Alguns amigos, sabedores da minha tradução da obra completa de Rimbaud em 3 volumes (Poesia completa, Prosa poética e Correspondência), me escrevem perguntando onde encontrá-los. Alegam que, ao procurarem a obra de Rimbaud numa livraria, recebem sempre como oferta um livreco da infame e suspeita editora Martin Claret, sob a alegação de que esta é a única obra do poeta que existe no mercado. Não é verdade: acho possível que se encontre algum volume avulso da minha tradução numa boa livraria, mas o certo mesmo é encomendá-la na Topbooks, editora da obra completa (telefax 21-2233-8718 e 2283-1039 – e-mail: topbooks@topbooks.com.br). No site da editora: www.topbooks.com.br há uma boa quantidade de informações sobre as obras, o autor e as críticas recolhidas a propósito dessas edições. Não estou aqui fazendo publicidade para a Topbooks, mas indicando o caminho das pedras aos leitores interessados. Segundo me informaram os editores, as vendas em livraria estão cada vez mais difíceis para eles, daí intensificarem o sistema da mala direta, garantindo-me que o livro adquirido diretamente na editora sai até mais barato que na livraria, pois concedem um desconto de 20% para cobrir as despesas com o frete.
Quando saiu o primeiro volume, em 1994, com uma festa no Centro Cultural Banco do Brasil, a qual durou toda uma semana, pronunciei uma longa conferência sobre Rimbaud, incluindo uma biografia do poeta, com o título de Flashes Cronológicos (1854-1891), que, por ser muito longa não poderei transcrever aqui. Mas reproduzo as palavras de apresentação do volume, escritas pelo editor José Mário Pereira, para que o leitor tenha uma informação sobre a importância da obra.
Arthur Rimbaud é um mistério humano e um enigma literário ainda não inteiramente decifrado, muito embora a indústria Rimbaud continue em grande atividade. Situar sua figura e sua obra no contexto da literatura francesa moderna tem sido a profissão da vida inteira de estudiosos de alta envergadura. Do mesmo modo, Rimbaud – encarnação da poesia e do próprio pathos do homem moderno – propõe um desafio permanente a todos aqueles que tentaram vertê-lo para outras línguas.
Essa obra estranha e fundamental, que desde sua publicação fermenta a imaginação e a criatividade de outros poetas (Claudel, Paul Valéry, Auden etc.), compositores (Benjamin Britten, que musicou Les Illuminations, é um deles), e mesmo cantores populares (Léo Ferrê; por exemplo, canta “La Maline”), ainda não ganhou entre nós uma edição integral, muito embora poemas esparsos já se encontrem em português. Um estudo a ser feito é o da recepção de Rimbaud no Brasil e de sua influência em nossa poesia. Em princípio no entanto, percebe-se que Verlaine (este ganhou em 1945, o ano do seu centenário, uma bem cuidada edição das Poesias escolhidas, pela Globo, com tradução de Onestaldo de Pennafort) e Baudelaire (“roi des poètes, un vrai Dieu”, na expressão de Rimbaud, com três traduções brasileiras completas de suas Flores do mal) tiveram melhor sorte que ele. Eis aí uma questão sobre a qual a crítica brasileira não disse até hoje quase nada.
A anemia nacional em relação a Rimbaud começou a findar quando, em 1973, o mineiro Ivo Barroso, poeta de fina sensibilidade, tradutor de raça e responsável pela execução de tarefas de extrema singularidade (traduziu Svevo, G. Perec, Italo Calvino e os sonetos de Shakespeare, entre outros), entregou ao público a sua versão de Une saison en enfer (Uma estadia no inferno), saudada por mestre Alceu Amoroso Lima como marco na história da tradução no Brasil. A certa altura de sua apresentação, escreve: “A tradução do poema, por Ivo Barroso, foi feita ao mesmo tempo com o maior respeito pelo pensamento do autor, na fidelidade aos mais sutis reflexos de sua expressão verbal, e com a constante preocupação de uma correspondência integral na linguagem vernácula mais depurada”.
Dentro do mesmo espírito que sempre orientou o seu sacerdócio como tradutor, Ivo trabalhou nesta Poesia completa. Foram anos de dedicação absoluta, melhor dizendo, de obsessão integral, garimpando mundo afora livros, variantes, curiosidades sobre o poeta que, na expressão de George Steiner, “deixou sua impressão digital na linguagem, no nome e no temperamento do poeta moderno, como Cézanne o fez com as maçãs”.
