Stig Dagerman (1923-1954), um dos mais importantes escritores suecos do após-guerra é praticamente desconhecido no Brasil. Ao que me consta, seu único livro traduzido entre nós, “A ilha dos condenados” (no original: De dömdas ö), foi publicado pela Civilização Brasileira em 1978, nunca reeditado, hoje fora das livrarias e só com alguns exemplares à venda na Estante Virtual. Já os portugueses traduziram seus principais romances: “Vestido Vermelho” (cujo título original Bränt barn significa “a criança queimada”, em que relata a tentação de um jovem pela amante do próprio pai; “A Serpente” (Ormen), uma história antimilitarista tendo o medo como tema principal, simbolizando o fantasma da guerra; “As Sete Pragas do Casamento” (estranho título dado pelos portugueses a Bröllopsbesvär, literalmente “Aflições de um casamento” e que eu traduziria por “Nojo de Núpcias”) e “Outono Alemão” (Tysk Höst), livro em que conta suas impressões da Alemanha pós-guerra, sua preocupação com o destino cultural desse país que foi submetido (e submeteu-se) à loucura nazista. Essa simpatia pelo povo alemão, levou-o a casar-se em 1943 com uma refugiada de guerra, Annemarie Götze, de apenas 18 anos, com quem teve dois filhos. Mais tarde, já famoso como o mais representativo escritor sueco de sua geração, foi atraído pelo cinema e aproximou-se da atriz Anita Björk (estrela do filme “Senhorita Júlia”, baseado na obra de Strindberg e dirigido por Alf Sjöberg), com quem vai viver em 1953. Consta que Anita foi convidada por Hitchcock para fazer um filme em Hollywood, mas lá chegando em companhia de Dagerman e do filho de seu casamento anterior (Jonas Berström), foi impugnada pelo estúdio por não ser legalmente casada com seu acompanhante (Stig). O cinema exerceu grande influência sobre estilo de Dagerman: no conto que apresentamos a seguir, ele trabalha com uma série de cenas esparsas que vão se superpondo, aparentemente sem conexão entre si, para formar no fim uma espécie de painel homogêneo.
Apesar de todo o seu sucesso escandinavo, Dagerman sentia-se deprimido e isolado, acabando por suicidar-se em 1954: trancou-se na garagem, entrou no carro, ligou o motor e deixou-se asfixiar pelo gás carbônico da descarga.
Att döda ett Barn (Matar uma Criança), o mais célebre dos escritos de Dagerman, foi traduzido para o português por JORGE CARDOSO, autor de “Mal pela Raiz” (2004) e “Um Cavalo no Cemitério de Deus” (2006), dois livros absolutamente alucinatórios. Jorge vive há 16 anos na Suécia, na úmida cidade de Umeå, expatriado por vontade própria, depois de passar por todas as peripécias com que sonharam os jovens aventureiros de sua geração.
MATAR UMA CRIANÇA (Att Döda ett Barn) – STIG DAGERMAN
É um dia leve e o sol cai a pino sobre a planície. Logo os sinos irão tocar, pois é domingo. Entre campos de centeio, dois jovens encontram um caminho nunca dantes percorrido e contemplam no fundo do vale as vidraças brilhantes de três vilarejos. O homem faz a barba diante do espelho sobre a mesa da cozinha e a mulher cantarola enquanto corta o pão; sentada no chão, a criança tenta abotoar o corpete. É a manhã idílica de um dia nefasto, pois neste mesmo dia uma criança será morta no terceiro vilarejo por um homem feliz. Enquanto isto, a criança sentada no chão ajusta os botões de seu corpete e o homem que se barbeia diz que hoje irão sair e farão um passeio de barco e a mulher cantarolando coloca as frescas fatias de pão num prato azul.
Não há sombras na cozinha, e enquanto isto homem que irá matar a criança está em frente a uma bomba de gasolina vermelha em um posto de abastecimento no primeiro vilarejo. Ainda é um homem feliz que olha o visor da câmera e vê na lente um carrinho azul e ao lado do carro uma garota que sorri. Enquanto a moça sorri e o homem faz a foto belíssima, o atendente do posto fecha a tampa do tanque e lhes deseja bom dia. A garota entra no carro e o homem que irá matar uma criança retira a carteira do bolso e diz que eles irão até o mar e quando lá chegarem vão alugar um bote e remarão para bem longe.
Baixando o vidro da janela do carro, a moça no assento dianteiro escuta o que ele diz, fecha os olhos e ao fechá-los vê o mar e o homem ao seu lado no bote. Ele não é um homem mau, está alegre e satisfeito e, antes de entrar no carro, para um instante diante do radiador cintilante, desfrutando do reflexo, do cheiro de gasolina e das cerejas. Não há nenhuma sombra sobre o carro e o para-choque não está amassado nem manchado de sangue.
