Em recente entrevista com um grupo de aeromoças de várias companhias nacionais, o repórter de um jornal que está nas “últimas horas” foi surpreendido por uma declaração espontânea, vivaz e curiosa, que logo transcreveu.
Perguntava ele àquelas eficientes auxiliares das tripulações de voo, se o aparecimento de seu “príncipe encantado” não viria colocá-las em choque com a profissão que escolheram, porquanto umas das exigências básicas das companhias empregadoras é que a funcionaria seja e permaneça solteira durante seu tempo de serviço. Aquelas que se casam e querem continuar trabalhando são geralmente removidas para serviço de terra, como recepcionistas ou despachantes de aeroporto.
Algumas das pequenas entrevistadas, quer por excesso de idealismo ou porque se iniciassem agora nas travessias aéreas, responderam que não trocariam as nuvens e as tormentas por nenhum homem deste mundo. Outras, bastante veteranas, já não saberiam fazer outra coisa e nem cogitavam mais do aparecimento do “príncipe”, apagando em si, apesar do contato diário com o etéreo, todas as cambiantes multicoloridas da fantasia humana.
Houve uma, entretanto, que sem o otimismo iridescente dos primeiros voos, nem o pessimismo tormentoso de anos e anos de serviço, respondeu ao moço do jornal ali na enxuta, sem titubeios, mais ou menos o seguinte:
“ Estou farta de voar. Esta, como qualquer outra profissão, acaba entrando numa rotina insuportável e um ou mais dois milhões de quilômetros voados faz qualquer uma odiar o pôr-do-sol mais belo do planeta. Meu sonho é uma fazendinha no interior de Minas. E o dia em que o meu “príncipe” (também desencantado como eu) se decidir, lá viveremos bem alegres a ordenhar vaquinhas, de olhar perdido no verde das montanhas”.
A frase foi transcrita em vários jornais do Rio, ao pé das declarações mais importantes da semana. E os leitores de Minas, tendo às mãos aquele sonho da moça, talvez se tenham perguntado, meditativos, porque aquela frase tão simples, tão discordante das outras, conseguira alcançar tamanha repercussão.
Acontece que os desejos da aeromoça Léa sintetizam aqueles de mais da metade da população do Rio. Esmagados pelo cotidiano de fronteiras cerradas, desiludidos com a falsidade e na angústia da vida que levamos, quem de nós não idealiza o recanto de paz e de vida autêntica com que sonhou aquela pequena visitadora dos espaços? Estamos cercados pela sordícia e pela impunidade, e embora a vida no campo não seja mais aquela solitude bucólica dos tempos de Lucrécio e de Virgílio, é pelo menos o refúgio de um mundo apodrecido em suas bases. Viver sem dar conta dos desmandos do Governo, do que pactua a Justiça, das mil canalhices diárias que presenciamos nesta pobre Capital, é um ideasonho tão grande quanto o que Platão sonhou em sua “República” ou Thomas Morus ao escrever sua “Utopia”.
NOTA: Este artigo foi publicado originalmente, há 65 anos, em 17 de março de 1953, no JORNAL DO POVO, de Ponte Nova-MG, em que eu mantinha uma coluna semanal denominada Bilhete do Rio. Republico-o hoje no aniversário de minha irmã Therezinha Léa, que está completando 90 anos, e informo que ela realizou, em parte, seu anseio bucólico (sem, no entanto, criar as sonhadas vaquinhas), administrando um pequeno sítio em Rio das Flores, no Estado do Rio de Janeiro. Parabéns para ela!
O que mais me espanta neste artigo, além da brutal passagem do tempo, é verificar que a situação política do país, naquela época totalmente caótica, permanece a mesma, agravada pelo fato de termos exponencialmente multiplicado os valores da corrupção. Salva-nos a esperança de vermos, agora, vários políticos “famosos” (inclusive um ex-presidente) sujeitos às malhas da Justiça.
ANTOLOGIA POÉTICA DA GAVETA (5)
Outro poema, que figurava sempre em nossos álbuns, era este soneto do
PADRE ANTÔNIO TOMÁS (1868-1941) – poeta cearense
Contraste
Quando partimos no verdor dos anos,
Da vida pela estrada florescente,
As esperanças vão conosco à frente
E vão ficando atrás os desenganos.
Rindo e cantando, célebres, ufanos,
Vamos marchando descuidosamente;
Eis que chega a velhice, de repente,
Desfazendo ilusões, matando enganos.
Então, nós enxergamos claramente
Como a existência é rápida e falaz,
E vemos que sucede, exatamente,
O contrário dos tempos de rapaz:
— Os desenganos vão conosco à frente,
E as esperanças vão ficando atrás.
Notas: Muitos eclesiásticos brasileiros se notabilizaram igualmente como poetas, sendo os mais conhecidos o Pe. Antônio Tomás e o bispo D. Aquino Correa (1885-1956). Padre Antônio foi um fervoroso pároco em sua terra natal durante 30 anos e só depois de jubilar-se deu a público as suas poesias, com as quais conquistou o título de “Príncipe dos Poetas Cearenses” (1925). Seu soneto é um belo exemplo da chamada “poesia filosófica”, que procurava se sobrepor à então dominante “poesia lírica” (ou amorosa).
