CEIA DE NATAL
Madalena, saibam, era um pato. Trouxera-o algum cliente do Velho, talvez em paga de visitas profissionais ou em reconhecimento de alguma cura mais difícil. Dessa forma soem agradecer, no interior, aos médicos e farmacêuticos, e o presente, uma vez irrecusável pela sua estimativa e singeleza, foi solto no exíguo quintal, com seu destino traçado. O Natal se aproximava e de galináceo a palmípede ia pouca diferença…
Frequentávamos raramente o quintal. Os brinquedos comprados e não sugeridos pelo nosso espírito de improvisação, já por si, pelo intrincado de suas molas e rodinhas, prendiam-nos mais à casa, às superfícies lisas, ao asseio dos quartos encerados. Mas, vez por outra, a escada do sobrado para o quintal nos era franqueada e, sob uma touceira reduzida, furávamos no barranco os caminhos sinuosos dos nossos “caminhãozinhos” de brinquedo.
A surpresa de encontrar, assim tão próximo, tão nosso, tão livre de proibições, àquele bicho grasnante, prolongou-se num delicioso encanto através das minhas horas de brinquedo. Era uma coisa viva, independente ao locomover-se, rebelde aos meus propósitos, não condicionado aos caminhos que lhe impunha o meu desejo. Espreitava-o mover-se cauteloso e indeciso à beira da cerca; e eu, detrás dela, para melhor surpreendê-lo em sua vida íntima, deixava-me ficar por longos momentos, quase sem fôlego, evitando o menor ruído que denunciasse ao pato a minha presença inoportuna. Soldadinhos de chumbo, livros de histórias, folguedos e travessuras, tudo fora esquecido pela embevecida contemplação do animal que chegara. Curioso de seu bico oblongo, de seus pés membranosos, dos coleios gentis do pescoço esquisito, era raro o momento em que eu não estava, disfarçado, à socapa, de olhos postos no branco Madalena.
Não sei que estranha associação de ideias em que entram a indumentária de moças em procissão e fragmentos de lembranças onomásticas, levaram-me a batizar assim o manso palmípede. Sei só que lhe assentei Madalena e Madalena ficou por causa de sua alvura inigualável. Nunca me passara pelos olhos nada tão branco, nada que ferisse tão profundamente a minha noção infantil de pureza.
O bichinho aos poucos humanizava-se. Já não fugia mais á minha aproximação sorrateira, esvaindo o desencanto que me causara quando, a princípio, se afastava precipite de mim. A bem dizer, agora quase comia à ponta de meus dedos, e sua plumagem, estonteantemente branca, ficava a pouco de minhas mãos guardadas de carinhos. Acostumando-se a comer o que lhe dava, Madalena ingeria os “menus” mais estapafúrdios: pedaços de bola de borracha molhados no mel, castanhas, confeitos, migalhas e azeitonas. Certo, recusava alguns, mas isso servia apenas para que eu fosse buscar outra absurda guloseima, receoso de que ao patinho não lhe apetecessem aquelas.
Supunha Madalena imperecível em razão de tamanha beleza. Já era como um pequeno ser humano a quem falava e a cujos grasnos desconexos atribuía, na minha doce hermenêutica, os mais reverentes sentidos. Creio, pela sua inquietação, que se ressentia um pouco da aridez de nosso quintal. Olhava atencioso para a torneira da pia escorrendo, e eu lhe adivinhei a nostalgia pelos banhos demorados, pelas águas dos ribeirões a que se acostumara em sua vida primitiva na roça. Quis, por isso, leva-lo comigo a passear, com a intenção flagrante de lhe permitir um banho, talvez no próprio tanque do jardim. No que fui impedido terminantemente por minha mãe, que além do mais argumentava a assustadora frequência com que eu emporcalhava as roupas, metido que estava sempre no quintal, como a pajear a ave. Confusamente ainda percebi, em frases veladas, que tudo aquilo acabaria em breve, que no Natal…
No Natal, eu fazia seis anos e tinha em casa convidados. Pelas circunstâncias do dia e da hora, voltara momentaneamente aos brinquedos caseiros, à alegria dos novos presentes, dos amigos deslumbrados pela balbúrdia dos tambores e a precisão metralhante das espingardinhas de rolha.
