BREVE NOTA SOBRE ‘‘FARÓIS’’, O LIVRO PÓSTUMO DE CRUZ E SOUSA,
NUMA TENTATIVA DE LANÇAR ALGUMA LUZ SOBRE ESTE GRANDE
POETA QUASE DESCONHECIDO
Sou de uma geração de poetas que aprenderam a metrificar. Sabíamos contar as sílabas nos dedos e distinguir um decassílabo de um alexandrino, palavras que não só parecem como na verdade são grego para os poetas e poetinhas das novas gerações. Tínhamos uma cartilha (a bíblia mesmo para alguns) em que aprendíamos a técnica do verso e os rudimentos da arte de poetar. Era o Tratado de Versificação, de Olavo Bilac e Guimarães Passos, título que o humorista Bastos Tigre havia gozado ao dizer que o livro era “de leitura imprescindível para um poeta fraco ver se fica são”. Era o tempo dos trocadilhos, cacoete retomado hoje pelos nossos poetas de vanguarda. O livro fora publicado (em inúmeras edições) pela Livraria Francisco Alves que, naqueles gordos e saudáveis tempos, ficava na rua do Ouvidor, por onde passavam as mulheres mais elegantes do Rio, seguindo para o footing da Colombo. [Tudo aqui está soando tremendamente saudosista e fin-de-siècle, mas garanto que isso aconteceu ontem. Como o tempo passa…]
Olavo e Guimarães eram parnasianos, cultores da forma e da elegância do verbo, defensores ferrenhos do vernáculo, e, por essas razões (lá deles) não demonstravam muito apreço pela nova corrente poética de seu tempo, o Simbolismo, que definiam como uma escola empenhada em explorar assonâncias e aliterações, sem grandes desvelos para com as ideias áticas e alcandoradas que deviam perlustrar as composições poéticas. [O vocabulário da época serve aqui de colorido cronológico.]
E exemplificavam essas tendências com um verso de Cruz e Sousa: “Vozes veladas, veludosas vozes”, que para eles não dizia nada, embora atendesse à preocupação do prógono internacional da escola, Paul Verlaine, que recomendava de la musique avant toute chose.
Era fatal que a restrição incitasse a curiosidade pela escola simbolista à medida que íamos achando aquele culto da forma um tanto artificial e pernóstico. Um dia a gente descobre que Ismália enlouqueceu e pôs-se na torre a sonhar, que um poeta encravado lá no interior de Minas, com um nome latino, Alphonsus de Guimaraens, produzia versos que, além de musicais, entravam num clima penumbrista, muito diverso das luzes meridianas do Parnasianismo, e talvez por isso mesmo agradasse mais ao nosso romantismo incipiente, regado a farras de cerveja (oh! que belos companheiros, como viram tão ligeiros) e ao som de serenatas de província (dia virá em que os lábios meus esmagarão a flor dos lábios teus). [Estamos descambando para uma insuportável hora da saudade. mas as modernas duplas caipiras são muito piores!] E a gente parte para conhecer outros poetas da mesma escola, já então chamados desprezivelmente de nefelibatas, pelos seus sonhos místicos, pelo seu vocabulário litúrgico e anseio de angelitude, como se de fato andassem e vivessem nas nuvens. Além de Alphonsus, havia nomes, alguns estranhos, como Emiliano Perneta; Mário Pederneiras, irmão do caricaturista Raul, crítico severo dos regimes ditatoriais; Marcelo Gama, que se chamava antiliterariamente Possidônio Machado; Tristão da Cunha, a quem devemos uma bela tradução do Hamlet; Félix Pacheco, hoje só lembrado nas carteiras de identidade; José Albano, maluco genial, autor dos mais belos tercetos da língua (“Triunfo”); Da Costa e Silva (“Saudade! Asa de dor do Pensamento!”); Álvaro Moreyra, Eduardo Guimaraens e Onestaldo de Pennafort, que se distinguiu como tradutor de Verlaine e Shakespeare. Mas o grande vulto mesmo, a eminência negra do movimento, era o poeta de Florianópolis, João da Cruz e Sousa, autor daquelas criticadas veladas vozes veludosas. Conhecer-lhe a obra completa foi uma experiência tão impactante quanto a leitura dos primeiros versos de Augusto dos Anjos. O seu “Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro” era uma badalada que iria retinir no “Escarra nessa boca que te beija”! Tínhamos a impressão de estar cometendo pecado, saboreando alguma coisa proibida, praticando um sadomasoquismo intelectual.
