A REDOMA PARTIDA DE SYLVIA PLATH
Há pouco mais de meio século, a 14 de janeiro de 1963, saía em Londres pela editora William Heinemann um desconcertante livro (“The Bell Jar”) assinado por Victoria Lucas, que logo chamou a atenção dos leitores pelo aparente amadorismo de sua escrita, tudo indicando tratar-se de uma estreia bisonha. Mas, na sequência de um prólogo em que relata suas ingênuas experiências amorosas, a autora explode de súbito com a descrição de cenas de alta morbidez psicótica, traçadas com a frieza de um relatório cirúrgico. Numa narrativa semi-autobiográfica, descreve o tratamento de choque prescrito pela terapia eletroconvulsiva (ECT) a que se submeteu por causa de suas crises depressivas e, na progressão do estado mental em que se encontrava, acaba por ingerir 50 pílulas soníferas numa tentativa de suicídio, felizmente frustrada (pelo menos no livro). Para não acabar em tragédia total, a narradora termina acenando com a promissora recuperação de sua sanidade mental.
Poucos anos depois, veio saber-se que essa Victoria Lucas apenas encobria a verdadeira personalidade de Sylvia Plath, que já estreara na literatura com um livro de poemas “Colossus”, editado pela mesma Heinemann em 1960. Sylvia já era conhecida pelos seus artigos jornalísticos, seus contos sintéticos e principalmente por seus poemas posteriores ao livro, publicados em revistas literárias. A família, principalmente sua mãe, Aurélia Schober, acremente retratada no livro, empenhou-se em impedir a publicação, só aquiescendo em liberá-la após a adoção do pseudônimo. Apenas em 1967, três anos depois da morte da autora, o livro foi republicado com seu nome na Inglaterra, sendo que a edição norte-americana ainda levou outros 4 anos para sair.
Mas o que é “The Bell Jar” ? Materialmente falando, trata-se de uma campânula de vidro usada em decoração para resguardar um relógio de mesa ou outro objeto de arte, mas para Sylvia representava o estado de espírito em que se encontrava, encapsulada, abafada pelo ambiente em que vivia, querendo ser a criatura autêntica que sua mãe, ao contrário, se esforçava por fazer “igual às outras, prudente e virtuosa”. O título caracteriza igualmente o clima rarefeito, irrespirável em que decorreu sua juventude e que a fazia sujeita a depressões. Pouco antes de terminar o livro, Sylvia também sofria com o desespero e a frustração amorosa: seu o marido, o poeta inglês Ted Hughes, a havia trocado por Assia Wevill, uma refugiada de origem alemã, o que levou Sylvia a buscar a morte asfixiando-se num forno de cozinha. Não era a primeira vez que ela tentava o desfecho; em certa ocasião ingeriu fortes doses de barbitúrico, salvando-se por acaso. De temperamento instável, é possível que visse no suicídio a única solução para quebrar sua redoma de vidro.
A redoma de vidro. O leitor brasileiro já ouviu esse nome e provavelmente já leu esse livro, fundamental para o conhecimento da autora e do cerne de sua poesia. Em 1971, a Artenova editou-o em português com o título de “A Redoma de Cristal”, em tradução de Maria Luiza Nogueira. Vinte anos depois, como “A Redoma de Vidro”, saiu a edição da Globo, traduzida por Lya Luft, e oito anos mais tarde voltou a ser “A Redoma de Cristal” pela Record, com a tradutora Beatriz Horta. Ainda, em Portugal, o livro teve o título de “A Campânula de Vidro”, em tradução de Mário Avelar, e alguns exemplares chegaram até nós. Mas para os jovens leitores de hoje, que cultuam a poesia de Sylvia Plath, a boa notícia é que teremos uma nova tradução do livro pela Globo, iniciando o relançamento das obras completas de Sylvia Plath em português. Além da volta ao antigo título “A Redoma de Vidro”, a tradução agora é do jovem Chico Mattoso, que conseguiu um texto esperto e impactante como o original. Suas qualidades interpretativas ficam principalmente evidenciadas na rigorosa escolha de termos para as macabras descrições que Sylvia faz de sua visita a uma sala de necropsia com seus “garrafões de vidro cheios de bebês que haviam morrido antes de nascer”. Apostando numa linguagem direta e contundente, eis uma nova edição cotada para se tornar definitiva.