Súbito, chamaram-nos à ceia e os brinquedos foram também, por instantes, relegados. Mas quando entramos a comer de quanto havia em frutas e salgados do Natal, uma voz, mencionando a carne, fez parar-me quase gelado.
– É de porco, Maria?
– Não, mamãe; de pato.
De pato! E eu, que comia daquilo, num relâmpago, estonteado, compreendi tudo. Lacrimejaram-me os olhos enquanto cuspia no pratinho os restos intragáveis do sacrilégio. Houve transtornos; alguém exprobrou a falta de ética, que não me deviam ter revelado; mas tudo inútil: os soluços já me irrompiam fortes e saí da mesa para me atirar a uma cama qualquer, convulsivo, lutando ainda internamente contra a repugnante ideia, a cada frase de consolo com que pretendiam empanar a realidade.
Por fim, alguém me disse palavras que me pareceram sinceras: convidava-me a ir até em baixo no quintal para verificar que lá estava, vivinho, o Madalena. E eu fui, junto desse alguém que levava à mão uma vela, apesar da noite e do medo que o escuro me infundia. Pela escada abaixo, os olhos ainda cheios de lágrimas ainda acreditavam ver o pato em cada desvão que a vela, bruxuleante, alumiava.
– Está lá no canto da cerca, está vendo?
Eu forçava os olhos, o coração ansioso por acreditar, a boca num quase a me sorrir.
– Mas, onde?… Me leva até lá.
A pessoa titubeou, querendo vencer-me pelo medo.
– Está escuro agora. Amanhã você vê.
Deixei levar-me, conformado, esquecendo quase o amargor das dúvidas, na esperança da verificação futura. Mas, ao subirmos as escadas, de volta, junto à porta da cozinha, no caixote de lixo repleto, bem por cima, brancas, desoladoramente brancas, estavam as penas do meu pato, como um clarão no escuro do quintal.
Publicado no Jornal do Povo, de Ponte Nova-MG, em dezembro de 1953, e transcrito no livro “O Poeta, o Tradutor e o Crítico”, editado por Luciano Sheikk em 2018, às ps.47-48.
IVO, muito legal o seu conto sobre o PATO na ceia de natal.aula de ternura. abraços, Milt
Caríssimo Poeta Ivo Barroso,
Parabéns!
Madalena é o conto à moda antiga: claro, aberto, contando coisas daquela outra vida que a gente vive por dentro, sinceramente …
Obrigado!
Garoeiro
Tinha um amigo criando galináceos e faisões sem uso na cozinha. Além disso tinha um canil de cães de luta e os faisões se atiravam voando por cima desse canil para servirem de alimento àquelas feras, sem que para isso fossem impelidos pelos humanos…
Mestre Ivo! Um conto que me parece uma poesia em prosa! Ao lermos visitamos a sua e a nossa infância, de mãos dadas com os sonhos que se foram e com os que permanecem! As surpresas sucessivas na narrativa nos “amarram” . Terno abraço e o meu desejo de belo Natal!
Estimado Ivo Barroso, meu nome é Everson Veiga e gostaria de te fazer uma proposta, que vou encaminhar por aqui, por não dispor do teu e-mail. Moro em Porto Alegre e organizo um sarau sobre Arthur Rimbaud, que pretendo realizar em janeiro, fevereiro ou março de 2019. Para tal, revolvo tuas traduções completas da obra do poeta, e pretendo entremear o evento com uma exposição sobre a vida, a correspondência e a obra poética do autor. O sarau será realizado em um local muito especial: um centro artístico que pertencera a um escultor, construído em estilo colonial, anacrônico, destoando do entorno. No local, há um lago com tartarugas e pretendemos revitalizá-lo. Penso em te convidar para o evento, podendo, se possível, arcar com as despesas. Poderias ler os poemas que traduziste, ou lê-los mesmo no original. Tua presença seria aurática, mais do que especial. Se te parecer promissor o evento, por favor me envia um contato mais direto (meu e-mail é: eversonveiga94@gmail.com) ou responde por aqui. Abraço afetuoso!
