PEQUENA INTRODUÇÃO DO AUTOR
Este meu conto (primeiro e único) foi escrito em 1972, quando trabalhava em casa de Carlos Lacerda revisando verbetes de uma enciclopédia. Achei-o um tanto artificioso e resolvi submetê-lo à leitura de Antônio Carlos Villaça, que era meu colega de pesquisas. Depois da leitura , com ar meio enigmático, ele acabou dizendo: “Não foi você quem escreveu este conto, foi seu demônio”. Recordo-me que, em vez de “demônio”, ele disse “seu daimon”, numa alusão aos Sonetos de Abraxas, que eu tinha escrito e que também lhe dera para ler. Guardei o conto sem mostrá-lo a outros, receoso de que, conhecendo meu temperamento afável, viessem imaginar que o fizera apenas para épater. Somente muitos anos depois, a bem dizer vinte, convidado a falar sobre o ‘‘conto no Brasil’’, numa tertúlia do centro cultural das Casas de Fronteira e Alorna, em Lisboa, resolvi botar à prova a narrativa, e li-o sem mencionar o nome do autor. O espanto seguiu-se, a plateia manifestou sua preferência pelos nossos contistas regionais, e o Roteiro voltou à escuridão da gaveta. De volta ao Brasil, depois de longa permanência no exterior, comecei a fazer contato com os meios de comunicação e, entre poemas e resenhas, acabei cedendo o conto a uma revista do Paraná (Rascunho), que o publicou sem maiores comentários e sem que tivesse a menor repercussão. Até que um dia tive a sorte de corresponder-me com o arquifamoso tradutor alemão de Guimarães Rosa, Curt Meyer-Clason, que se interessou pelos meus escritos e verteu para o alemão mais de uma dezena de poemas e… o famigerado conto. Clason manifestou especial simpatia por ele e pediu-me autorização para publicá-lo numa revista alemã. Não só (satisfeitíssimo) permiti como lhe outorguei os possíveis direitos autorais que pudessem advir da publicação. Confesso que ao lê-la (ou decifrá-la) em alemão, a narrativa me pareceu ainda mais bizarra e macabra do que a sentia em português. Eis que, quase logo em seguida, o grande tradutor de Drummond para o francês, Didier Lamaison, me faz a surpresa de publicar na conceituadíssima revista literária francesa Caravanes (2003) sua versão do Roteiro, que me chegou como um verdadeiro presente de Natal. Já era o bastante para considerá-lo editado e não pensar jamais em escrever outro, fosse agindo por mim próprio ou atuado por forças alheias ao meu temperamento. Se o republico hoje na Gaveta é para preservar do limbo estas duas excepcionais traduções. Os conhecedores de línguas e os que se comprazem em estudar os meandros da arte tradutória terão aqui exemplos estelares de recriação literária.
ROTEIRO TURÍSTICO
Ivo Barroso
Em Bangkok (ou Nova York, não sei) há uma rua chamada Sarkanda, que significa Esgoto. Quando um mendigo é apanhado esmolando pela cidade ou um bêbedo caído nas ruas centrais, a polícia o carrega para lá. Um guarda, junto ao portão de arame farpado à entrada da rua, impede os párias de fugir. O confinamento dura em geral até a morte por inanição ou extermínio.
Se os segregados gritam durante o dia, os moradores dos sobrados que dão para a viela atiram sobre eles garrafas vazias ou baldes de água quente. À noite, os mais recalcitrantes são calados a pauladas, pois a população obreira do bairro precisa de repouso para o trabalho da manhã.
Por alguns dólares os turistas podem se divertir com esse curioso espetáculo: montes de lixo humano que se movem e uivam. É cobrada uma taxa especial a quem quiser fotografar. Se durante a visita os mendigos ficam parados e a cena se torna monótona, o guarda do portão permite aos meninos das vizinhanças entrarem em bando pelo beco desferindo pontapés nos corpos caídos. As vítimas já quase não ligam aos chutes nem reagem ao mijo quente que as crianças lhes acertam nos ouvidos. Alguns sangram e cantam quando os meninos os golpeiam com latas vazias de leite em pó amarradas a um fio de barbante, gritando: Canta! Canta! Os turistas sorriem ao guarda e dão pequenas gorjetas às crianças. Os que vêm do interior ou de outros países para conhecer a cidade e podem ficar por mais tempo preferem almoçar num dos restaurantes que funcionam nos sobrados com varandas abertas para o beco. A princípio, costumava-se jogar comida lá de cima para ver como os mendigos reagiam. O garçom explicava que não se devia jogar muita quantidade, pois o objetivo não era alimentar os pobres, mas vê-los disputar as migalhas. Nessas disputas, na ferocidade dos avanços e dos repelões, não raro morria algum. Na manhã seguinte, o lixeiro levava o cadáver para jogar no rio. Nas poucas noites frias, era possível cremá-los em fogueiras feitas de cavacos, restos de caixas, jornais e outras matérias combustíveis que os vizinhos piedosos jogavam das janelas.