[Além da “redoma”, também existe de sua prosa em português o livro “América! América! e outras histórias de Sylvia Plath”, traduzidas por Nádia Quilici para LP-Books, de São Paulo, em 2013. Localizam-se ainda dois livros infanto-juvenis, “O Terno tanto faz quanto tanto fez” (em inglês, “The it-doesn´t-matter-suit”), tr. de Lya Wyler para a Rocco em 1997 e “Zé susto e a bíblia dos sonhos” (“Johnny Panic and the Bible of Dreams”), tr. de Ana Luísa Faria, Ed. Relógio d’Água Editores, Portugal, 1995. Por fim, “Os diários de Sylvia Plath 1950-1962” (“The Unabridged Journals of Sylvia Plath”), tr. de Celso Nogueira, foram editados pela Globo, em 2004.]
Embora esse único romance de Sylvia Plath seja fundamental para o estudo da evolução de seu estilo literário, a parte mais importante de sua obra é sem dúvida a poesia, toda (com exceção de “Colossus”) editada depois de sua morte. Ted Hughes (pronuncia-se ríuis), o marido infiel, publicou em 1965 pela Faber & Faber os poemas do livro “Ariel”, que Sylvia tinha deixado datilografados numa pasta, prontos para a impressão. Soube-se depois, pela própria filha do casal, Frieda Hughes, que o pai fizera uma “revisão crítica” dos originais, substituindo 13 poemas que ele considerava “fortes ou ofensivos”, por outros igualmente escritos por Sylvia em seus últimos dias de vida. Ted empreendera tal substituição, segundo ele, para “fazer do livro o melhor que pudesse” e, ao mesmo tempo “defender a memória da mãe de seus filhos e de pessoas vivas, além da própria reputação”. Alguns dos poemas suprimidos deixavam à mostra a grande amargura de Sylvia com o abandono do marido, por quem fora apaixonada desde o instante em que o conheceu numa festa acadêmica da Universidade de Cambridge, onde ela estudava como bolsista da Fullbright. O conhecimento se deu em fevereiro de 1956 e já em junho daquele ano estavam casados, sob os auspícios da mãe da noiva, a notória senhora Schober. Os noivos preferiram ocultar o casamento com receio de que Sylvia perdesse o estipêndio da bolsa e sempre passaram por dificuldades financeiras, embora tivessem tentado sobreviver dando aulas tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra. A situação do casal era tão precária que Ted não teve com que pagar o funeral de Sylvia, custeado finalmente por seu pai, William Hughes.
Foram necessários cerca de 40 anos para que os cultores plathianos pudessem ter acesso aos verdadeiros originais de “Ariel”, na ordem estabelecida por Sylvia, sem cortes nem substituições. A filha do casal, Frieda Hughes, deu a público em 2004 uma edição fac-similada dos originais cuidadosamente datilografados pela própria Sylvia, com todas as emendas à mão feitas por ela. O título original era inicialmente “Rival” (rival), emendado para “A Birthday Present” (um presente de aniversário), depois para “Daddy” (papai), para fixar-se finalmente em “Ariel”, que, nas próprias indicações um tanto despistadoras fornecidas por Sylvia à BBC numa entrevista de 1962, tanto podia significar o personagem shakesperiano de “A Tempestade” quanto o nome de um cavalo de sua predileção.
No prefácio, a filha dedicada, embora defendendo a integridade da obra materna, justifica a atitude coercitiva do pai afirmando que a substituição dos poemas havia, de fato, enriquecido o valor poético do livro. Tal parecer é corroborado pela criteriosa Megan O´Rourke num artigo em que analisa as alterações introduzidas por Ted, concluindo, com argumentos convincentes, que a versão dele “é de fato superior à de Plath – e que a própria [autora] teria ficado satisfeita com ela”.
