Condessa vinha recebendo um crescente número de reclamações relativas à modernização do jornal e da rádio. (Ele dera também novo perfil às transmissões radiofônicas do JB, criando um noticiário que entrava no ar de hora em hora com um prefixo definido e tinha uma característica desenvolvida por ele: o locutor Mauritônio Meira lia o texto da notícia de um só fôlego, como uma metralhadora de palavras. Era uma sensação, com Reynaldo cada dia alongando mais as frases para ver até que ponto ele conseguiria aguentar.) A maior pressão contra as reformas vinha das amigas da Condessa e de seus antigos ex-colaboradores, que não se conformavam com as “modernidades” e o sucesso que o suplemento estava obtendo, já considerado o maior veículo de informação cultural do país. Mas a Condessa era uma pessoa arguta e sabia que o jornal, modernizado, estava vendendo bem e era um êxito. E, que tendo aberto suas páginas ao movimento concretista, que nascia em São Paulo, o suplemento se tornara o mais atuante órgão de vanguarda da imprensa da época. Um dia, no entanto, Reynaldo me confidenciou que seus dias estavam contados na redação, pois agora havia pressão política para que ele saísse. Antes que isto ocorresse, Reynaldo pediu demissão e foi dirigir a revista Senhor, recém criada pela Editora Delta. Convidou-me e fui com ele. Mas sua permanência ali foi breve. Perseguido pela Revolução, atuou discretamente em vários órgãos da imprensa no eixo Rio-São Paulo, andou pelo Norte-Nordeste e modernizou jornais também em Curitiba. Órgãos da imprensa necessitando de uma oxigenação recorriam à sua UTI de eficácia editorial. Autor de muitos livros, publicou na época do suplemento, o primeiro (e talvez único) romance concreto de que se tem registro, em que contava uma viagem à Lua. Como estive fora do país por muito tempo,  pensei que nossos contatos se haviam perdido, até que recebi, em 1972, vinda de Manaus, uma plaquete intitulada Paixão segundo Barrabás, de sua autoria. Foi um deslumbramento: Reynaldo voltava à poesia de sempre, à poesia eterna, à poesia víscera e emoção. Anos mais tarde, já de volta ao Brasil, em 2005, estive pessoalmente com ele por ocasião do lançamento de um novo Caderno B do Jornal do Brasil em que ele escreveria um poema por semana e eu uma crônica. Ele estava morando em Brasília e, nessa ocasião, me disse que vinha reunindo seus escritos num livrão que iria chamar-se Sangradas Escrituras. Isto mesmo, san-gra-das, pois eram escritos que lhe haviam custado suor e lágrimas. E perguntou se podia transcrever como prefácio a resenha que eu fizera sobre A paixão segundo Barrabás, em 1972.

O livro saiu em dezembro de 2009, fora do comércio, com cerca de 1200 páginas em papel cuchê, uma capa belíssima, bolação dele e de Eduardo Bonfim, reunindo toda a sua obra poética, os milhares de poemas soltos de seu fabulário e de suas descrições de gravuras, suas próprias incursões pelas artes gráficas, etc. etc. etc – enfim um livro para ninguém botar defeito e candidato seguro a um grande prêmio. O prêmio de fato veio: Reynaldo foi um dos três finalistas do Jabuty de poesia de 2010. Mas, para a decepção de todos seus amigos amantes da verdadeira poesia, acabou em segundo lugar e, ao concorrer em seguida ao melhor livro do ano, foi desbancado pela popularidade de Chico Buarque de Holanda. Reynaldo não disse, mas certamente deve ter-se abatido com a injustiça literária. Irônico, numa entrevista, afirmou: “O Jabuty é irrelevante. Quero mesmo é ganhar o Nobel”.

Reynaldo Jardim faleceu na madrugada do dia 1º de fevereiro, em consequência de um aneurisma na artéria aorta, aos 84 anos de idade.

O PREFÁCIO PEDIDO

Em 1972, tendo recebido de Reynaldo Jardim uma plaquete de 40 páginas com o poema  Paixão Segundo Barrabás, escrevi para o Suplemento Literário do Jornal do Brasil a seguinte resenha:

Este pequeno livro, editado em Manaus por Umberto Calderaro, contendo apenas três poemas, pode vir a indicar entretanto um momento aguardado da literatura nacional: a volta à poesia. Seu autor, Reynaldo Jardim, que sempre se encontrou ligado aos movimentos de vanguarda – quando não colocado diretamente à frente deles, como no caso do Concretismo (do Rio) nos últimos anos da década de 50 – seria provavelmente o último poeta a recorrer a formas tradicionais (não-concretas) do verso, se não estivesse convencido do esgotamento, impasse, incriatividade ou incomunicabilidade dos processos gráfico-espaciais, processuais-praxísticos – ou que melhores e mais novos nomes tenham todas essas tentativas (ensebatórias ou crucialmente sérias) a que os poetas novos brasileiros se entregaram em sua maioria, após acreditar ingenuamente que Drummond e Cabral já eram.

