A Semana Santa nos permite recorrer aos tesouros da poesia sacra para o enriquecimento de nossa Antologia. O mais famoso poema de caráter religioso que conhecemos é o denominado “Anônimo Espanhol do Século XVI”, cuja autoria vem sendo atribuída a vários poetas cristãos, como a Santa Teresa de Jesus, a São Francisco Xavier e a Santo Inácio de Loyola. A crítica atual, com grande fundamento, consigna sua autoria ao Doutor da Igreja San Juan de Ávila (1499-1569). O tema do soneto é o ideal cristão da abnegação sem retribuição alguma (o amor de Deus por amor a Deus mesmo) e sua feitura poética é de tal forma acabada que nos leva a considerá-lo o “soneto perfeito” (ao lado de “Sete Anos de Pastor”, de Luís de Camões)
No me mueve, mi Dios, para quererte
el cielo que me tienes prometido,
ni me mueve el infierno tan temido
para dejar por eso de ofenderte.
Tú me mueves, Señor, muéveme el verte
clavado en una cruz y escarnecido,
muéveme ver tu cuerpo tan herido,
muévenme tus afrentas y tu muerte.
Muéveme, en fin, tu amor, y en tal manera,
que aunque no hubiera cielo, yo te amara,
y aunque no hubiera infierno, te temiera.
No me tienes que dar porque te quiera,
pues aunque lo que espero no esperara,
lo mismo que te quiero te quisiera.
Sua tradução em português parece facílima, pois todos os termos são em nossa língua praticamente os mesmos, o que enseja a possibilidade da manutenção das rimas (querete=querer-te, prometido=prometido, etc), com exceção do 4º verso do 2º quarteto em que a palavra muerte não tem o mesmo som em português (morte). A tradução brasileira consagrada é a do nosso grande poeta Manuel Bandeira:
A CRISTO CRUCIFICADO
Não me move, meu Deus, para querer-te
O céu que me hás um dia prometido;
E nem me move o inferno tão temido
Para deixar por isso de ofender-te.
Tu me moves, Senhor, move-me o ver-te
Cravado nessa cruz e escarnecido
Move-me no teu corpo tão ferido
Ver o suor de agonia que ele verte.
Moves-me ao teu amor de tal maneira,
Que a não haver o céu ainda te amara,
E a não haver o inferno te temera.
Nada me tens que dar porque te queira;
Que se o que ouso esperar não esperara,
O mesmo que te quero te quisera.
Em 1991, quando publicamos nossa antologia de poemas traduzidos (O Torso e o Gato), incluímos uma versão desse poema, cujo intuito era somente o de preservar a frase “afrentas y tu muerte”, de alta significação no contexto do poema (o corpo sofrendo afrontas moribundo). Ei-la:
Não me move, meu Deus, para querer-te
O céu que me deixaste prometido
E nem me move o inferno tão temido
Para deixar, por isso, de ofender-te.
Tu me moves, Senhor, move-me ver-te
Pregado numa cruz e escarnecido;
Move-me ver teu corpo tão ferido
Sofrer afrontas e jazer inerte.
Move-me, enfim, o teu amor eterno
Que, em não havendo céu inda te amara
E te temera não houvesse o inferno.
Nada por teu amor minh’alma espera,
Pois se o que espero achar não esperara,
O mesmo que te quero te quisera.
ANTOLOGIA POÉTICA DA GAVETA (9)
GREGÓRIO DE MATOS Guerra (1633-1695) – poeta barroco baiano
Primeiro grande poeta do Brasil e o maior do nosso período barroco (século XVII), dono de vastíssima obra, compreendendo gêneros como o satírico, o lírico, o sacro e até mesmo o pornográfico, certamente não figurava em nosso Caderno de Poesias que dava preferência aos românticos e, em especial, aos parnasianos.
Entra hoje aqui em homenagem à data religiosa e por ser um ícone da poesia sacra brasileira, sobre cujo valor e significância pretendemos em breve fazer um pequeno estudo, com destaque para seus vultos mais importantes.
BUSCANDO A CRISTO
A vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.
A vós, divinos olhos, eclipsados
De tanto sangue e lágrimas abertos,
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados.
A vós, pregados pés, por não deixar-me,
A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, p’ra chamar-me
A vós, lado patente, quero unir-me,
A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.
ANTOLOGIA DOS POETAS ‘ESDRÚXULOS’ (10)
JUNQUILHO LOURIVAL (1895-XXXX) – poeta norte-riograndense
O curioso nome floral deste poeta, Francisco Junquilho Lourival, se deve certamente ao fato de o pai, também poeta, cujo nome completo era Joaquim Edwiges de Mello Açucena (1827-1904), ter querido agraciar um de seus (ditos) 34 filhos com esta referência a uma espécie vegetal. Figura emblemática de Natal-RN, poeta, conquistador, violeiro, herói, etc. este senhor Edwiges Açucena merece uma pesquisa no Google (não deixem de ver). Quanto ao filho, além de poeta, repórter, advogado, era funcionário público e teve o mérito de recolher e publicar toda a obra poética do pai, até então inédita. Seu soneto que transcrevemos é um dos mais belos de nossa poesia religiosa. Infelizmente não conseguimos, mesmo recorrendo à Academia Norte-Riograndense de Letras, uma foto do poeta para ilustrar esta matéria. Mas o soneto dele, belíssimo, vale por tudo isto.
JESUS
Senhor, ao teu desejo elevo a taça
Transbordante de fel do meu tormento!
Tua vontade sobre mim se faça
E seja o teu amor meu pensamento!
Que a minha fé, Jesus, não se desfaça,
Das perversões ante o deslumbramento!
Por mim passe a maldade como passa
O grão de poeira no fragor do vento!
Mártir da Cruz, ó símbolo da Mágoa!
Dá-me a cumprir sereno a minha pena
— Chagado o corpo e os olhos rasos d’água.
E faze que esta boca humilde e boa
Nunca maldiga ao que disser — Condena!
Mas beije os pés ao que disser — Perdoa!
Ivo, trabalho único e sem igual esse resgate da poesia brasileira. Parabéns! No caso da temática desta publicação, tomo a liberdade de transmitir-lhe três quadrinhas onde trato do mesmo tema:
Expiação (36)
Que Homem haveria de se castigar
Por uma humanidade tão estúpida?
Puro, sentir a Luz lhe abandonar
No pecado universal da volúpia.
Morfina (25)
Na caixa do além cingida de flores,
Laureado com sombras vós dizeis:
Cura o adicto em óbito dessas dores…
Libera me, Domine, ab vitiis meis!
A curiosidade, segundo Jansenius (34)
Concupiscência da carne e dos olhos,
A dissimular o espírito asceta;
Insídia, paixão primeira, imbróglio.
Árvore do conhecimento e queda.