A poesia de Sylvia é hermética, ríspida, sarcástica, agressivamente feroz, às vezes até desnorteante, com o leitor sem saber o significado ou a intenção dos versos, mas sempre construída com um vocabulário de riqueza léxica incomparável. Sylvia levou a língua inglesa a vórtices de antagonismo sintático, a uma escala de sons espinhosos e aliterantes (“Marble façades with blue veins, and jelly-glassfuls of daffodils” – Berck-Plage), dos quais brotam imagens surrealistas (“Six round black hats in the grass and a lozenge of wood, / And a naked mouth, red and awkward”) dificilmente traduzíveis.
[A edição brasileira de “Ariel” foi lançada em 2007 pela Verus Editora em tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo. Em 1981, Ted Hugues publicou os “Collected poems” de Sylvia Plath, obtendo o prêmio Pulitzer daquele ano; o livro foi em parte editado no Brasil como “XXI Poemas”, tradução de Ronald Polito e Deisa Chamahum Chaves, Ed. Livre, Mariana/MG, Brasil, 1994, e “Quando a palavra alucina’ (20 poemas), LP-Books, 2012, em tradução de Nádia Montanhini).]
Em 1998, Hughes publicou seu livro “Birthday letters”, de poemas relativos ao seu romance e casamento com Sylvia (“não pensando em fazer um poema, mas antes evocar sua presença e senti-la ali me escutando”, conforme suas próprias palavras). O livro procurava apresentá-lo como uma figura diversa do mau caráter que a crítica (feminista) havia fixado, mostrando a naturalidade ingênua de seu período amoroso, atitude e sentimentos corroborados pela filha Frieda, que atesta o comportamento paternal como irreprochável ao passo que se refere a Sylvia às vezes como “de temperamento feroz e um caráter ciumento”. A poesia de Sylvia sardônica e às vezes cruel, de imagética abundante, contrasta com a do marido que, pelo menos nestas “Cartas de Aniversário”, assume um tom narrativo, facilmente inteligível.
[A edição brasileira, bilíngue, de “Cartas de Aniversário”, foi feita por Paulo Henriques Britto para a Record em 1999].
Como brinde-extra de lançamento, a Globo traz aos fãs sectários de Sylvia um objeto de culto: seus desenhos “Sylvia Plath – desenhos”, tr. Matilde de Camilho), álbum organizado pela reverente filha, contendo 45 desenhos a caneta ou lápis e nanquim sobre papel e uma aguada, feitos em sua maioria em 1955-56, durante a lua-de-mel do casal, retratando, além de objetos de uso cotidiano, paisagens da Inglaterra, França, Espanha e Estados Unidos. Sylvia alimentava o sonho de vê-los estampando seus artigos na revista New Yorker, como tinha acontecido quando escreveu para o Christian Science Monitor. Não são desenhos artísticos, mas um suvenir amoroso, um bentinho — cerejinha a coroar o bolo das obras que aí vêm. Frieda acrescentou a eles quatro cartas de Sylvia (uma a Ted e duas a Aurélia) e um trecho de seu diário: tudo em linguagem amorosa, bem diferente da rispidez usada em suas outras missivas e anotações pessoais.#
(Publicado no Prosa & Verso de 11.10.2014 com o título A poesia e a prosa de Sylvia Plath revisitadas)
ANEXOS
Obra
EM INGLÊS
The Colossus and Others Poems(poesia), 1960.
The Bell Jar (romance), 1963.
Ariel (poesia),1965.
Crossing the Water (poesia), 1971.
Winter Trees (poesia),1971.
Letters Home; Correspondance (cartas), 1975.
The Bed Book (juvenilia), 1976.
Johnny Panic and the Bible of Dreams (ficção, diários, ensaios), 1979.
The Collected Poems (obra poética completa), 1981.
The Journals of Sylvia Plath (diários), 1982.
LIVROS EM PORTUGUÊS:
SYLVIA PLATH – POEMAS, antologia e tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, Ed. Iluminuras, Brasil, 1991(2ª ediçao: 1994).
