Fiquei em Lisboa até dezembro de 1982.
Em 1983 fui transferido para a Agência do Banco do Brasil em Londres e lá encontrei o José Guilherme Merquior no cargo de ministro conselheiro de nossa Embaixada. Eu conhecera Merquior nos anos 50, em Teresópolis, onde morava sua família, quando ainda meninote de uns catorze anos, mas já frequentando aos saraus literários da Pensão do Celso, onde se ouviam declamações de versos de espécies heterogêneas. Minha então namorada, e logo noiva, passava uma temporada em casa do irmão que se tornara vereador daquela cidade e por isto eu subia a serra com frequência nos gostosos tempos do trenzinho a cremalheira. O poeta local, Gastão Neves, de voz altissonante, declamava habitualmente o seu “Maria cheia de graça”, e Celso, o proprietário, sempre instado a dizer seus versos, acabava elaborando umas frases penumbristas e hesitantes, que arrancavam longos aplausos dos velhos hóspedes com mensalidades em atraso. Eu mesmo cheguei a dizer uns versos para agradar a namorada, e creio que até Merquior, uma vez, declamou a contragosto uma quadrinha que fizera para sua orgulhosa mamãe, também presente. Anos depois já estava ele no Rio dando conferências estudantis e escrevendo adoidado e, como eu colaborasse com o Suplemento Literário do Jornal do Brasil na época, apresentei-o ao Reynaldo Jardim, que deslumbrado com sua inteligência logo o incorporou à Redação. José Guilherme estreou com fogosos artigos de crítica literária, não poupando os medalhões da época e se envolvendo em acirradas polêmicas. Agora em Londres, no ápice de uma bem sucedida carreira diplomática, foi com prazer que reatamos uma velha amizade. Pudemos curtir juntos o Festival de Ópera de Glyndebourne (vendo o Intermezzo, de Richard Strauss), fazer um belo passeio ao campo e almoçarmos no (famoso) The Compleat Angler, em Marlow, às margens do Tâmisa, e flanar pela Belgravia onde morávamos. Em certa ocasião fomos ver juntos o musical Cats, de Andrew Lloyd Weber, que lá andava em cartaz desde a estreia em 1981. Nossa preocupação era saber se o compositor havia respeitado os poemas de Eliot ou se havia feito alterações, cortes ou encaixes. Para nossa surpresa, vimos que os versos estavam intactos, enriquecidos então por uma música contagiante e emotiva. Foi José Guilherme que me desafiou a fazer a tradução desses poemas em português. Aceitei o desafio, dias depois mandei-lhe uma primeira amostra e, a partir daí, ele me telefonava perguntando pelos gatos, como ia a ninhada, se já havia nascido mais algum. Os bichanos levaram alguns anos para crescer e completar a família. De Londres fui dirigir o Escritório de Representação do Banco em Estocolmo, na Suécia, onde passei 5 anos até me aposentar em 1989, quando, já por conta própria, fui morar em Paris. Lá, por coincidência, chegou, no ano seguinte (1990), o José Guilherme para assumir o cargo de embaixador na Unesco. Embora papeássemos com frequência à mesa do nosso restaurante preferido para almoço, o Divellec (na Esplanade des Invalides) e nos víssemos nos eventos oficiais, infelizmente nosso convívio foi.muito curto, pois ele veio a falecer prematuramente, vítima de um câncer terminal, um ano depois, Nesse mesmo ano, vim ao Brasil trazendo Os gatos e procurei a Nórdica do editor português Jaime Bernardes, que eu sabia ser o detentor dos direitos de tradução dessa obra de Eliot. O livro saiu, ganhou o Jabuti de tradução do ano, trazendo na folha de rosto esta homenagem: Dedico esta tradução à memória de José Guilherme Merquior, que tanto me incentivou a fazê-la.