Mas, ao mesmo tempo em que o homem naquele primeiro vilarejo, outra vez bate a porta do carro à sua esquerda e dá partida, a mulher na terceira vila abre a porta do armário da cozinha e não encontra nenhum açúcar. A criança que acabara de abotoar seu corpete e sozinha deu laços nos sapatos está de joelhos no sofá e vê o córrego que serpenteia entre amieiros e um barco velho com os remos jogados sobre a grama. O homem que irá perder sua criança está barbeado e acaba de guardar o espelho. Sobre a mesa os copos de café, pão, creme de leite e algumas moscas. Falta apenas o açúcar e a mãe diz para a criança correr até os Larssons e pedir alguns cubinhos emprestados. E enquanto a criança abre a porta o homem grita da cozinha que é para ela se apressar, porque o bote está à espera na margem e eles irão remar para bem longe como não haviam remado antes. E enquanto corre atravessando os quintais a criança pensa o tempo todo no riacho, no bote e nos peixes se batendo e ninguém conta para ela que tem apenas oito minutos de vida e que o bote continuará lá o dia inteiro e por muitos outros dias irá continuar.
Não é tão longe até os Larssons, é só atravessar a rua e enquanto a criança corre para atravessá-la, um pequeno carro azul percorre o outro vilarejo. É uma pequena vila com casinhas vermelhas e pessoas que acabaram de acordar diante da mesa da cozinha segurando copos de café, vendo o carro passar acelerado no outro lado da cerca levantando, enquanto passa, uma imensa nuvem de poeira. Vai muito rápido e o homem que dirige vê as macieiras e os postes com seus cabos telegráficos de relance como se fossem sombras muito escuras. A brisa do verão entra pela janela, eles saem da vila, e estão seguros no meio da estrada e estão sozinhos – ainda. É gostoso este viajar solitário por uma estrada tão ampla e com o campanário ao longe fica ainda mais bonita. O homem é feliz e forte e com o cotovelo direito sente o corpo de sua namorada. Não é um homem mau. Tem apenas pressa para chegar ao mar. Não mataria uma mosca, mas ainda assim irá matar uma criança. Enquanto aceleram de encontro à terceira vila a garota fecha os olhos e brinca que não irá abri-los enquanto não cheguem ao mar e imagina no ritmo do balanço oscilante do carro quão tranquilo o mar vai estar.
E porque a vida é construída sem nenhuma compaixão um minuto antes de um homem feliz matar uma criança ele será ainda feliz e antes de a garota gritar apavorada ela conseguirá fechar os olhos e sonhar com o mar, e o último minuto na vida de uma criança pode ser aquele em que os seus pais sentados na cozinha esperam pelo açúcar e conversam sobre os dentinhos brancos de seus filhos e sobre um passeio de domingo. Esta mesma criança fecha um portão e começa a atravessar a rua segurando na mão direita alguns cubinhos de açúcar enrolados num papel branco e este último minuto nada mais é do que um longo e tranquilo riacho com peixes grandes e um barco com remos silenciosos.
O depois é sempre tarde demais. O depois é um carro azul derrapando pela estrada e uma mulher que aos gritos tira a mão da boca e a mão está sangrando. Depois um homem que abre a porta do carro tentando ficar de pé embora tendo um abismo de terror dentro de si. O depois são alguns cubinhos de açúcar esparramados entre o sangue e o cascalho e uma criança deitada imóvel de bruços com o rosto pressionado contra a estrada. Depois aparecem duas pessoas pálidas, que ainda não beberam seu café correndo e passando a cerca e vêem naquela estrada o que nunca irão esquecer. Porque não é verdade que o tempo é o melhor remédio. O tempo não cura a dor de perder um filho e cicatriza muito mal a mesma dor de uma mãe que se esqueceu de comprar açúcar e mandou a criança atravessar a rua para pedir um pouco emprestado. E o tempo também não cura a angústia do homem feliz que a matou.
Porque aquele que matou uma criança não vai até o mar. Aquele que matou uma criança volta em silêncio para casa e ao seu lado uma mulher que não consegue falar e com as mãos enfaixadas. E por todas as vilas que passam eles não conseguem ver uma única pessoa feliz. Todas as sombras são ainda mais escuras e enquanto eles se distanciam o silêncio continua e o homem que matou a criança sabe que este silêncio é o seu inimigo e que ele irá precisar de todos os anos de sua vida para vencê-lo gritando que não foi sua culpa. Mas ele sabe que é uma mentira e que ao invés disso, em cada noite ao se deitar, ele irá desejar apenas um minuto de sua vida de volta para fazer deste único minuto algo diferente.
Mas a vida não tem piedade para aqueles que matam uma criança e, por isso, tudo que vier depois será sempre tarde demais.
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Obs. Traduzido com a ajuda (imprescindível) de Ivo Barroso que para a minha surpresa também conhece e muito bem o idioma sueco. Abraço saudoso! J.C:.
Caramba, o conto é estupendo! Imagine se os torcedores do Chapecoense soubessem, no domingo, durante a decisão com o Palmeiras, do desastre de avião que aguardava seu time. Beleza, Ivo. Na verdade, a história me lembrou uma outra, não sei de quem, brasileiro, na qual se contam todos os pequenos detalhes que levarão atropelador e atropelado ao fatídico encontro.
Solha, caro amigo,
por favor tente lembrar-se do nome do autor brasileiro, pois quero pesquisar se o fez por imitação ou por mais uma daquelas extraordinárias coincidências.
Abraços,
inb
Ivo, forçando a memória – como se estivesse com uma lanterna no escuro – vem-me o nome de Ricardo Ramos, filho do Graciliano e fabuloso contista. Mas não tenho certeza.