Não que Reynaldo tenha voltado ao sone­to parnasiano ou a essas trêfegas can­ções-de-enganar-mulher, à maneira Viní­cius de Morais. Seu retorno é antes uma retomada de caminho, interrompido pela vereda ( necessariamente digna de explo­rar-se) do Concretismo; só que Reynaldo soube ir até o fim da picada – e voltar, de modo que tal volta, em vez de retroces­so, para mim significa uma experiência nova, e mais rica, pois traz consigo todo o ferramental utilizado no desbravamen­to das trilhas concretistas. O poema – que o livro todo é, a rigor, um só poema – pela sua “linguagem farta, exuberante, numerosa, úmida e quente” (no dizer do próprio autor) é, na aparên­cia, um borbotão incontido, um estrondo de águas amazônicas, a voz do homem nas­cendo das potencialidades telúricas. Mas, na verdade, foi escrito entre os búfalos do tráfego carioca, no entrechoque das ondas de apatia e de neurose da cidade grande, à sombra das esgalhadas antenas de televisão. Sua figura central é Barra­bás, o que foi poupado em lugar do Cris­to, eterno portanto igual a Cristo, domi­nado pela angústia de não ser o Cristo (que melhor imagem para personificar a condição do poeta!). Em sua eternidade, Barrabás é o homem de hoje, universal nos acentos eliotianos alcançados pelo verso de Reynaldo.

“a Terra ao perder de seu eixo o fulcro antigo, ao ganhar

em seu eixo o novo impulso (…) o parto matinal

banhado na seiva grossa de carbono e enxofre”

mas vivendo seu instante de brasilidade – esse Barrábas-Macunaíma – metido na floresta como um búfalo, com seu ver­bo verde e vigoroso, acentos de uma poe­sia já não pau-brasil nem ufanista nem falsamente papagaia, mas cheirando a seiva e de vigor inventivo, voltando-se e envolvendo-se como um ventre de jibóia, cheia de ritmos crus à Vila-Lobos, pletóricos, clamorosos, genuínos – sons de poesia grande, rude, quase anti­cultural.

“Para assistir a faca retalhando as carnes dessas frutas fartas e maduras… Vede que o faz brilhar mesmo se o escuro bate

em seu osso de aço, em seu aço de carne, sem perder o seu brilho de manhã e de tarde…

já a margem do lago, já o rumor do lago,

já essa lagosta, ostra, caranguejo, beija…”

Poesia cujo roteiro é Aquarius, carregan­do a bagagem indispensável, esvaziada de qualquer inú­til artifício, com a mente cheia da cons­ciência do estar aqui, dando adeus “às Ofélias hippies, aos demônios esporádi­cos, às virgens passageiras” — Reynaldo es­tá nessa viagem do sangue para as suas origens, fazendo o caminho de volta para a água-­mãe. E saúda o amanhã, “as flautas das manhãs”, quase geórgico, meio-virgilia­no – enfim, eterno – no seu passo/com­passo de Barrabás-beat, livre para a ex­periência, para o grito, para a poesia.

Daí minha exaltação radiosa ao ver agora, do alto da montanha, num alcance panorâmico, não só o Barrabás da minha admiração inicial, agora completo e retumbante, mas uma colheita dourada dos melhores poemas de Reynaldo: os seus meninos, os seus animais, os seus quadros, os seus axiomas, e mais alguns desenhos e experimentos dignos de preservação. Reynaldo é o homo faber tão realizado que seus chamados versos de circunstância nunca são versos circunstanciais, mas a melhor poesia detonada pela observação momentânea de um fenômeno qualquer. Seu “bestiário” (se assim podemos chamar suas amorosas “fotos” de animais vivos ou sonhados), representa o que há de melhor nas criações da zoologia fantástica. E suas descrições de gravuras são as artes plásticas transcritas e restauradas na linguagem poética. Em boa hora, pois, Reynaldo Jardim achou de reunir em livro os inestimáveis tesouros que guardava no baú ou que eram conhecidos apenas de uns happy few. Agora toda essa pletora passa a ser um legado ao leitor. Valeu a volta à poesia.

 

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