Os estudos biográficos assumiram nos dias atuais características bem definidas que os distanciam bastante dos relatos empíricos e presuntivos das obras do passado, em que os autores se compraziam em relatar histórias sobre a vida de seus personagens sem quaisquer compromissos com a veracidade dos fatos ou com sua comprovação. Diversamente, o conceito atual de biografia implica um estudo — a bem dizer científico — de testemunhos e documentos, passíveis de cotejo e verificação por parte dos leitores, exigindo-se para tanto a citação rigorosa das fontes (bibliografia) e a identificação precisa dos textos em que as proposições se encontram (volume, parágrafo, página, etc). Donde estarem hoje os biógrafos na contingência de solicitar permissão a autores e editores toda vez que citarem um texto que não seja de sua exclusiva autoria e, em alguns casos, até mesmo para a menção de uma única frase alheia. Este não é seguramente o caso de “Edgar Allan Poe, o mago do terror”, de autoria de Jeanette Rozsas, editado pela Melhoramentos – 2ª ed. 2012, em que tais preocupações bibliográficas estão longe de existir.
Ainda bem que logo na capa do livro há algo como que uma advertência ao leitor: romance biográfico – ou seja, o mesmo que biografia romanceada, esse gênero em que o autor assume não só o poder de onisciência sobre os acontecimentos da vida dos personagens, mas ainda lhes empresta voz, lhes dá vazão aos sentimentos e interpreta até mesmo as suas intenções. De modo que o relato resultante se assemelha a algo como as transposições televisivas de romances famosos, destinadas a deles transmitir apenas o desencadear da ação sem se preocupar com sua substância literária. Situado pois como “romance biográfico”, totalmente descompromissado com os rigores da biobibliografia atual, este “E. A. Poe – o mago do terror” é de excelente leitura, agradável e sentimental, permitindo ao leitor conhecer as dificuldades pelas quais passou o grande poeta, filho adotivo de um patrono que o ajuda e ao mesmo tempo repudia, suas tentativas para se firmar no mundo literário, suas paixões e casamento, seu fim de miséria e irrealização.
Essas várias etapas (ou episódios) decorrem dentro de uma cronologia amparada nos melhores biógrafos de Poe (Hervey Allen, por exemplo) e o livro cumpre com sua finalidade primordial, que, suponho, seja a de dar ao leitor iniciante, ou que lhe desconhece a obra, as linhas gerais de quem foi considerado o mais significativo dos escritores norte-americanos. E ficará sabendo também algo de sua vida literária: que foi redator e editor de jornais, que escreveu contos e poemas, sendo o mais famoso deles “O Corvo”, no livro apresentado (apenas) nas traduções de Machado de Assis e Fernando Pessoa. A propósito, é de se observar que todas as frases do livro – todas as falas de Poe e dos demais personagens — são devidas à autora e é preciso aceitar que eles falassem assim. Mas quando se trata de citar o texto dos poemas, já não é ela quem fala, mas se vale de traduções alheias, infelizmente sem citar o nome do autor ou a fonte donde as tirou, o que não se justifica nem mesmo nas biografias romanceadas. É o caso, por exemplo, da p. 74 em que é transcrito na íntegra o poema “To Helen”, ou da p. 81: uma estrofe da tradução de “Tamerlão”, ou ainda da p. 168: duas estrofes de “O Corvo”, todos em tradução de Milton Amado, sem que o nome dele apareça sequer na bibliografia onde deveria estar o livro donde foram tirados. Aparece apenas numa epígrafe da p. 9, onde é transcrita uma estrofe de “O Corvo”, em tradução atribuída a Oscar Mendes e Milton Amado. (Pobre Milton: marginalizado a vida toda por Oscar Mendes, que o inferiorizava como “colaborador” em vez de creditar-lhe a tradução de todos os poemas do livro, ainda hoje é citado de maneira sub-reptícia ou quase ilegível).
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Deserdado por seu pai adotivo, o escocês John Allan, o jovem Edgar Poe se mantinha precariamente com a publicação de trabalhos literários em jornais e revistas. Suas tentativas iniciais de firmar-se como poeta fracassaram inteiramente (Tamerlane and others poems, 1827; Al Aaraaf, Tamerlane and Minor Poems, 1828 e Poems, Second Edition,1831), mas seu conto “Manuscrito encontrado numa garrafa” valeu-lhe o prêmio de cinquenta dólares num concurso organizado pelo Saturday Visitor, de Baltimore, em 1833. Suas narrativas ficcionais, inaugurando um novo gênero literário em que predominavam o mistério e o terror, logo o tornam conhecido nos meios jornalísticos e já em 1835 ei-lo feito redator do Southern Literary Messenger, de Richmond. Hoje são conhecidos 69 desses contos, alguns publicados posteriormente à sua morte em 1849. A primeira tentativa de apresentá-los em livro data de 1839 (ou 1840) com o título de Tales of the Grotesque and Arabesque, reunindo 25 dessas histórias, organizadas então em dois volumes. Em 1845, Poe finalmente firma seu nome de poeta com a publicação de “O Corvo”, cujo êxito lhe permite ascender na escala social e o faz redator-chefe e depois proprietário do Broadway Journal. Em 1856,
Charles Baudelaire publica pelo editor Michel Lévy, em Paris, as Histoires Extraordinaires, com a tradução de 13 contos de Poe, precedidos de um estudo sobre a sua vida e obra. O livro concorre definitivamente para firmar o nome de Poe no continente europeu, onde se tornou mais conhecido do que em sua própria terra.