PELA ÁGUA (Crossing the Water), Ed. Assírio e Alvim, Portugal, 1990.
ARIEL (Ariel), tradução de Maria Fernanda Borges, Ed. Relógio d’Água Editores, Portugal, 1997.
O TERNO TANTO FAZ COMO TANTO FEZ (It Doesn’t Matter Suit), tradução de Lya Wyler, Ed. Rocco, Brasil, 1997.
A REDOMA DE CRISTAL (The Bell Jar, with a biographic note by Lois Ames), tradução de Maria Luíza Nogueira, Ed. Artenova, Brasil, 1971.
A REDOMA DE VIDRO (The Bell Jar), tradução de Lya Luft, Editora Globo, Brasil, 1992.
A CAMPANULA DE VIDRO (The Bell Jar), tradução de Mario Avelar, Ed. Assírio e Alvim, Portugal, 1988.
ZÉ SUSTO E A BÍBLIA DOS SONHOS (Johnny Panic and the Bible of Dreams), tradução de Ana Luísa Faria, Ed. Relógio d’Água Editores, Portugal, 1995.
XXI POEMAS, tradução de Ronald Polito e Deisa Chamahum Chaves, Ed. Livre, Mariana/MG, Brasil, 1994.
A REDOMA DE VIDRO (The Bell Jar), tradução de Beatriz Horta, Editora Record, Brasil, 1999.
OS DIÁRIOS DE SYLVIA PLATH 1950-1962 (The Unabridged Journals of Sylvia Plath),tradução de Celso Nogueira, Editora Globo, Brasil, 2004.
ARIEL (Ariel), tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo, Ed. Verus, Brasil, 2007
BIOGRAFIAS:
AMARGA FAMA – UMA BIOGRAFIA DE SYLVIA PLATH (Bitter Fame – The life of Sylvia Plath, by Anne Stevenson), Tradução de Lya Luft, Editora Rocco, Brasil, 1992.
A MULHER CALADA (The Silent Woman – Sylvia Plath and Ted Hughes, by Janet Malcolm), Editora Companhia das Letras, Brasil, 1995.
ENSAIOS E ESTUDOS CRÍTICOS:
SYLVIA PLATH – POESIA E QUOTIDIANO NUM DIÁLOGO DE TRADIÇÕES, Mario Avelar, ed. pol., Portugal, 1992.
SYLVIA PLATH – O ROSTO OCULTO DO POETA (Análise da poesia e antologia poética bilingüe de 21 poemas), Mario Avelar, Editora Cosmos, Portugal, 1997.
A LITERATURA AMERICANA PÓS 1945 (há um capítulo sobre “Poetas Confessionais” dentre os quais Sylvia Plath, Anne Sexton…) – Ensaio crítico de Robert F. Kiernan, Ed. Nórdica, Brasil, 1983. *
VIAGEM À LITERATURA AMERICANA CONTEMPORÂNEA – Richard Kostelanetz, org. (Cap.24 – Sylvia Plath: Além do Biográfico por Rochelle Ratner, tradução de Flávio de Mello e Silva, ensaio, tradução de dois poemas inteiros e trechos de outros), Ed. Nórdica, Brasil. *
MEMÓRIAS, CRIAÇÄO E INVENÇÄO: A PRESENÇA DE SYLVIA PLATH EM BIRTHDAY LETTERS DE TED HUGHES – Amaral, Ana Luísa. In Colóquio-Letras, no. 147/148, Janeiro-Junho de 1998, pp. 311-315.
O DEUS SELVAGEM – A. Alvarez, tradução de Sonia Moreira, Editora Companhia das Letras, Brasil, 1999.
A POÉTICA DO SUICÍDIO EM SYLVIA PLATH – Ana Cecilia Carvalho, Editora UFMG, Brasil, 2003.
