Solteirão de muitos amores mas de poucas ligações permanentes, arredio da grande cidade embora a visitasse para o convívio ocasional de seus amigos escritores, avesso a qualquer tipo de convenções (“As honrarias desonram, os títulos degradam, os empregos entorpecem”), Gustave Flaubert (1821-1880) havia se refugiado na literatura, em sua propriedade rural de Canteleu-Croisset, para vencer a aversão pela tolice humana.
Esse recolhimento campestre teve, no entanto, outros determinantes. De compleição robusta, Flaubert sofria de epilepsia psicogênica, e seu pai, cirurgião-chefe no hospital de Rouen, achou conveniente que o jovem trancasse matrícula no curso de direito em Paris e se recolhesse à província, onde seria mais bem assistido pela família. Ideal para ele, que só pensava em escrever. Mas alguns infortúnios domésticos iriam marcá-lo: o irmão mais velho Achille, médico-cirurgião como o pai, acaba louco; a irmã Caroline, por quem tinha manifesta afeição, casou-se em 1845 com Emile Hamard e teve uma filha de seu nome, morrendo em seguida; Flaubert assumiu a criação da menina, pois Hamard, desesperado, enlouqueceu após a morte da esposa. O pai, seu grande esteio, falece no ano seguinte. Restou-lhe a Sra. Flaubert, descrita por ele como sua carcereira, confidente, ama, paciente, banqueira e crítica.
Mas muitos são os amigos fieis que o cercam, como Louis Bouilhet e Maxim du Champ, este com quem viaja para o Egito, Palestina, Grécia, etc. dilapidando boa parte da herança que lhe coubera com a morte do pai. E grande é o número de seus/suas correspondentes e confidentes, aos quais escreve montanhas de cartas (hoje reunidas em cinco volumes), comentando seus projetos literários e seus afãs amorosos. Visto como o “carrasco de si mesmo”, levava anos para escrever um livro, às vezes semanas para produzir uma página, esse cultor do “mot juste” que se tornou um dos maiores estilistas da literatura francesa do século XIX. Seus livros, como Salambô e Madame Bovary (que provocou escândalo, e um processo judicial do qual foi absolvido por pouco) trouxeram-lhe grande fama e sucesso financeiro, enquanto outros, como A educação sentimental e A tentação de Santo Antão não alcançaram o grande público, e, neste último caso, houve mesmo a insistência dos amigos para que o jogasse fora.
Durante cerca de 30 anos, principalmente nos últimos seis de sua vida (de 1874 a 1880), entregou-se à composição de Bouvard e Pécuchet, um romance anti-romântico, ao mesmo tempo fugindo do naturalismo reinante, em que, à falta do enredo tradicional, os acontecimentos são substituídos pela troca e conflito de ideias. Bouvard (viúvo sem filhos) e Pécuchet (solteirão convicto) são dois escreventes (ou copistas) que, graças a uma oportuna herança do primeiro e às economias acumuladas do segundo, vão se estabelecer na propriedade rural de Chavignolles, com o fito de adquirir cultura no convívio com os livros. Acreditando que as ciências pudessem ser aprendidas e experimentadas pela simples leitura dos compêndios doutorais da época, chafurdam em montanhas de livros e adquirem os implementos neles preconizados para a prática da atividade científica. Os resultados são desastrosos em função dos conflitos que os doutos geravam na defesa de suas teses e teorias. Os dois escribas se dedicam de início à jardinagem e à agricultura, embrenhando-se sucessivamente pelos estudos de agronomia, química, anatomia, fisiologia, medicina, higiene, astronomia, história natural, paleontologia, geologia, arqueologia e história. A cada leitura e a cada discussão, intentam provar ora a falácia dos livros, ora o que julgam o acerto de suas próprias teorizações, chegando fatalmente a resultados desastrosos tanto num caso quanto no outro. Como disse Guy de Maupassant no aparecimento do volume em 1881, trata-se de “uma prodigiosa crítica de todos os sistemas científicos que se opõem uns aos outros, destruindo-se mutuamente pelas contradições dos fatos”. O intuito de Flaubert não foi desmoralizar a ciência em si, mas as incongruências e bizarrices que o ensino da ciência então apresentava. Para tanto, desloca estrategicamente a ação (?) do livro para 30 anos antes (1840-50), o que lhe permite abordar e contradizer um quadro científico ainda mais empírico e criticável que o do seu tempo.