No Brasil, a obra de Poe aparece pela primeira vez em 1903 sob o título de “Novelas Extraordinárias”, pela Garnier, provavelmente por via Baudelaire; vem a seguir, e traduzida do inglês, a de Afonso d´Escragnolle Taunay, pela Melhoramentos em 1927, com o título de “Histórias Exquisitas”. Segundo a pesquisadora Denise Bottmann (Alguns aspectos da presença de Edgar Allan Poe no Brasil, em Tradução em revista, 2010/1, p. 01-19) há cerca de 15 edições dos contos de Poe entre nós com o título “Histórias Extraordinárias”, ou pequenas variantes, nenhuma das quais corresponde em conteúdo seja à das traduções de Baudelaire seja à editada pelo próprio autor. A mais completa edição dos contos entre nós é sem dúvida a da Nova Aguilar, de 1997, organizada por Oscar Mendes e Milton Amado, que compreende 66 dos 69 relatos até agora conhecidos.
A partir de 1908, a edição original dos Tales of the Grotesque and Arabesque, de escolha do próprio autor, deu lugar a Tales of Mystery and Imagination, organizada pelo editor Padric Colum, com o objetivo de apresentar as narrativas mais características de Poe e incluir relatos então inéditos em livro. Em 1919, o editor londrino George Harrap, ainda com este título, publicou uma edição ilustrada por Harry Clake, então o artista gráfico mais famoso da época (embora visivelmente influenciado por Beardsley), que a partir de então tem sido modelo para as edições americanas e estrangeiras dos contos de Poe.
Pois é essa edição ilustrada de Harrap/Clarke que a Tordesilhas (da Alaúde Editorial Ltda.) nos apresenta agora, em capa dura e magnífica tradução de Cássio de Arantes Leite, contendo os 22 contos de Poe que se tornaram tradicionais (William Wilson, O poço e o pêndulo, Manuscrito encontrado numa garrafa, O gato preto, Os fatos do caso do sr. Valdemar, O coração denunciador, Uma descida no Maelström, O barril de amontillado, A máscara da Morte Vermelha, O enterro prematuro, O encontro marcado, Morella, Berenice, Ligeia, A queda da Casa de Usher, O colóquio de Monos e Uma, Silêncio – Uma fábula, O escaravelho de ouro, Os assassinatos da Rue Morgue, O mistério de Marie Roget, O Rei Peste e Leonizando). Dada a qualidade gráfica, as expressivas ilustrações e principalmente a tradução rigorosa, esta edição ficará certamente como referencial da obra contística de Poe em português.
Boa tarde! Acho interessante que saiam novas traduções do Poe, e igualmente a proposta de uma edição com ilustrações de Harry Clarke e prefácio de Baudelaire! Gostaria de fazer um convite para o senhor, e se puder entrar em contato comigo, ficarei grata! Abraço, ótimo dia!
Oi Juliana,
qualquer assunto de ordem geral v. pode tratar aqui mesmo na Gaveta. Sempre respondo as perguntas dos leitores.
Abrs,
inb
Certo! Então, sou mestranda no programa de pós-graduação em estudos da tradução, PGET/UFSC, e junto à minha orientadora, a prof.a Karine Simoni, desenvolvo um trabalho sobre as últimas traduções de “Pinóquio”, desde 2002, quando saíram as primeiras no século XXI, até os dias de hoje. Na pesquisa não faço análise de tradução, pois o objetivo é olhar os elementos paratextuais, como a capa, prefácios, ilustrações, etc, e portanto não há intenção de entrar em questões como as escolhas tradutórias.
Para entender melhor como foi e ainda é a recepção da obra de Collodi no sistema literário brasileiro nesses últimos tempos, gostaria também de saber um pouco a respeito dos profissionais que tiveram o trabalho (árduo, na minha humilde opinião) de traduzir “Pinóquio” para o português.
Se não for nenhum incômodo, o senhor aceitaria responder a algumas perguntas?
Fico na torcida para que aceite, porém fique a vontade em aceitar ou não. Caso não aceite, não há nenhum problema também, e de todo modo agradeço muito a atenção!