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KAZANTÁKIS COM TODAS AS LETRAS
Em 1957, já mundialmente conhecido e então endeusado com a exibição de um filme baseado em sua obra (“Aquele que deve morrer” ou “O Cristo recrucificado”, de Jules Dassin), Nikos Kazantzákis (1883-1957) resolve empreender, com sua mulher Élena, mais uma de suas viagens ao Oriente, desta vez com ênfase na China e no Japão. Após visitar a China, cujos resultados da revolução, ocorrida oito anos antes, o sempre curioso cretense queria conhecer, o casal se detém em Hong-Kong, onde seria necessário vacinar-se contra a cólera e a varíola, requisitos oficiais para se entrar no Japão. Kazantzákis lutava contra uma incipiente leucemia, e a vacina, neste caso, provocou uma reação nefasta: paralisou-lhe o braço direito, que precisaria ser amputado. Élena salva o marido da mutilação, levando-o de volta para Freiburg, na Alemanha, onde um tratamento de choque consegue aproximá-lo da sonhada recuperação. Mas Kazantzákis, “um dos maiores espíritos do século XX” (no dizer de Otto Maria Carpeaux) sente que seu fim está próximo e precisa concluir a sua obra. Nestas circunstâncias, é que se lança, com todo empenho, na revisão e conclusão daquele que seria seu testamento espiritual, o Relatório ao Greco. “Guardo minhas ferramentas… a tarefa terminou… como uma toupeira, volto para a casa, para a terra. Não por ter me cansado de trabalhar, não me cansei, mas o sol se pôs.”
Doménikos Theotokópoulos (1541-1614), nascido na mesma Heráclion cretense de Kazantzákis, depois de uma longa peregrinação artística pela Itália, fixou-se em Toledo, na Espanha, onde se tornou o grande pintor hoje conhecido por El Greco. A esse ancestral, que como ele carregava nas mãos um torrão do solo natal, Kazantzákis dedica seu livro-testamento, simbolizando nessa figura todo um passado glorioso de sua estirpe. No texto, muitas vezes o pintor é assimilado ou confundido com o próprio pai e com o avô do poeta. E a narração de seus feitos, reais ou idealizados, se confunde com a própria saga de uma Hélade dominada e ressurrecta, que consegue superar-se com base em seus valores históricos, na epopeia de seus heróis. Para completar o livro, a história de sua permanente procura de Deus e da sabedoria, Kazantzákis deixa de lado outros grandes projetos em se envolvera: a tradução para o inglês de sua recriação da Odisséia, de Homero, com 33.333 versos e o Terceiro Fausto, que sempre sonhara escrever. +
A vida e a obra de Kazantzákis encerram uma permanente busca da superação. Já em seu livro “Ascese, salvatores dei”, o autor procurava desesperadamente conciliar as antinomias que lhe atormentavam a consciência: a ação e a contemplação, buscando uma síntese entre o comunismo e o cristianismo. Passara por fases espirituais transcendentes: Buda, Lênin, Cristo, Bergson, Nietzsche, superando cada uma delas com a ideia de que a verdade total não lhe havia sido ainda de todo revelada, que era preciso ir mais longe, mais fundo, mais alto, um passo além do que julgara ser o último possível. Já na maturidade de seu pensamento, tentando a superação do destino e dos valores arraigados, Kazantzákis sente a necessidade de relatar sua experiência de vida, sua luta obstinada de encontrar a verdade e Deus, não para amá-los, mas para contestá-los e destruí-los. Num de seus diálogos com Deus, o autor conclama: “Sou um arco em suas mãos, Senhor, tensione-me senão apodreço. Não me tensione demais, Senhor, posso quebrar-me. Tensione-me, Senhor, mesmo que eu quebre.” Essa luta e essa esperança é que são as entranhas da confissão-despedida-testamento, — o Relatório ao Greco –. na qual se ouvem ecos de Zaratrusta e conselhos de Demian…
O leitor brasileiro tem agora a oportunidade de conhecer essa obra fundamental numa minuciosa tradução feita diretamente do grego por. Lucília Soares Brandão, diplomada em tradução pelo Centro de Língua Grega de Tessalônica, que vem se dedicando ao estudo continuado da obra de Kazantzákis. O prefácio de Carolina Dônega Bernardes, que se doutorou com a tese “A Odisseia de Nikos Kazatzákis: epopeia moderna do heroísmo trágico”, permite ao leitor se posicionar num ângulo mais amplo para a apreciação deste trabalho. De excepcional qualidade literária, a tradução encontrou seu veículo certo na jovem editora Cassará, que ora se propõe a publicar outras obras do autor.