ANTOLOGIA DOS POETAS ‘ESDRÚXULOS’ (6)
EURÍCLEDES FORMIGA (1924-1983) – poeta paraibano
José Eurícledes Ferreira adotou o nome literário de Eurícledes Formiga, substituindo o patronímico Ferreira pelo nome de família de sua genitora, Da. Anna Ferreira Formiga. Conhecido como o poeta-espírita por ter revelado desde cedo grande atividade mediúnica, era dotado de prodigiosa memória (fotográfica), capaz de repetir oral e fielmente toda uma página de livro após observá-la por alguns minutos. Repentista conceituado, improvisava sonetos e cordéis com motes que lhe eram apresentados em reuniões sociais.
Não consegui referência (histórica, geográfica ou mitológica) sobre o nome Eurícledes que pensei fosse uma espécie de hápax (palavra usada uma única vez), mas acabei me defrontado com o nome do Dr. Eurycledes de Jesus Zerbini, o famoso cirurgião que fez o primeiro transplante cardíaco no Brasil. Quem teria sido esse Eurícledes ou Eurycledes?Algum leitor saberia me informar algo a respeito ? Agradeço.
POEMA PARA A TUA PRESENÇA
Amanheceu de amor meu coração:
Ninguém me trouxe tanta luz assim,
Nem recordo jamais ter assistido
A uma aventura igual dentro de mim!
Esta alegria que por tudo impera
Devo à tua presença redentora,
Porque veio contigo a Primavera
Que inundou minh’alma sonhadora.
Agora que chegaste, há nos meus olhos
Uma canção de amor que te convida.
Cantarei o teu nome na alvorada
Em que há de ser tua alma colorida
Uma benção floral na minha estrada,
Um arco-íris sobre a minha vida!
Quero escutar a tua voz de pássaro
E aprisioná-la, intacta, em meu destino,
Beber toda a harmonia do teu canto,
E se dos olhos me rolar o pranto
Que te pareça o orvalho matutino
Deslizando de um céu interior…
Tens a alma das manhãs presa nos lábios,
Fruto partido, rubro e desejado,
Umedecido de palavras doces,
Na ânsia de ser colhido e ser provado.
Reencontrei-me na paisagem lírica,
Povoada de asas, árvores, canções…
No roteiro do amor só nascem músicas
E flores verdes – flores de esperança,
Em que palpita um coração de criança,
Ébrio de cores, tonto de si mesmo,
Na sensação de ter criado o mundo…
E dentro d’alma, concha misteriosa,
Formada entre os corais de um mar profundo,
Um som de águas viajeiras te reclama…
Todo o deslumbramento que ora trago
No olhar é puramente de quem ama!
Eu te agradeço esta felicidade,
O anseio de cantar que me domina.
Sinto que renasci na claridade
De um novo sonho em plena floração.
Hoje a minha alma tem um ar de festa:
Amanheceu de amor meu coração!!!
Que artigo bacana o das vaquinhas de Uberaba. A simplicidade da época.
Obrigado Michele,
mas fico horrorizado com a passagem do tempo. Parece que foi ontem que escrevi aquele artigo e lá se vão 65 anos…
inb
Diz Dinorá Tomaz Ramos, sobrinha do Padre, que esse soneto (noite de núpcias), não pertence ao Padre Antônio Thomaz, apesar de
figurar com o seu nome em revistas e jornais.
Sr. Ivo,
Pois eu acho que, atualmente, as aeromoças preferem ficar a 11.000 metros de altura sem nem pousar no Brasil, porque, do jeito que as coisas vão, logo até as “vaquinhas de Uberaba” entrarão no cardápio das facções criminosas.
Quanto ao Padre Antônio Tomás, eu conhecia dele um estranho (por se tratar de um padre) e pessimista soneto sobre a noite de núpcias.
Abraço,
João Renato
Tem razão, João Renato. Eu não conhecia o tal soneto dele e fui agora lê-lo. É desconcertante, principalmente em se tratando de um padre-poeta. Ainda bem que este Contrastes, uma obra-prima da sonetística brasileira, lhe salva a reputação.
Obrigado.
Diz Dinorá Tomaz Ramos, sobrinha do Padre, que esse soneto, não pertence ao Padre Antônio Thomaz, apesar de figurar com o seu nome em revistas e jornais.
[…] (conhecida como “Leoa”), a mesma que aparece aqui na Gaveta em: As Vaquinhas de Uberaba, veja aqui. Léa ficou por mais de vinte dias na UTI vindo finalmente a falecer, um desastre total, […]
[…] As vaquinhas de Uberaba – aqui […]
Bom dia, querido senhor Ivo!
Bela homenagem a sua irmã. Um abraço, Raquel