Referindo-se a Arthur Rimbaud, René Char identificou em sua obra uma qualidade fundamental: a invulnerabilidade. Para o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz, a revolução perpetrada por este “drop-out da burguesia provinciana” francesa é a de que “seus poemas são crítica da experiência poética, crítica da linguagem e do significado, crítica do poema mesmo”. Toda a poesia de Rimbaud, devido à habilidade e ao talento de Barroso, está aqui neste livro, sem dúvida ponto alto em nossa prática de tradução, e é mais um tento marcado por ele em seu projeto de pôr em português a obra completa do adolescente de Charleville, que espantou Paris com sua insolência e genialidade, viveu com Verlaine peripécias várias – que quase o mataram – e depois abandonou tudo por uma vida de aventura nos confins da África. Morto aos 37 anos, em 1891 – o ano em que veio à luz o Quinteto, op. 115 de Brahms, e em que Valéry publicou o seu Narcisse parle – foi adotado seguidamente por católicos, intelectuais de variadas facções, e mesmo pelo surrealismo.
Nem o cinema ficou indiferente a ele: em 1971, Terence Stamp, que antes protagonizara Teorema, de Pasolini, interpretou Rimbaud no filme Une saison en enier, de Nelo Risi. Já se falou da influência de Dante em sua obra, já se escreveu sobre a maneira como a leitura de Poe foi decisiva para a construção de Le Bateau Ivre (O barco ébrio, na elegante e precisa transposição de Ivo), e mesmo da presença de temas oriundos da tradição ocultista em sua obra. Agora mesmo Wallace Fowlie, seu tradutor em inglês, acaba de publicar um livro curiosíssimo, no qual identifica na personalidade e nas letras de Jim Morrison, o ousado vocalista do The Ooors, a presença de Rimbaud.
Quem ler o Rimbaud de Ivo não vai ter dúvidas: o poeta que um dia decretou a necessidade de se “reinventar o amor” encontrou, 140 anos depois de morto, o seu outro eu. É assim que os leitores ganham agora esta tradução exemplar, onde todos os ritmos, trocadilhos, assonâncias, elipses, e demais singularidades da poesia de Rimbaud foram respeitadas.
Voltaire, numa passagem das Cartas inglesas, comentando uma tradução sua de Pope, confessa não se sentir atraído pela tradução fiel, palavra a palavra. Essa observação, precursora das idéias de Pound, e a que nossos concretistas se referem como transcriação, não é receita cara a Ivo Barroso. Sua fidelidade ao texto levou Antônio Houaiss, o tradutor do Ulisses de Joyce, a falar em “reencarnação”. O testemunho geral de quem acompanhou o lento nascimento de Rimbaud em português depõe que o tradutor, nestes anos todos, em meio a compromissos e conferências, não parou de trabalhar, sempre em busca do vocábulo ou do verso preciso, e é sabido também que não foram poucas as vezes em que acordou aos saltos porque havia encontrado, em sonho, a solução que em vigília lhe tinha sido ingrata.
A TOPBOOKs e este seu envaidecido editor sentem-se honrados em entregar ao público leitor urna tradução dessa envergadura, sinônimo de profissionalismo, sensibilidade poética e rara disciplina intelectual.
José Mario Pereira (1994)
Capa: Adriana Moreno, sobre foto de
Rimbaud aos 17 anos, por Etienne Carjat.
Sr. Ivo Barroso,
É mais do que evidente que se deve, sobretudo, agradecê-lo com profunda consideração por esse presente inestimável dado a nós, leitores brasileiros que desconhecemos a língua francesa. Tal gratidão fora igualmente expressa pelo cantor Jim Morrison ao escritor Wallace Fowlie pelas obras de Rimbaud em inglês. Não julgo, de minha parte, um inconveniente repetir tal atitude. Há dez anos sinto-me tocado pelo poeta de Charleville, e se o encontrei outrora em trabalhos de tradução menos válidos, seu espírito penetrou minha consciência desde o primeiro momento em que o li.
Seus comentários sobre o processo de tradução e sobre os percalços e perigos na obra de Rimbaud, sr. Barroso, são luzes lançadas em rincões onde não poderíamos penetrar, não fosse sua dedicação incansável a essa poesia sacudidora dos alicerces do mundo. Ali a obra toma sua máxima significação, visto Rimbaud ser um mestre quando se trata de jogos de palavras, como bem o sabemos.
Todos os dias penso no Poeta. Sou um modesto livreiro que, por sorte e amor, adquiriu algumas obras de valor raro, como o livro do professor Izambard, reminiscências importantes do que viria a ser a figura extraordinária de seu aluno.
Eis tudo o que tenho a dizer ao sr Ivo Barroso: Os meus sinceros agradecimentos por essa empreitada.
Caro Paulo Roberto,
palavras como as suas me recompensam pelos anos a fio que passei estudando a obra de Rimbaud, adquirindo tudo o que podia sobre ele a ponto de ter e consultar cerca de 300 volumes que – num gesto rimbaldiano – doei à biblioteca do Centro Cultural Banco do Brasil (Rio), onde os leitores poderão consultá-los. Entre eles, verdadeiros tesouros, como o Album Zutique, do qual doeu-me muito separar. Sinto-me eufórico em saber que aquele esforço não foi em vão, que pelo menos um leitor se engrandeceu com meus achados e comentários e se deleitou com a minha tradução.
Muito obrigado,
Ivo Barroso