Até os anos noventa, as traduções de Kazantzákis chegavam até nós sob a forma de retraduções do inglês ou do francês. Embora algumas delas fossem assinadas por grandes nomes da literatura brasileira, como Clarice Lispector, só em 1997 José Paulo Paes nos deu a primeira tradução de Kazantzákis feita diretamente do grego (“Ascese, salvatores dei”). Além disso, tais edições não raro se apresentavam sem um estudo introdutório que as comentasse ou situasse. O leitor ficava sem instrumentos para melhor apreciar a importância da obra. Com esta nova tradução de o “Relatório ao Greco” feita diretamente do original e devidamente comentada, podemos esperar que em breve toda a obra genial de Kazantzákis nos seja oferecida em versões tão próximas possíveis daquilo que ele de fato escreveu.
(Publicado no Prosa & Verso de 10.01.2015 com o título Confissões de Kazantzákis)
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UM HAMLET MANEIRO
Se você é um desses leitores preguiçosos, que sempre quis ler o Hamlet de Shakespeare, mas não conseguiu jamais passar da página X, ou se é um jovem da geração ENEM que vai ter agora de encarar o texto — eis a chance que esperavam! Seus estresses vão ter fim com este livro que, no esperto linguajar do autor, é a própria “salvação da lavoura”.
Rodrigo Lacerda, escritor várias vezes premiado, conseguiu o que parecia impossível: numa espécie de visita guiada, orientá-los na leitura integral do drama shakesperiano, tornando-o claro e acessível e até mesmo divertido, sem apelar para o velho recurso das adaptações tatibitates, capazes de subestimar o nível intelectual dos leitores. O segredo dessa façanha está no enfoque proposto e, principalmente, no estilo utilizado pelo autor para executar seu intento. Como que se travestindo de professor moderninho, de cavanhaque-pêra e tatuagem mântrica no braço, Rodrigo usa e abusa da linguagem da tribo, pontilhada de expressões coloquiais e dos modismos mais recentes que são a moeda de troca entre os interlocutores das redes sociais. Não raro vocês vão esbarrar em termos como bebum, enchendo a cara, esbórnia, perrengue, ziriguidum, esculacho e até mesmo na-na-ni-na. Mas não se iludam: Rodrigo, “bate na barriga” de Hamlet desde quando era pequenino, conhece praticamente todas as traduções do drama em português — desde o provecto “Amleto”, de Tristão da Cunha (1933), com o qual brilhou Sérgio Cardoso no papel-título, até as mais recentes que parecem feitas pelo tradutor-mecânico da Internet – e por isso não vende seu texto por barato: vale-se apenas do artifício para poder transmitir ao leitor as observações mais acuradas, os comentários mais eruditos que colheu numa boa dezena de estudos críticos da obra, em especial no Hamlet da Arden editado por Harold Jenkins.
O autor se dirige, desde o início, a um hipotético leitor (você, decerto) que é, ao mesmo tempo, um jovem ator que se prepara para interpretar, pela primeira vez, o papel de Hamlet no palco. Tanto ele quanto você não têm familiaridade com o texto, de modo que os comentários de Rodrigo são ao mesmo tempo a tradução dos versos, sua exegese minuciosa, a análise dos sentimentos dos personagens e as dicas de como o Hamlet-ator poderia interpretá-los: “As falas dos personagens são em versos, quase sempre não rimados, ou em prosa. Você precisa saber falá-los, dar-lhes ênfase, modulá-los”, é uma das observações que faz ao hipotético ator, a quem chama familiarmente de Hamlet Jr. Um por um dos desenvolvimentos do drama vão se tornando explícitos, as palavras são submetidas a uma cirúrgica análise de seus possíveis significados, das prováveis intenções de Shakespere ao escrevê-las daquela forma, considerando os valores vocabulares do idioma inglês seiscentista, de modo que nenhuma delas parecerá estranha, nenhuma citação histórica ou mitológica ficará fora do entendimento do jovem leitor de hoje. Mas tudo isto sem nunca entediá-lo.
