TRADUZIDO POR IVO BARROSO
O CRISTO DE VELÁZQUEZ,
Em que pensas, ó morto Cristo meu?
Por que esse véu de noite carregada
de tua vasta cabeleira negra
de nazareno cai sobre o teu rosto?
Olhas dentro de Ti, lá onde o reino
de Deus está, em Ti, onde alvorece
o eterno sol, o sol das almas vivas.
Teu corpo branco, que semelha o espelho
do pai da luz, do sol vivificante;
teu corpo branco assim como o da lua
que morta ronda em torno à sua mãe
nossa cansada e vagabunda terra;
teu corpo branco está como uma hóstia
do céu de alguma noite soberana,
daquele céu tão negro quanto o véu
de tua vasta cabeleira negra
de nazareno. Tu és, ó Cristo, o único
homem que sucumbiu por seu intento,
triunfador da morte, pois que a vida
por Ti se enalteceu. E desde então
tua morte por Ti nos vivifica,
por Ti a morte se fez nossa mãe,
por Ti a morte agora é amparo doce
que dulcifica esse amargor da vida;
por Ti, o Homem morto que não morre
branco qual lua em plena noite. A vida
é sonho, Cristo, e a morte é a vigília.
Enquanto a terra solitária sonha,
a branca lua vela, e vela o Homem
em sua cruz, enquanto os homens sonham;
vela o Homem sem sangue, o Homem branco
como a lua a velar na noite negra;
vela o Homem que deu todo o seu sangue
para que as gentes saibam que são homens.
Tu salvaste da morte. Abre teus braços
A essa noite, que é negra e muito bela,
porque o sol da vida a contemplou
com seus olhos de fogo e fez a noite
morena, sim o sol, e tão formosa.
Como é formosa a lua solitária,
a branca lua na estrelada noite
negra, igual à frondosa cabeleira
negra do nazareno. E a branca lua
como o corpo do Homem na cruz, espelho
do sol da vida, o sol que nunca morre.
Os raios, Mestre, de tua luz suave
nos guiam pela noite deste mundo,
a nós ungindo com a esperança régia
de um dia eterno. Noite carinhosa,
oh! noite, mãe de nossos brandos sonhos,
mãe da esperança, oh! nossa doce Noite,
noite escura da alma, és a nutriz
da esperança no Cristo salvador!
Miguel de Unamuno
Tr. Ivo Barroso
Subsídios:
DIEGO RODRIGEZ DE SILVA VELÁZQUEZ (1599-1660) foi um dos mais importantes pintores espanhóis da chamada escola barroca, tendo se distinguido na composição de retratos de integrantes da nobreza,com o que se tornou uma espécie de pintor real em1623. Em 1635 ,produziu sua considerada obra-prima de temática histórica, A rendição de Breda, e em 1651, após uma permanência na Itália, voltou à Espanha nomeado Aposentador Real ,ocasião em que realizou um de seus quadros mais famosos A família de Felipe IV (conhecido como”As Meninas”). Sua representação do Cristo Crucificado, elaborada provavelmente em 1632, exprime, segundo os críticos,“uma fusão de serenidade, dignidade e nobreza, acentuada no corpo desnudo pelos efeitos de luz obtidos por toques de branco de chumbo aplicados sobre a superfície já concluída.” Chama a atenção, ainda, em suas obras a presença do “tenebrismo” (aplicação de fundo escuro) e do realismo (busca por detalhes para deixar a obra mais real possível).
Corre a lenda de que a obra teria sido encomenda por Afonso IV para presentear o Convento das Monjas Beneditinas de San Plácido de Madrid , à guisa de arrependimento por ter o monarca se enamorado de uma de suas freiras. Menos crível ainda é a fabulação de que o pintor, insatisfeito com o rosto da imagem, teria atirado os pincéis molhados contra o quadro, nele provocando uma mancha que deu origem à espessa cabeleira que cobre a face do Cristo.