Flaubert parece ter “vivido” a experiência de seus (anti)heróis, pois ele próprio andou às voltas – como confessa a sua amiga Edma Roger des Genettes – “com mais de 1500 volumes”, lendo-os e anotando-os, para acumular um montão de fichas “com oito polegadas de altura!” Frases pinçadas em diversos respeitáveis tratados então em voga, mostram o quanto de chavões, crendices e toleimas eram tidos como ciência — anotações essas que viriam compor a 2ª parte (inacabada) do livro. Alguns dos desastres agrários, hortigranjeiros e florestais dos bonshommes de Chavignolles talvez tenham sido na prática experimentados pela inabilidade rural do grand seigneur de Canteleu-Croisset. Ele chega a passear à noite em sua horta com uma vela acesa antes de escrever a última página do primeiro capítulo, em que relata essa experiência de seus personagens. Logo se disse que Bouvard e Pécuchet eram uma réplica século-XIX das ilustres figuras de D. Quixote e Sancho Pança, cujas peripécias decorrem igualmente de um excesso de leituras cavaleirescas. Só que em Flaubert os moinhos de vento são as ciências empíricas e retrógradas, as cavalgadas pela honra e a virtude se fazem no campo das ideias. Os descobridores de semelhanças biográficas poderão dizer que Bouvard e Pécuchet são uma autocrítica da dupla Flaubert-Du Champ em suas viagens de explorações pelo Oriente e em suas discussões intermináveis a propósito de qualquer assunto. Extrapolando o terreno literário, o livro se apresenta de grande atualidade no cenário político mundial, principalmente em relação a nós, onde, por falta de planejamento e de correção administrativa, todas as iniciativas tomadas no campo das artes e ciências acabam nos melancólicos desastres dos bonshommes de Flaubert.
O livro saiu póstumo (1881): Flaubert havia morrido um ano antes, vítima da enfermidade fatal da terceira idade – escorregou na neve e partiu a fíbula (no seu tempo, o perôneo). Daí para as complicações é mais um passo. Esmagado pelo excessivo trabalho intelectual, ameaçado de falência, tendo que aceitar um cargo público para manter seu dia-a-dia, Flaubert morre aos 59 anos, de hemorragia cerebral. Saindo agora [2007] pela Estação Liberdade, louve-se Marina Appenzeller, a tradutora brasileira desta nova edição [a anterior, de Galeão Coutinho e Augusto Meyer é hoje raridade de alfarrábio] pela correção do trabalho feito, pela pertinácia em encontrar as centenas de palavras exatas para designar os substantivos das inúmeras ciências, artes e ofícios que inundam o livro.
(Fonte: Suplemento Cultura – O Estado de São Paulo -17.02.2o08)
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Em 1989, numa produção de Jean-Daniel Verhaeghe para os canais de televisão France 3 e La Sept, Jean-Claude Carrière adaptou brilhantemente o livro numa mini-série com Jean Carmet no papel de Pécuchet e Jean-Pierre Marielle no de Bouvard. Saindo em DVD em 1992, a realização permitiu ao grande público verificar como os dois atores conseguiram dar corpo, voz e alma aos personagens de Flaubert. A expressão cândida e fascinada de Carmet a cada frase ou decisão do incisivo Marielle consegue transmitir essa radiância hoje quase impossível das amizades puras e das afeições descompromissadas.