TRANSTRÖMER – UMA NOVA DIMENSÃO POÉTICA
Ivo Barroso
Se você nunca tinha ouvido falar no ganhador do prêmio Nobel de literatura, de 2011, um poeta sueco com nome de robô galáctico, não se menospreze: você está entre aqueles que formam a maioria absoluta dos leitores brasileiros – mesmo entre os letrados — que o desconheciam inteiramente.
De posse agora deste bem cuidado volume, Mares do Leste, da sofisticada Editora Ayiné, de Belo Horizonte/Veneza (em papel Polen Bold 90 gr. e capa na face inversa do livro), o leitor poderá apreciar na mais rigorosa tradução de Márcia Sá Cavalcanti Schuback uma parte significativa da obra poética do laureado Tomas Tranströmer, unanimemente considerado o “poeta nacional sueco”, candidato desde sempre ao Nobel de literatura, que só não lhe fora concedido ainda pelo escrúpulo da Academia Sueca em dar o prêmio a seus compatriotas. Reconhecido há muito como grande poeta no mundo intelectual civilizado, Tranströmer já foi traduzido em mais de 60 línguas (inclusive em português, ainda que fragmentariamente, só alguns haicais por Martha Manhães de Andrade, publicados na revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional em 2006).
É verdade que sua poesia está longe de ser popular, memorizável, de fácil aceitação pelo público acostumado ao verso tradicional; a leitura de seus poemas exige certos condicionamentos de sensibilidade poética que transcendem a simples compreensão ou decodificação do sentido do verso. Além do ritmo especial, característico das ondulações do fraseado sueco, efeito que não pode ser correspondido numa tradução, a poesia de Tranströmer é, por assim dizer, evasiva, com interrupções que interferem não apenas na cadência do verso, mas igualmente no sentido da frase. Há paradas súbitas seguidas de acelerações e pequenos delírios formando um arquipélago onde boiam detritos e sublimidades.
Tal qualidade poética pode ser detectada logo de início com a leitura do longo poema (em VI partes) que abre a antologia, o Mares do Leste, dedicado ao avô materno do poeta, Carl Helmer Westerberg, piloto-guia das embarcações que adentravam o Báltico esgueirando pelo emaranhado de milhares de“ilhas pequenas memorizadas como versos de salmo”). Mas não se trata de um poema biográfico, em que interferem invocações do passado ou a simples descrição de ambientes tipicamente regionais. O verbo de Tranströmer se alonga e se estilhaça como se submetido a pressões contrárias, que irrompem ora do passado ora de um tempo imaginário, futuro ou onírico, perturbando as nossas noções de realismo fantástico ou surreal. Frases que ora nos atropelam como pedras, ora se diluem como algas e alrunas, cujo sentido se perde como se surpreendido por um precipício.
Nesse poema, publicado em 1977, segundo consta dessa antologia, há um trecho a bem dizer “mediúnico”, em que o poeta descreve a situação crítica que lhe iria ocorrer somente em 1990, quando foi vítima de um AVC: “Vem o derrame: paralisia do lado direito com afasia, só consegue entender frases curtas, diz palavras erradas.Mas a música permanece ali, ele ainda compõe em seu estilo próprio, torna-se uma sensação médica o tempo que ele ainda tem por viver”. Trata-se evidentemente de um erro de datação.
Tranströmer nasceu em 1931, em Estocolmo, onde estudou e se tornou psicólogo profissional, exercendo sua atividade principalmente em prisões, centros de detenção juvenil e de reabilitação de viciados. Iniciou-se na literatura aos 23 anos com o livro 17 Dikter (17 poemas), tendo publicado cerca de 20 livros de versos até sua morte em 2015, aos 83 anos. Viveu quase sempre em alguma das numerosas ilhas do arquipélago báltico, mais frequentemente em Runmarö, “longe dos olhares do mundo e dos meios de comunicação”.
Esta primeira antologia brasileira de seus versos contempla a produção de alguns de seus livros dos anos 1974 (Mares do Leste), 1996 (Gôndola Lúgubre), 2004 (Prisão) e Poemas Haiku (este com cerca de 64 tercetos que são como exercícios pianísticos para treinar a mão esquerda.) Nota-se a ausência de algumas obras significativas (dos anos 1950, 60 e parte dos 70). Por sorte, a editora promete para breve a publicação de suas outras obras, com o que ficará o leitor brasileiro na possibilidade de se tornar mais íntimo deste grande poeta estrangeiro, diminuindo a nossa culpa pelo desleixo de tê-lo ignorado por tanto tempo.
Publicado no Segundo Caderno (ex-Prosa & Verso) de O Globo em 09.06.2018
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