Além de Os Gatos eu trazia outro livro comigo: uma antologia de meus poemas traduzidos, O Torso e o Gato. Fui logo mostrá-lo a Houaiss, que, amigo entusiasta como sempre, achou que as traduções mereciam uma apresentação. O livro saiu com seu aval nesse mesmo ano pela Editora Record e teve em seguida uma edição especial em capa dura feita pelo Círculo do Livro Ltda.
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Em 1992 regressei definitivamente ao Brasil e nosso relacionamento se intensificou com a minha volta. Falávamo-nos com frequência e tivemos um jantar como sempre memorável em seu belo apartamento na Lagoa Rodrigo de Freitas. Foi nessa ocasião que ele me falou en passant sobre o exemplar defeituoso dos Sonetos que lhe fora enviado pela Nova Fronteira, e ele agradeceu numa carta certamente elegante mas com uma pitada de ironia… Em novembro desse ano, Houaiss foi nomeado Ministro da Cultura pelo Presidente Itamar Franco e teve que se mudar para Brasília, onde permaneceu por pouco mais de um ano, esforçando-se, com risco da própria saúde, para levar a termo o andamento de seus inúmeros projetos para a dinamização da Pasta, a trabalhar inutilmente sem poder, por falta de recursos governamentais, realizá-los. Debilitado, despachando incansável até no leito, mesmo quando esteve hospitalizado em Brasília, Houaiss viu-se forçado a deixar o Ministério. E recusou as embaixadas da Unesco em Paris e a de Lisboa, que a Presidência lhe queria atribuir como uma espécie de compensação
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Em 1994, resolvi desovar os trabalhos produzidos na França, principalmente a obra de Rimbaud, que eu me determinara a traduzir inteira. Tinha o primeiro volume pronto – a Poesia Completa – e comecei a procurar editor. A primeira sondagem foi junto à Nova Fronteira, que já havia editado minhas traduções de Marguerite Yourcenar: Golpe de misericódia (1992) e O denário do sonho (1994) e ia lançar em 1996 O tempo, esse grande escultor. Mas não chegamos a um acordo quanto aos direitos autorais. Fui a São Paulo, em busca da Companhia das Letras, para a qual eu traduzira A vida, modo de usar, de Georges Perec em 1991 e quatro livros de Ítalo Calvino: Seis propostas para o próximo milênio (1990), O castelo dos destinos cruzados (1991), As cosmicômicas (1992) e Palomar (1994). Numa entrevista com Luiz Schwarcz, o editor, tive que cortar curto quando ele me pediu para deixar os originais que seriam examinados por sua equipe de leitura. Achei isso um capitis diminutio e trouxe o livro de volta para o Rio. Aqui acabei encontrando o editor José Mário Pereira, que eu não conhecia, e que se mostrou exultante logo com as primeiras amostras do trabalho. E me ofereceu uma inesperada participação nas vendagens do livro. Em nossas conversas, ele demonstrou ser um editor no mais avançado sentido da palavra: conhecia tudo, lera tudo, lembrava-se de tudo e debruçou-se sobre Rimbaud com a mesma obstinação que eu tivera ao traduzi-lo. Escreveu para o livro uma “orelha” altamente profissional, demonstrando estar em dia com a mais avançada crítica rimbaldiana. E tive a satisfação de, no lançamento do livro, que ocorreu numa semana inteira de festejos no CCBB, do Rio, ver na folha de rosto a dedicatória com que eu tinha sonhado por tanto tempo:
A
Antônio Houaiss
Mestre
Mago
Amigo
I.B.
Um pálido tributo a quem tanto fizera por mim.
Em 15 de outubro de 1995 ele fazia 80 anos. Seus amigos, encabeçados pelo diplomata e cantor lírico Vasco Mariz, organizaram um volume gratulatório para marcar a data, com depoimentos sobre os vários aspectos de sua vida e de suas inúmeras atividades. Tive a honra de nele colaborar com um capítulo sobre o Houaiss tradutor. Ei-lo:
Houaiss, o tradutor
(Sob a invocação de Santo Antônio)
— Antônio Houaiss é nosso Valéry Larbaud! — disse num ímpeto, para logo corrigir:
— É mais, é o nosso “Saint Jérome”.