Caríssimo Poeta Ivo Barroso,
Mesmo correndo risco de parecer abelhudo, defendo sua ida e presença nesse sarau gaúcho de Everson Veiga.
Basta você confirmar, e lá também estarei.
Nesta “Temporada no Inferno” que nos estão a impor, adoraríamos ouvir:
— Elle était fort déshabillée
Et de grands arbres indiscrets
Aux vitres jetaient leur feuillée
Malinement, tout près, tout près.
de: “Première Soirée”, por Ivo lido, recriado, traduzido …
Garoeiro
Ir fisicamente é impossível, mas poderíamos gravar um filmezinho em que prometop declamar esse e outros versos do Rimbaud. Quem estaria apto a fazer isso?
Abraços,
Ivo
Bom dia, Ivo. Fico feliz com teu célere retorno. Há pouco estive em Brasília e casualmente pretendo passar algumas semanas no Rio, agora nas férias de verão. Se isto se confirmar, e se estiveres disposto, adoraria te conhecer. Posso eu mesmo gravar um filmezinho, com minha modesta câmera Canon. Se a viagem não se realizar, podemos tentar que algum amigo teu, algum conhecido, registre tuas leituras. Reitero a possibilidade de me contatares pelo e-mail, pois assim podemos tratar disso em outro meio.
O e-mail: eversonveiga94@gmail.com
Abraços!
I vo, esse seu conto de 53 foi plagiado e m 56 pelo fi lme ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE. Nele, a personagem de Liz Taylor tem dois filhos. Ela briga com o marido, Rocky Hudson e vai , por isso, passar o natal na casa da mãe. Lá, as c rianças conhecem o peru a que dão o nome de Pedr o. Vai daí que, na ceia, um dos garotos vê o peru chegar pra ser servido e diz: “É o Pedro!” E começa a chorar, como a irmãzinha. Não sei como fil maram aquilo, pois foi tudo muito real!
Não me lembro do filme, mas posso lhe garantir que o meu conto é totalmente real, vivi-o no meu aniversário dos 7 anos. Pensei até chamar o texto de Memória em vez de conto: nunca as penas foram tão brancas na humidade da chuva no caixote de lixo da cozinha na subida do quintal…
A pata MADALENA do IVO BARROSO e o peru PEDRO, de ‘ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE´
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Ivo Barroso tem um conto – que imagino baseado em fato real de sua infância em Ervália, interiorzão mineiro – no qual trazem pro seu quintal uma pata que o deslumbra pela imaculada alvura – a Madalena. Apega-se a ela a ponto de deixar os brinquedos de repente sem vida de lado pra estar com ela o tempo todo, dar-lhe comida, abraçá-la, ouvi-la, até que, chocantemente, a vê servida na ceia de natal, pelo que arma um berreiro que ninguém consegue estancar.
Quando li isso, imediatamente me lembrei da sequência que mais me “pegou” em ´Assim Caminha a Humanidade´( “Giant” ), de George Stevens. O casal vivido por Liz Taylor e Rock Hudson tem um desentendimento e ela resolve passar o natal com os pais, noutra fazenda, levando os dois filhos, que lá se encantam com o peru Pedro que, tal como a Madalena, é chocantemente servido na ceia. O garoto, quando a reconhece, já diz chorando: “Mas é o Pedro!” , no que é acompanhado pela menina, num destempero tão grande que Liz leva os dois para outra parte da casa, onde conversa com ambos, que retomam o choro, Rock vendo a cena sem ser visto, maridão e paizão chegando, doido pra fazer as pazes.
Ivo Barroso é de 29, Madalena deve ter sido servida no natal de 38 ou 39, o conto é de 53, e o filme – que vi quando tinha 15, 16 anos – é de 56.