No dia 25.03.2016, ou seja, na Semana Santa de há três anos passados, publiquei aqui na Gaveta um trecho do belo poema de Miguel de Unamuno sobre o impressionante Cristo, de Velásquez.
Era só uma primeira parte que me apressei em mostrar aos leitores em comemoração daquela data.
Fiz acompanhar aqueles versos de uma apreciação sobre o quadro do mestre espanhol (Diego Velásquez) e também de uma nota sobre o autor do poema (Miguel de Unamuno), que podem (e devem) ser relidas AQUI.
Na Semana Santa de agora, passados três anos e num momento de profunda depressão, animo-me a apresentar aos leitores o texto final do poema, numa tradução dedicada ao meu prestimoso amigo José Carlos Teixeira.
ALVA
Branco estás como o céu que, no nascente,
Está a branca alvorada antes que o sol
Surja do limbo da terra que é a noite:
Que alvor de aurora deste à nossa vida
Que retorna da morte em alva, pórtico
Do dia eterno; branco qual a nuvem
Que em coluna guiava no deserto
O povo do Senhor, enquanto o dia
Durava. Tal como a neve dos cumes
Qual ermitãs, seguras pelo céu,
Donde reverberava sem estorvo o sol;
De teu corpo, cimeira desta vida,
Resvalam cristalinas águas puras,
Espelho claro dessa luz celeste,
Para regar cavernas subterrâneas
Envoltas pelas trevas nos abismos.
Como o pico altíssimo, de noite,
Qual lua que anuncia a alva aos que vivem
Perdidos em barrancos, fossas fundas,
Assim teu corpo níveo, que é o cimo
Da humanidade e é manancial de Deus,
Proclama em nossa noite o eterno alvor!
ORAÇÃO FINAL
Tu que emudeces, Cristo, para ouvir-nos,
ouve de nossos peitos os soluços;
acolhe as nossas queixas, os gemidos
deste vale de lágrimas. A Ti,
Cristo Jesus, clamamos desde o fundo
De nosso abismo de miséria humana,
E Tu, do alto da branca humanidade
Dá-nos a água de tua neve. Águia
Branca que ao voar o céu abarcas,
O teu sangue pedimos; tua vinha,
O vinho que consola ao embriagar-nos;
A Ti, Lua de Deus, o doce lume
Que na noite nos diz que o Sol persiste
E nos espera; a Ti, coluna forte,
Arrimo em que pousar; oh Hóstia Santa,
Te pedimos o pão desta jornada
Para Deus, como esmola; e te pedimos
A Ti, ó Cordeiro de Deus que lavas
Os pecados do mundo, o velocino
De ouro de teu sangue; te pedimos
A Ti, a rosa do sarçal bravio,
A luz que não se extingue, a luz que ensina
Como Deus é quem é; a Ti que és a ânfora
Do divino licor, que o néctar deites
De eternidade em nossos corações.
Traz-nos o reino de teu Pai, ó Cristo,
Que é o reino de Deus, reino do Homem!
Dá-nos vida, Jesus, que é labareda
Que aquece e que alumia e que em pábulo
Encerrado em vasilha se mantém;
Vida que é chama, que no tempo vive
E em ondas, como o rio, se sucede.
***
Avançamos, Senhor, nós, indigentes.
As almas em andrajos, em farrapos
Qual palha que nas eiras revolteia
Quando sobre ela sopra uma rajada,
Envoltos pela tromba tempestuosa
De aguerridas negruras; faz brilhar
Tua brancura, ó caiação da abóbada
Dessa infinita casa de teu Pai
— o lar da eternidade — no caminho
De nossa marcha e da esperança sólida
E sobre nós enquanto exista Deus!
De pé e com os braços bem abertos
E estendida a direita sem descanso.
Faz-nos cruzar a vida pedregosa
– encosta de Calvário – sustentados
Pelo dever dos cravos, e morramos
De pé, qual tu e braços bem abertos
Como Tu, subamos para a glória
De pé, para que Deus de pé nos fale
E com os braços estendidos. Dá-me,
Senhor, que quando ao fim erre eu perdido
Possa da noite tenebrosa
Em que sonhando o coração se ateia,
E me entre no dia que não finda,
Meus olhos fixos no teu claro corpo.
Filho do Homem, completa Humanidade,
Na não-criada luz que nunca morre
Meus olhos fixos em teus olhos, Cristo,
Meu olhar afogado em Ti, Senhor!
O belo poema de Unamuno encontrou em você o tradutor perfeito, Ivo. Ainda mais vivendo uma depressão que precisa dessa calma olímpica da tela. Deve ter sido um exercício perfeito, pois esse Cristo de Velázquez – ao contrário do de Grünnewald ou de nosso contemporâneo Mel Gibson e sua Paixão – é o de quem sente que está com a verdade – como é o seu caso – e sabe disso.
Meu muito querido amigo Ivo, fiquei muito emocionado, mas não surpreso, com seu gesto. Você, embora não goste de demonstrar, esparge ternura pelos poros. Senti-me assim “ternurado” por inteiro, numa fase que a depressão me atingiu profundamente. Agora, bem amainada, não sei como agradecer-lhe.
Que Deus o abençoe, amigo querido.