No início do Ato 4, o autor faz uma pausa para advertir: ele vai contar a epopeia que a escrita de Shakespeare viveu até chegar aos leitores de hoje. É o relato de como o Amleth da Gesta Danorum foi retomado por Beleforest e de como Shakespeare produziu o Primeiro Quarto em 1603 e o Segundo em 1604, ou seja, a base das edições modernas da peça. Mas Rodrigo é precavido, conhece a turma: “Quem quiser pular direto para a ação, que pule, mas aviso que perderá algumas informações interessantes”. Pura verdade.
O tom familiar utilizado não exclui discussões exegéticas de relevo, como a possível culpa de Gertrudes, a virgindade de Ofélia, a subserviência de Polônio, etc. para muitas das quais Rodrigo, além das várias estudadas, tem igualmente uma opinião pessoal. A sem-cerimônia com que Shakespeare passa do tratamento “thou” para o corriqueiro “you” é assinalada pelo autor, que procura corresponder a essa dança pronominal, embora às vezes o faça à la ENEM, ou seja, misturando os tratamentos numa mesma frase, o que se afasta da norma culta recomendável nesse tipo de texto:
Trancarei suas palavras em minha memória
E vós ireis levar a chave
diz Ofélia na Cena 3 do Ato I , p. 43 (grifos nossos).
A nosso ver, a leitura dessa nova tentativa de aproximação com os clássicos é altamente recomendável. Saímos dela com a sensação de termos compreendido melhor o Hamlet, o sentido e intenção de suas frases, a riqueza de seu vocabulário (Rodigo explica e analisa, por exemplo, cada uma das florzinhas que compõem a grinalda mortuária de Ofélia!). Que venham outras experiências semelhantes para que possamos enfrentar a pedreira de A Montanha Mágica ou navegar seguros pelos mares de Ulisses.#
(Publicado no Prosa & Verso de 09.05.2015 com o título de Uma leitura do Hamlet para os jovens)
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AS LIÇÕES DE NABOKOV
Os alunos do último curso de literatura sobre Mestres da Ficção Europeia, administrado por Vladimir Nabokov na Universidade de Cornell na primavera/ outono de 1958, tiveram realmente razão de se mostrar surpresos: o estranho professor que lhes inculcava um profundo respeito e amor pela arte de escrever, insistindo em que a essência de um livro estava em seu “estilo e estrutura e não nas grandes ideias”, iria estourar logo em seguida no mercado editorial norte-americano com o livro “Lolita”, que saíra clandestinamente em Paris em 1955 pela Olympia Press, e era tido então como “pornográfico”. O sucesso do livro na América, no entanto, além de transformá-lo num ícone literário, permitiu ao autor abandonar de imediato sua atividade de ensinante para se dedicar de todo à literatura, e esse antigo refugiado da Rússia bolchevista e da Alemanha de Hitler, acabou encontrando afinal seu pouso permanente no Palace Hotel de Montreux, na Suíça, onde faleceu aos 78 anos em 1977.
Um dos sobreviventes desses cursos recorda que Nabokov iniciava o período escolar com as palavras: “Os assentos são numerados. Gostaria que cada um escolhesse um lugar e o mantivesse em todas as aulas porque desejo associar o rosto ao nome de vocês. Todos estão satisfeitos com seus assentos? Muito bem. É proibido conversar, fumar, fazer tricô, ler jornais e dormir. E, pelo amor de Deus, tomem notas, muitas notas”. O fascínio exercido por aquele estranho mestre de origem russa, “que falava enrolando o ‘r’ e insistia nos detalhes, nos divinos detalhes”, ficou demonstrado por várias recordações de seus alunos que, mesmo anos mais tarde, lhe escreviam para dizer que “só então entendiam o que mestre exigia deles quando os ensinava a visualizar o penteado mal traduzido de Emma Bovary ou a disposição dos cômodos na casa de Gregor Samsa”.