Os dois restaurantes, situados um de cada lado da ruela, sempre empenhados em animar a vida do bairro, buscam atrair novas levas de turistas para comer e desfrutar o espetáculo. Mas há problemas a contornar. Como a tendência dos mendigos é a de se aglomerarem a um canto, ocorre às vezes que os clientes do restaurante à direita se divertem mais que os do lado esquerdo. Além disso, a preguiça e a debilidade tornam os miseráveis quase imóveis. Com poucas migalhas se satisfazem; comem e se acocoram para dormir, ou, o que é pior, refugiam-se embaixo de folhas de jornal para evitar a luz dos fortes holofotes que ambos os restaurantes despejam sobre eles. Daí o acordo tácito entre as duas casas: os clientes não podem mais atirar diretamente à rua os restos de seus pratos. A comida que passou a ser lançada consistia de pequenas almôndegas que continham ou não fortes doses purgativas ou veneno. Os mendigos apanhavam as bolas e as cheiravam antes de comê-las; mas nem pelo odor nem pelo gosto era possível distinguir as que tinham das que não tinham veneno. Com a mortandade diária os restaurantes prosperaram. Mas um pequeno grupo conseguiu sobreviver fazendo a seleção alimentar por um critério extra-sensorial. Os espertalhões perceberam que o restaurante mais afastado de onde estavam tendia a atirar uma quantidade maior de almôndegas puras para atraí-los em sua direção. O que gerou uma espécie de dança, para cá e para lá, pouco interessante para os clientes de ambos os restaurantes, que preferiam como dantes ver os mendigos se estrebuchando ou se esvaindo em fezes quando tentavam comer. Surgiu assim um novo problema para os pobres proprietários dos restaurantes: como os mendigos comem pouco, estava se tornando impossível abrir a casa para as duas refeições diárias. Os mendigos, quando conseguiam engolir algumas bolas inócuas na hora do almoço, não tinham fome por ocasião do jantar e ficavam rindo-se do esforço dos garçons para atraí-los. Claro, os clientes se retraíam: não haviam ido ali para ver mendigos sorridentes. Alguns fregueses saíam contrafeitos ou frustrados, prometiam vir para o jantar ou o almoço do dia seguinte, mas não voltavam mais. Daí terem os donos recorrido experimentalmente ao regime do jejum absoluto: nenhuma comida em hora alguma, com ou sem purgantes e venenos. Mas com a fome, o grupo tendeu a se encolher ainda mais, a permanecer abúlico, e a cada manhã os lixeiros tinham mais trabalho – só que o trabalho dos lixeiros não interessava a ninguém. Além disso, arriscava-se a uma dizimação improdutiva da mão-de-obra integrante do espetáculo.
Surgiu a ideia brilhante de se pendurar os alimentos em longas varas de pescar, sobre a rua, fora do alcance das mãos. Iscavam-nas com algumas almôndegas puras e boas, a recender ainda fumegantes e tiradas diretamente dos pratos dos clientes para afastar qualquer dúvida por parte dos mendigos. A princípio deu certo. O espetáculo voltou à animação dos primeiros dias: a massa informe movia-se, quase ficava em pé. Os recém-recolhidos, novatos com algumas semanas ainda de vida, conseguiam mesmo pular na tentativa de alcançar as iscas. Alguns se aproveitavam dos corpos dos companheiros caídos para subir-lhes por cima.
Mas a alegria do público foi logo esmorecendo. Quando um deles, no extremo do sacrifício de arrimar à almôndega, chegava próximo da isca, os gritos de advertência dos espectadores faziam com que os garçons levantassem as varas, criando a sensação de uma pescaria às avessas, que consistia em evitar que o peixe ferrasse o anzol. Enquanto isto, os garçons do lado oposto baixavam seus caniços para atrair os peixes famintos, e como a distância entre uma varanda e outra era muito reduzida, os oponentes passaram a esgrimir-se com as varas numa tentativa de evitar que o adversário facilitasse a pesca dos mendigos. A prática foi abolida no dia em que, entre urros, ameaças e impropérios, as iscas de carne tombaram no beco em razão da contenda. Os miseráveis apossaram-se delas e foram comê-las tranquilos em seus cantos, divertindo-se com a disputa dos garçons. Houve protestos gerais, alguns clientes saíram reclamando, outros chegaram a falar em devolução do dinheiro.