Velázquez, debilitado com o excesso de trabalho, faleceu de febre bacteriana aos 6 de agosto de 1660, em Madrid.
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MIGUEL DE UNAMUNO Y JUGO (1864-1936) foi um ensaísta, romancista, dramaturgo, poeta e filósofo espanhol, tendo igualmente atuado na política como deputado (1931-33) pela região de Salamanca. É o principal representante espanhol do existencialismo cristão, conhecido principalmente por sua obra O sentimento trágico da vida (1913), que lhe valeu a condenação do Santo Ofício. Tendo apoiado inicialmente o franquismo, passaria seus últimos dias de vida em prisão domiciliar.
Já famoso em sua condição de profundo pensador religioso, catedrático e reitor da Universidade de Salamanca, aos 43 anos, publica seu primeiro livro de poesias, sobre o qual afirmou: “Só escrevi versos depois de passar dos trinta anos, e a maior parte deles ou a sua totalidade, depois dos quarenta… São poesias de outono, não de primavera” Em 1920 publicou seu famoso, O Cristo de Velázquez, longo poema dividido em XXXIX partes, com mais de dois mil versos brancos (não rimados), no qual se propôs “formular poeticamente o sentimento religioso castelhano, nossa mística popular”. Poema de exaltação religiosa, nele Unamuno procura descrever a agonia do Cristo crucificado através de comparações do corpo branco com a lua que ilumina a noite escura da condição humana. Condição esta a que se submete compassivamente o Cristo imortal, deixando-se morrer, qual luz que se ajusta à capacidade cognoscitiva do homem .
Destituído e reconduzido várias vezes à reitoria da Universidade de Salamanca, em razão de suas atitudes políticas, Unamuno passou seus últimos anos confinado, vindo a falecer a 31.12.1936.
O sereno poema de Unamuno e seu tranquilo comentário, Ivo,me lembram quantas releituras deslumbradas da História da Arte de Sheldon Cheney fiz antes de meus vinte anos, onde Velázquez era o gênio de obras em que dominavam os tons cinza e pérola. Ao entrar no Museo del Prado, em 1994, varando o longo corredor dominado por uma série de Rubens nada empolgante, entrei por uma escadaria à esquerda, atingi um círculo e vi que, dentro dele, dominava Diego e que, enquadrado pela passagem mais próxima, estava, ao fundo, o Las Meninas, e a tela me pareceu outra sala, em 3-D, do outro lado, na qual a princesa Marguerita, com suas companheiras de infância, nos encaravam, como nos encarava, à esquerda, o gênio, atrás da própria tela ante a qual estávamos, e vi que ele não nos olhava, na verdade, pois no espelho, ao fundo do salão em que toda a família real estava, o que se via era o reflexo do casal de reis, pais de la menina. O momento – belíssimo – do século XVII, ali paralisado- tantas e tantas vezes enaltecido e cantado – tem a mesma fria… empolgação… do mestre ante esse Cristo – tão anti Grünewald ( em que o Messias é o resultado de um massacre, na cruz ), Velázquez se mostrando, aí, com enorme respeito ao filho de deus que representa, ou, cujo sono acalenta, não mata. O mesmo respeito que Unamuro lhe devota, e você, Ivo, ao lhe fazer a tradução… com cinza e pérola, como a faria o próprio sevilhano .
Caro Solha,
obrigado por seu belo comentário. Imagino a emoção que você deve ter sentido diante das Meninas de Velázquez, um dos quadros de sua preferência.
Como você gostou da tradução, aproveito o ensejo para, aqui, dedicá-la a você.
Abraços do
Ivo.
[…] Fiz acompanhar aqueles versos de uma apreciação sobre o quadro do mestre espanhol (Diego Velásquez) e também de uma nota sobre o autor do poema (Miguel de Unamuno), que podem (e devem) ser relidas AQUI. […]