Em prolongadas e surpreendentes aulas em que o mestre desarvorava seus alunos com suas teorias inovadoras sobre a criatividade literária, Nabokov escolheu o seguinte naipe de superautores clássicos dos séculos XIX e XX, que eram lidos em classe sempre em traduções inglesas, em sua maioria “copidescadas” por ele: Jane Austen (Mansfield Park), Charles Dickens (A casa soturna), Gustave Flaubert (Madame Bovary), Robert Louis Stevenson (O médico e o monstro), Marcel Proust (No caminho de Swann), Franz Kafka (A metamorfose) e James Joyce (Ulysses).
A escolha desses nomes e livros não foi feita ser percalços. Conhece-se a troca de correspondência entre Nabokov e o crítico Edmund Wilson, a quem pedira sugestões sobre quem devia incluir no curso que ia dar. Wilson sugere de imediato Dickens e Jane Austen. Nabokov refuga Austen “Na verdade tenho parti pris contra todas as escritoras. Nunca consegui ver nada em Orgulho e Preconceito. Vou selecionar Stevenson em vez de Jane”. Mas Wilson reage com firmeza:“Você está errado sobre Jane Austen. Acho que deve ler Mansfield Park. Stevenson é um escritor menor.” O opiniático Nabokov acaba por acatar a sugestão, deslumbrando-se com a leitura de Jane, a ponto de fazer de Mansfield Park o livro de abertura de seu curso. Isto, no entanto, sem preterir Stevenson, uma de suas preferências especialmente por achar que os leitores em geral se equivocavam sobre as verdadeiras qualidades de sua obra. No início do curso sobre O Médico e o monstro adverte seus alunos: “Tratem completamente de esquecer, deslembrar, apagar, desaprender e jogar no lixo qualquer noção que possam ter de que o livro seja alguma espécie de história ou filme de mistério ou de detetive.” O verdadeiro valor literário da obra estava nos pequenos incidentes,na busca de uma verossimilitude para os componentes da poção transformadora de Jekyll, nas superposições morais do bem e do mal na alma de seu personagem. Lido depois do estudo de Nabokov, o leitor encontrará em O médico e o monstro um romance de análise comportamental dentro de uma narrativa aparentemente policialesca.
Esse deslumbramento, essa riqueza de considerações, essa superleitura dos meandros de um livro fazem com que os autores e suas respectivas obras tratados nestas lições de Nabokov sofram um redimensionamento literário capaz de abrir novas dimensões para os leitores. O livro que concatenou essas lições, organizado com verdadeira obstinação pelo scholar e editor de texto Fredson Bowers, que vasculhou rascunhos, notas de alunos, observações do mestre nas margens dos livros utilizados, além de repaginar uma série de apostilas — é agora editado no Brasil na competente e sempre admirável tradução de Jório Dauster.
(Publicado no Prosa & Verso de 14.11.2015 com o título Os Mestres Segundo Nabokov)
[…] PS: Ivo voltou a publicar no seu blog A Gaveta do Ivo e tem quatro textos ótimos sobre Sylvia Plath, Kazantákis, Hamlet e Nabokov. […]
Caríssimo Ivo Barroso,
Obrigado!
Ah, que bom poder ver a gaveta reaberta, com tais preciosidades…
Parabéns!
Querido senhor Ivo,
que maravilha poder ver seus textos novamente nesta Gaveta que está sempre aberta para todos os leitores.
As lições de Nabokov com destaque para Jane Austen me deixaram entusiasmada para comprar o livro.
Será possível que as pessoas fizessem trico durante as aulas? Ou era apenas um chiste?
um abraço,
Querido Ivo, tá vendo? Eu não conheço a Sylvia Plath e, agora, por sua culpa-resenha, toca correr atrás de mais esse livro. Vou ficar doidinha da silva, rsrsrsr. Bom, como ler é o melhor remédio, tá salva minha lavoura.
Beijo, querido Ivo, te amo!