A solução do impasse pendia dos mais antigos habitantes do bairro: os ratos. Mas não se mostrou evidente no primeiro instante. Aconteceu por acaso. Eles apareciam apenas à noite, rondavam por baixo das varandas quando as luzes dos restaurantes se apagavam; era-lhes fácil farejar as últimas migalhas que os mendigos enjeitavam; quando até mesmo essas rações começaram a rarear, os animais subiam ao longo das paredes de palha, alcançavam as varandas, raspavam do chão das salas suspensas os salpicos de sopa. Depois, saciados, desciam, voltando céleres aos esgotos.
Quando se instituiu o uso das bolas purgativas, com pouco os ratões proliferaram, grande era a sobra que os mendigos deixavam receando a escolha. Os ratos devoravam todas as almôndegas aparentemente sem sofrer efeitos secundários. Mas quando os garçons começaram a carregar nas doses para ver os mendigos gemendo e defecando em público, revolvendo-se sobre o fel de suas próprias entranhas, os ratos também sofreram com isso. Os de pêlo gasto e curtido, que agora já vinham acompanhados de outros mais espertos e claros, a correr sem temor pelo centro da rua – os ratos passaram a guinchar em plena caça e a morrer às dezenas, à entrada dos esgotos, sob o efeito do tóxico. Os que restaram esconderam-se em galerias mais profundas, passaram tempos sem aparecer. Quando voltaram à superfície, estava em plena moda a prática do jejum absoluto e, logo depois, a das iscas suspensas por varas. As ratazanas vasculhavam os cantos, riscavam os muros, roíam as varandas e fugiam famintas. Depois que os andrajosos exauriram o que lhes restava de engenho nas grotescas tentativas de alcançar os caniços, e a prática das varas foi abolida, os ratos voltaram ao desespero da fome, em declarada guerra. Começaram a farejar as sombras, o fétido dos corpos caídos que tresandavam a excremento, e corriam por entre os molambos molhados, roendo os restos de merda das roupas. Uma noite, alguém, insone, que veio com um pau aplacar os gemidos dos mendigos, viu a faina dos ratos, e, como as idéias nascem de acasos, a solução se fez.
Os restaurantes mandaram armar grandes gaiolas de tela de arame para as quais atraem os ratos com torresmo e raspas. Com pouco, fazem várias criações em seu interior e, defronte às varandas, ali onde antes pendiam as varas, vêem-se agora gaiolas suspensas. Há um cuidadoso revezamento delas, e a que pende a cada dia encerra ratos que estão com três dias de regime.
Quando se aproxima a hora do espetáculo, a fome dos bichos é tamanha que seus guinchos vão se ritmando, cada vez mais agudos, e os focinhos sangram de gana esgueirando-se entre as grades.
Tudo o que os garçons têm a fazer agora é atirar sobre o grupo um bocado de molho e puxar o cordel que abre a ratoeira em cima. Os ratos caem das jaulas aos saltos e avançam atraídos pelo cheiro do molho. O grupo, atacado, se acovarda e esperneia, e o espetáculo atinge seu auge quando os bichos arrancam primeiro os lábios e os lóbulos. E depois, quando as crianças entram armadas de porretes e começam a matar sobre os corpos dos mortos os ratos já fartos.
Por uma questão de ordem, ajustou-se que um dos restaurantes só funciona para o almoço e o outro para o jantar.
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REISEFÜHER
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ÉTAPE TOURISTIQUE
O conto é uma obra prima de uma visceralidade sem igual, é impossível parar de lê-lo por um segundo sequer. E são as latas de leite amarradas a barbantes que cantam sobre as nossas cabeças. Obrigado por compartilhá-lo, Ivo. “Canta!”
Obrigado, amigão! Você que está aí nesse fim de mundo, onde coisas incríveis acontecem, certamente soube apreciar as possíveis intuições e “profecias” que o relato permite. Continuo sem saber como e por que o escrevi.
Abraços,
Ivo
Franqueia-se aos ratos a possibilidade de transitar por Sarkanda e pelas varandas dos restaurantes. Cabe a eles comunicar a miséria que há nos dois lados do muro.