Pois se em o compararmos ao tradutor exemplar da língua francesa lhe prestamos a homenagem certa, invocar o seu nome ao lado e em pé de igualdade com o do santo padroeiro dos tradutores será um ato de inegável justiça. Isso porque em Houaiss não se poderia ver apenas aquele que superou o grande desafio de reescrever o Ulisses em português; seu mérito maior, que supera mesmo a montanha mítica dessa tradução, é o de ter servido de (e nos servir o) exemplo de que as tarefas impossíveis podem ser finalmente realizadas, se a elas nos atacamos com talento e amor. Duas qualidades, dois atributos, duas sagrações, reconheçamos, não fáceis de coabitar em muitos com frequência, mas que nele coexistem em conúbio indissolúvel, permanentemente.
Convivi com Antônio Houaiss desde a segunda metade dos anos 60, quando ele dirigia a estiva literária que era a preparação da Grande Enciclopédia Delta-Larousse. E, a propósito desse labor magno, nunca um topos clássico seria mais apropriado que a metáfora de Sísifo para representar aquele Houaiss-carregador-de-pedras-morro-acima, trabalhando dia e noite, atolado atrás de montanhas de fichas que a nossa equipe lhe colocava sobre a mesa e que ele ia triturando, emendando, sintetizando, enriquecendo com o escalpelo de sua crítica, o diamante de sua cultura, a sensibilidade de seu saber. E nesse convívio, nesse assistir diário de tantas lições de como resolver (e não criar) problemas, foi aumentando por ele a nossa admiração. Ali estava um intelectual que era capaz de não só gerar idéias (brilhantes), mas de brilhantemente executá-las. De terminar uma obra já com outra, ainda mais ousada, a engatilhar-se no cérebro e a lhe coçar as mãos na vontade de levá-la a termo. e tudo isso em meio a mil e uma outras solicitações e interesses vários, porquanto Houaiss é um ser multifacetado que emite seus brilhos e reflexos por diversíssimas áreas do saber, que vão da culinária à lexicografia, da poesia às ciências sociais.
A admiração do discípulo logo se transformaria em afeto de amigo. E Houaiss, durante muito tempo, foi aquele porto seguro da cultura e da apreciação do quadro nacional onde ancorávamos a nau do viajante ausente, do expatriado voluntário que fomos por uma larga temporada, e que ao voltar anualmente ao país se agiornava social, política e culturalmente na fonte Houaiss, que não raro transbordava sabedoria e witticism. em frente a um badejo saboreado à vista do Albamar.
Devemos a ele nossa apresentação ao mundo literário: por duas vezes prefaciou livros nossos, que ele lia e anotava escrupulosamente, num atestado de que seu visto em nosso passaporte literário decorria de convicção crítica e não apenas se inspirava nos ditames da amizade. Ao dedicar nossa tradução da obra de Rimbaud, prestamos ao mestre, ao mago e ao amigo um tributo acanhado e muito diluído da grande, imensa admiração que por ele sempre tivemos. Por Antônio Houaiss, esse frágil Davi que acorda todas as manhãs para abater o seu Golias, esse homem que não sabe dizer não às tarefas mais impossíveis e indigestas, a mão sempre estendida aos seus amigos e a todos os que buscam seu conselho e seu auxilio.
Nobre, como sempre, Houaiss agradeceu a todos os que lhe prestaram a homenagem:
Quatro anos depois, a 7 de março de 1999, já bastante debilitado por um enfisema pulmonar e sofrendo de pneumonia, nosso Mestre faleceu, infelizmente sem ver realizado o seu grande sonho, que era a publicação do Dicionário Antônio Houaiss da Língua Portuguesa.