Cruz e Sousa parece ter invertido o quadro clássico: nasce bem e morre mal. Filho de escravos negros puros alforriados, foi adotado pelo senhor destes, o então coronel e mais tarde marechal-de-campo Guilherme Xavier de Sousa, de quem recebeu o nome de família; o João da Cruz veio por conta do santo do dia de seu nascimento, 24 de novembro (de 1861), o grande místico e poeta espanhol. [Excelente começo para um futuro poeta.] O menino foi criado com carinho, principalmente pela mãe de adoção, que lhe ensinou as primeiras letras. Teve educação primária e secundária esmerada, e aprendeu grego, latim, francês e inglês, matemática e ciências naturais. Com pouco escreve versos, leciona e colabora nos jornais da província. De repente, resolve percorrer o país “de Norte a Sul”, e a melhor forma que encontra é ingressando como “ponto” numa companhia de mambembes. Com a morte dos pais adotivos, que o protegiam, vê-se alvo de preconceitos raciais: em 1884, aos 22 anos, nomeado promotor público de Laguna-SC, não chega a tomar posse, sendo o cargo impugnado pelos chefes políticos locais, por se tratar de uma pessoa de cor. Daí para a frente vai conhecer a miséria dos 3ps: poeta, preto e pobre.
Para enfrentar a sina, assume a direção de um jornal intitulado O Moleque, num desafio ao preconceito. Em 1886, quase dá uma de Pelé: conhece a pianista loura da Praia de Fora, a quem dedica várias poesias, mas quando vem em seguida para o Rio de Janeiro, onde arranja seu primeiro emprego, graças à generosidade de seu conterrâneo Emiliano Perneta, vê Gavita Rosa Gonçalves, também negra e bela como ele, e com ela se casa em 1893, depois de ter publicado, quase simultaneamente, seus dois livros Missal (poemas em prosa) e Broquéis (poesia). Funcionário público modesto, arquivista da Central do Brasil, recebe em 1894 a visita do poeta Alphonsus de Guimaraens, que vem ao Rio especialmente para conhecê-lo: é seu momento de glória, seus 15 segundos de televisão! O resto da vida vai ser um folhetim de desgraças: a esposa enlouquece, ela e os filhos ficam tuberculosos, dois deles morrem ainda em vida do poeta; e ele próprio expira com essa doença a 19 de março de 1898, em Sítio-MG, onde fora em busca de melhores ares. Num fim à la Edgar Allan Poe, que ele tanto admirava, tem o corpo transladado para o Rio num vagão de transporte de cavalos e é enterrado no Cemitério do Caju, tendo José do Patrocínio se encarregado dos funerais. O amigo de sempre, Nestor Vítor, que falou à beira do túmulo, irá encarregar-se da divulgação de sua obra publicando em 1900 o livro Faróis, onde consta o poema Violões que choram, escrito em janeiro de 1897, e do qual faz parte o famoso verso Vozes veladas, veludosas vozes [longo demais para ser aqui reproduzido].
Esnobado pelos literatos preconceituosos de seu tempo e incompreendido pelo público, Cruz e Sousa custou a ser reconhecido como um dos grandes nomes da poesia brasileira. José Veríssimo e Sílvio Romero, os luminares da crítica da época, trataram os simbolistas com casca e tudo, chamando-os de turbamulta iletrada. Só muito mais tarde, Romero iria nele reconhecer, “a muitos respeitos, o melhor poeta que o Brasil tem produzido”. Mas a verdade é que a poesia simbolista acabou por influenciar o parnasianismo, que se obstinava em não morrer, e pode ser rastreada em poetas como Raimundo Correa, Alberto de Oliveira, Emílio de Menezes, Luiz Delfino e Vicente de Carvalho. Entre os modernos, há traços evidentes em Raul de Leôni, Ribeiro Couto, Cecília Meireles e Manuel Bandeira. Os grandes críticos do Modernismo e do Pós-Modernismo são unânimes em ressaltar as qualidades literárias do poeta, que teve em Nestor Vítor seu grande divulgador e em Andrade Muricy o estudioso exemplar.