Esse é um dos melhores contos que eu já li. Meus parabéns, caro Ivo.
Cara Letícia,
como disse na introdução, sempre guardei este conto como um filho espúrio, sem coragem para mostrá-lo em público, embora o achasse bem escrito. Muito obrigado por suas palavras que me recompensam de anos de silêncio.
Ivo Barroso
Ivo,
Ao terminar de ler o seu conto, uma explosão de imagens começaram a aparecer na minha cabeça,é uma viagem visceral, aterrorizante, e não dá para parar no meio do caminho, me impressionei com um roteiro de cenas de cinema, é muito mágico mesmo. No início eu fui transportado para um tipo de Coliseu enquanto os restaurantes ainda estão tramando o sádico entretenimento, depois quando você leva a gente para o beco escuro e entram os ratos, as ratazanas, o molho! jogado sobre os mendigos (queria eu ter inventado um cena dessas!, puta merda, bom de mais!) mas quando o molho é jogado por cima dos mendigos e as ratazanas famintas os atacam às mordidas que lhe arrancam os pedaços, a cabeça da gente escurece e entre Nova Iorque e Bangkock o dínamo magnetiza para o lado de Bangkock aí já me vem um cenário de Copolla, do filme Apocalispe Now — dentro de mim. Não sei se parecerá maluqice, mas eu sou louco mesmo. Mas as cenas, o ritmo que você criou, é uma pintura de um horror cativante que traz uma força, uma tensäo de repulsa que ao mesmo tempo atrai, que emociona. Uma parte que que me chamou bastante a atenção é quando as crianças com latas de leite amarradas em um barbante espancam os mendigos gritando “Canta!” eu escutava o som das latas. e depois serão estas mesmas crianças que a pauladas exterminarão os ratos confundidos com os dejetos, os espólios humanos, no final do espetáculo. Olha, o conto é espetacular, e agradeço muito por aterrorizar com tanta beleza e maluquice o meu domingo, que aqui pela escandinávia é ainda mais lento que nos países tropicais. Você possui mais contos? Pensa em publicá-los? Rapaz, os mendigos cobertos de molho — esta cena não sai da minha cuca, Parabéns Ivo, visceral! E arrisco que o alemão que o traduziu o fez por uma ligação inconsciente de identificação, é universal, e por lá, também houve algo parecido quando os guetos foram formados, Valeu Ivo, e obrigado.
Abraços fortes;
Jorge.
Jorge,
vai aqui uma confidência: a ambiguidade inicial (Bangkok/Nova York) tem sua razão de ser. Se o ambiente do conto só seria concebível num desses países oprimidos pelo ópio, a gênese da história acho que foi nova-ioquina. Na primeira vez que estive lá, fiz um desses tradicionais tour sightseeing e o ônibus nos levou pelos locais mais deslumbrantes da city, até que deslizou lentamente por um local denominado Brewer Street. Havia dezenas de mendigos, moradores de rua, acocorados e deitados sob as marquises, cobertos por trapos ou folhas de papelão. E o guia nos disse como um vidente: “Ao chegar o inverno, todos eles estarão mortos”. A excursão acabou ali para mim, mas a visão ficou na minha cabeça por muito tempo e posso atribuir a ela a evocação do horror que há no meu conto. Isto é só para você, não conte a mais ninguém.
Abração,
Ivo
Sr. Ivo,
É impressionante a forma sóbria com que o senhor narrou o absurdo (lembra Kafka). Mas será um absurdo mesmo? Pois quando o estupro coletivo de uma jovem é filmado e postado no Facebook como diversão, percebemos que talvez o que consideramos absurdo seja a normalidade para muitos.
Com certeza, os restaurantes abririam uma página na internet transmitindo o “espetáculo” ao vivo e cobrando pelo acesso.
A qualidade do conto dificulta acreditarmos que seja filho único.
Abraço,
João Renato.
Caro João Renato,
sempre temi que essas “previsões” pudessem tornar-se realidade, por isso venho mantendo o conto às escondidas e me recusar a escrever outros. Você lembrou bem a crua realidade em que estamos vivendo e que se aproxima dos horrores imaginados ali. Deus permita que não cheguemos a tanto.
Abraços,
Ivo Barroso
[…] de meus poemas aqui e aqui, além do conto “Roteiro Turístico”, que ele também traduziu aqui. Vertendo para o alemão vários livros de autores brasileiros e portugueses, inclusive as obras […]