Fico a disposição para possíveis dúvidas ou curiosidades, e também caso queira conversar sobre o assunto.
Muito grata, um abraço;
Juliana.
Cara Juliana,
não só aceito como terei grande prazer em responder suas dúvidas. A publicação do Pinóquio suscitou grandes análises nos jornais e você desde já pode consultar o que foi dito sobre o livro no site da editora (Cosac & Naify, suponho que ainda exista apesar de a firma ter fechado). Pode mandá-las por aqui mesmo, pois assim outros leitores ficarão a par do assunto.
Abraços,
inb
Que ótima notícia!! Muito contente que o senhor tenha aceitado!
Eu lembro na época de ter lido algumas coisas a respeito quando saiu, pois era uma edição linda e a Cosac Naify caprichou em vários aspectos. E claro, com a sua tradução! Um belo conjunto! Uma pena o fim da editora, era bem zelosa com as publicações. Dei uma olhada no site, mas redireciona para a Amazon :(
Mas o senhor me deu uma ótima ideia ao indicar os jornais, vou procurar nos arquivos dos periódicos!
Deixo aqui as perguntas, fique a vontade e leve o tempo que precisar para respondê-las! Sobre as suas respostas, o senhor se importaria se elas aparecessem no trabalho?
Bom, eis as perguntas:
1) Primeiramente, como se deu o seu contato com a tradução? (Como/quando começou a traduzir, por quê?)
2) Por se tratar de um romance muito traduzido e adaptado, houve alguma expectativa ou intervenção com relação a Pinóquio por parte dos editores?
3) Como foi o processo de tradução dessa obra, você procurou seguir algum método ou alguma teoria dos Estudos da Tradução?
4) Quais as maiores dificuldades/ desafios que você encontrou para traduzir esse texto?
5) Como foi o contato com o texto usado para a tradução? (Um ou mais textos, em qual ou quais línguas, impresso ou digital, possuía(m) a referência da(s) edição(ões) usada(s)?)
6) Na publicação da tradução de Pinóquio, você participou da escolha de elementos como a capa, prefácios, ilustrações, etc?
Muito grata, um abraço!
Juliana.
Juliana,
sobre minha iniciação literária e primeiras traduções, veja a entrevista que saiu aqui na Gaveta em 05.04.
2) Bel Lisboa, editora senior da Cosac&Naify, havia feito uma pesquisa a propósito das traduções de Pinóquio em português e concluíra que a maior parte se compunha de adaptações, textos fragmentados, sinopses, etc. e me propôs traduzir a obra completa do original italiano, admitindo mesmo que seria a primeira tradução integral do texto italiano. Eu não conhecia o livro de Collodi, que sempre supusera uma simples historinha infantil, edulcorada pelas produções Walter Disney.
3) Fiquei encantado com o texto original, que se revelou para mim uma obra prima da literatura italiana,a que me dispus a traduzir com todo o rigor que havia aplicado às grandes obras literárias com que me tinha defrontado antes.
4) Dificuldades propriamente não houve; nenhuma que os meus bons dicionários italianos não pudessem contornar. Esforcei-me foi para manter o colorido da linguagem de Collodi, que ia do coloquial e às vezes quase dialetal à linguagem escorreita dos autores mais clássicos. Ilustrei-me a cada uma das palavras traduzidas.
5) A editora me forneceu uma edição fidedigna do original que acabei tendo de devolver, o que hoje lastimo.
6) Não entrei apenas com a tradução do texto e sua posterior revisão final, mas a editora se incumbiu de todos os aspectos inerentes à editoração. Devo confessar que, depois de impresso o livro, não me entusiasmei com as ilustrações, que gostaria fossem as da edição original italiana.
Abraços,
Ivo Barroso
Olá! Sim, eu vi as suas respostas referentes ao que influenciou seu contato com as letras, chegando à tradução. Se o senhor não se importar, posso mencionar essa entrevista e a página “Gaveta do Ivo”!
Gostei muito das suas respostas, principalmente o fato de o senhor ter compartilhado a questão da linguagem que o Collodi usou, as variações encontradas no texto, por ter também compartilhado o encanto que a obra foi para o senhor quanto pessoa e profissional, aliás, muito importante dentro da tradução. Compartilho do mesmo encanto, e é muito bom ter esse retorno de alguém que o traduziu tão belamente, já que o acho dificílimo!
Com certeza informações que irão enriquecer a pesquisa que estou fazendo, e por isso sou muito grata à sua gentileza e colaboração!
Muito obrigada, um abraço!
Juliana.
Hosana, Juliana! Espero que vc não se esqueça de nos mandar uma cópia do seu trabalho.
inb
Belo texto, Ivo. Não me lembro de alguém que vá tão fundo nos temas que aborda quanto você, e que os construa tão bem, conteúdo e forma.