As novas gerações de leitores brasileiros certamente não o conhecem, já que ele não se apresenta no programa do Sílvio Santos nem canta em parceria nos pagodes regionais. Mas resta a esperança de que os universitários venham a conhecer-lhe a obra rica de modulações ainda capazes de entusiasmar. Um passo de Armstrong foi dado nesse sentido pelo cineasta Sílvio Back em sua “revisão” cinematográfica de Cruz e Sousa, cujo script se fundamenta em trechos da obra do poeta. À falta de TV, viva o cinema!
Grandemente influenciado por Baudelaire, Allan Poe e Mallarmé, Cruz e Sousa utilizava o vocabulário litúrgico e arcaizante dos simbolistas para sublimar seus sentimentos. Queria superar a sua negritude pela pureza de ideais. Daí sua insistência em recorrer a palavras como alva, neve, nívea, clara em seus poemas, embora isso não significasse um repúdio à sua condição de negro, mas uma clarificação da poesia.
Caríssimo Poeta Ivo Barroso, de Ervália,
Obrigado, por tão gostosa aula sobre poetas e poesia deste nosso Brasil!
Didaticamente, com refinado humor, é o apanhado de jornal, não acadêmico, graças a Deus, com tudo e mais um pouco que a gente precisava lembrar do grande e inesquecível Poeta Cruz e Souza! Parabéns!
E, como ele já disse, e certamente aqui repetiria:
Sorriso interior
Cruz e Souza – Últimos sonetos,1905.
O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo este brasão augusto
Do grande amor, da grande fé tranquila.
Os abismos carnais da triste argila,
Ele os vence sem ânsias e sem custo…
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.
Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe esta glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.
O ser que é ser transforma tudo em flores…
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!
Obrigado, Garoeiro,
principalmente por deixar aqui consignado um dos mais belos sonetos do poeta. Pensei em transcrever alguns, mas o intuito principal deste blog é incentivar a leitura em livro, o contato direto com a obra do poeta. Como você percebeu, trata-se de um leve artigo jornalístico, escrito para uma revista catarinense (Palavra) por ocasião do lançamento da edição facsimilada de “Faróis” (2000), mas que sempre tem lá seu valor para os jovens que ainda não conhecem a grandeza desse vate.
Abraços,
Ivo Barroso
querido amigo, mesmo espiando de longe a sua gaveta, estou sempre por aqui. que qualidade neste poço de internet. Cruz e souza e Fagundes Varella me acompanharm muito pelas quebradas lá em Niterói. Obrigado por despertar estas lembranças. abraços desta Suécia gelada / jorge.
Oi, Jorge,
não esqueço você nem a Suécia. Estou pensando, aliás, em publicar aqui a nossa tradução (a quatro mãos) do Stig Dagerman. Não conheço aqui ninguém sequer que o tenha lido ou lhe saiba o nome. E aquele conto é de arrepiar.
Até breve,
abraços do Ivo
Belíssimo texto que vincula poesia e biografia. Sentimento e vida. Estética verbal e Raciovitalismo. Parabéns, Ivo!
Obrigado, Rodrigo,
fico sempre agradecido com suas manifestações.
Abraços,
Ivo Barroso
A impressão, Ivo, é a de que sempre tentamos seguir Cruz e Souza, obter versos como vozes veladas, veludosas vozes.
E verdade, até mesmo abusei desse recurso no meu poema Papel & Chão, Há trechos em que me parece ter dado um nó na língua e só saía a sílaba repetida. Grande poeta, inesquecível Cruz e Sousa, for ever.
Ivo