TEMPO DE QUALIDADE
Jair Ferreira dos Santos
Breviário de Afetos é um paradigma de memorialismo afetivo. O livro homenageia nada menos que 27 personalidades entre mestres também amigos e conhecidos alinhavados pela concorrência ou pela admiração mútua, sem omitir Guimarães Rosa, objeto de uma entrevista jamais realizada porque, à frente do escritor, Ivo acabou emudecido pela timidez e os dois nunca mais se viram. Já os trabalhos de anos em enciclopédias com Antônio Houaiss geraram uma amizade calorosa, profícua, mesmo se as funções que Ivo desempenhou no Banco do Brasil e no Itamaraty o levassem do Rio de Janeiro para Haia, para Londres ou a Costa do Marfim, embora semestres depois o trouxessem de volta.
Esse elenco de figuras totêmicas se estende a Drummond e sua carta, escrita no limiar dos anos 1950, para aconselhar o jovem poeta a ignorar ferozmente a opinião alheia, em favor “do próprio trabalho interior”, e integra, em 1998, um João Cabral já quase cego, concedendo-lhe uma entrevista em que parte considerável da mitologia de reclusão e aspereza, construída em torno do poeta pernambucano, desaba por absoluta falta de provas: ele fala abertamente sobre autores, pintores, a sua querida Espanha, o almoço com Eliot, a admiração por Baudelaire e Valéry e, de quebra, revela uma percepção arredia do que seja o Nobel. Claro, no campo imantado pela inteligentsia que era o Rio não faltavam talentos extraclasse: estava ali, com seu despojamento, ninguém menos que o crítico Otto Maria Carpeaux, intelectual austríaco autor de uma impressionante História da Literatura Ocidental, entre outros trabalhos de porte. A ele recorre com frequência o tradutor iniciante, e quando se separam é para mais tarde, precisamente em 1977, se reencontrarem na casa de Ivo em Lisboa, Carpeaux já doente. Eles se despedem sem nenhum clima pré-elegíaco, porque parecem agir como se a amizade desautorizasse a morte, a qual no entanto sobrevém ao mestre um ano depois.
Ao percorrer Breviário de Afetos, não estamos propriamente numa passarela de amenidades. Há toda uma discussão eivada de complexidades quando se analisam as traduções do poema O Torso de Apolo, de Rainer Maria Rilke, por exemplo. É constante, ainda, a alusão à história literária como o contexto mais denso onde se movem os protagonistas. Atenção especial merece o texto de Ivo. Para além da clareza, da fluência, seu domínio da língua tem um teor expressivo que se manifesta na propriedade verbal, no ritmo lógico das frases ou ainda no recurso eventual a um vocabulário um tom acima do estilo mesclado – a fusão entre o erudito e o oral – cultivado pelo modernismo. Certamente, em sua prosa, o impulso original para o lírico se faz sentir aqui e ali, como quando descreve Silvia, a mulher com a qual se casaria, com o verso “um grito verde no olhar vazio da paisagem”, ao evocar determinado cenário marinho.
Mas a rigor, enfim, que papel teria este breviário, com sua gama de tributos e sentimentos, no prodigioso mundo digital à nossa volta? Não muitos, provavelmente. Estamos confinados num presente contínuo, o agora da próxima informação, com o consequente esvaziamento da História e das visões antecipativas. Bom para nos remeter a alguma origem, o livro de Ivo Barroso desafia o presenteísmo renitente da nossa época para redespertar o interesse pelo passado, onde estão as fontes silenciosas do presente.
(Trecho de uma resenha ainda inédita, enviada à Gaveta por e-mail. O livro pode ser adquirido no Rio na Livraria da Travessa e em São Pulo na Acadêmica)
ANTOLOGIA DOS POETAS ESDRÚXULOS (4)
SOSÍGENES COSTA (1900-1968) – poeta baiano
Sosígenes (pronuncia-se sozígenes) Marinho Costa, poeta de cunho modernista, deve o arrevesado de seu nome à homenagem que seu pai, versado nos clássicos, quis prestar provavelmente ao astrônomo Sosígenes de Alexandria, citado por Plínio, o Velho, como sendo o astrônomo consultado por Júlio César quando da concepção do calendário Juliano. Dono de estilo personalíssimo e de temática inusual, conquistou com sua “Obra poética” o prêmio Jabuti de 1960. Seu poema, que transcrevemos a seguir, segundo o crítico Massaud Moysés, não pode ficar de fora de nenhuma antologia da poesia brasileira que se queira representativa.
O pavão vermelho
Ora, a alegria, este pavão vermelho,
está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.
Clarim de lacre, este pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora.
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.
É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
neste pavão pomposo e de chavelho.
Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei este pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.
bom dia Ivo, bonita crítica ao seu livro, merecedor por sinal. abraços e mande notícias. Milton