(uma historinha divertida só para variar)
A senhora estava na fila do supermercado e quando chegou sua vez começou a colocar as compras sobre o balcão da caixa que, tendo atendido o cliente anterior, estava agora num papo animado com sua colega que fazia os embrulhos. A senhora esperou um pouco, olhou insistente tentando marcar presença, mas a caixa (Josenilda? Odicléia? Marinalva?) continuava a narrar, com detalhes explícitos, a festinha de que havia participado no dia anterior. A senhora empurrou as compras para frente, limpou afetadamente a garganta, e disse:
— Está tudo aí.
Josenilda (?) nem por isso. Ou melhor, pegou a primeira compra e levou algum tempo tentando fazer com que o clique da leitura ótica acertasse no alvo magnético do queijo de Minas. E o papo continuava. Até que – previsível – enganou-se na digitação e teve que chamar o gerente para corrigir a entrada absurda em que o preço de um produto apareceu na telinha multiplicado por dez. Ele veio, enfiou um cartão na faixa de leitura e digitou, sem olhar para os circunstantes, seu código mágico que apaga os peccata mundi.
Quando Odicléia (?), cada vez mais empolgada com sua narrativa, que agora já era partilhada pela cliente seguinte à senhora da vez, enganou-se novamente e gritou:
— Caixa 1, correção,
a senhora, diante da chegada do mágico impassível com sua varinha de condão, acabou dizendo:
— Isto assim não vai acabar nunca. Também você não presta atenção ao que está fazendo; não para de falar o tempo todo…
O miraculoso gerente acordou de seu mundo encantado e fez uma cara de quem, que chato! precisava tomar uma atitude diante da reclamação. Foi quando a senhora de trás, tomando as dores de Marinalda (?), disse:
— Que implicante! A moça também é gente, tem direito de falar, de rir, de brincar com os colegas. Não pense que ela é uma máquina que está aí só para atender as pessoas. A senhora está é com inveja da festinha dela…
Como não estávamos presentes, nem o leitor nem eu, ficamos indecisos como reagir. De um modo geral, com a tendência de relaxamento a que estamos nos acostumando, certamente acabaríamos dando razão às duas: A caixa não precisa ficar em silêncio, mas por outro lado não pode deixar de prestar atenção ao que faz, pois é paga para isso. A senhora tem direito de reclamar, mas fazendo-o na frente do desperto gerente pode estar pondo em risco o emprego da moça, o que, nos dias atuais, etc. etc.
Esse tipo de comportamento está nos levando a uma atitude cada vez mais passiva: não sabemos reclamar nossos direitos com medo de afetar os direitos alheios. Quando todo mundo está de acordo em reclamar alguma coisa, chamamos a isso protesto. Quando só alguns insistem em reclamar, a coisa passa a ser apenas implicância. Em se tratando de protesto, protesto coletivo, então, o fracasso é certo. Recentemente recebi por e-mail uma convocação para o Dia Nacional do Protesto. Devia vestir-me de preto ou colocar uma faixa preta na minha janela para atestar que eu, como milhares de cidadãos, estávamos completamente revoltados com a pouca vergonha de nossos políticos. Retransmiti o convite aos inscritos na minha lista de endereços. Todos estávamos de acordo em que devíamos protestar. No tal dia, me esqueci de colocar a faixa na janela e saí também vestido com uma cor qualquer. Quando me lembrei, na rua, percebi que não havia ninguém, ninguém, vestido de preto, que as janelas estavam livres de “fumos”, que nem os sapatos eram pretos, pois todos passavam de sandália havaiana a caminho do mar.
Não escondo, porém, minhas implicâncias, que são todas de caráter linguístico. Implico solenemente com a generalização do emprego do “lhe” (eu lhe vi, posso lhe ajudar, etc.), que foi institucionalizado por uma novela da televisão. Como o grande público toma a TV como padrão de comportamento e adere imediatamente a qualquer imbecilidade que aparece na telinha, nossos “âncoras” e comentaristas deviam ter mais respeito com a língua e não confundir “este” com “esse”, por exemplo. Na linguagem falada, de todo dia, vá lá; mas numa apresentação televisiva, seria conveniente usar-se a linguagem padrão. Está em moda agora, suprimir-se a preposição em frases como “o livro que eu mais gosto”, modificando a regência do verbo, e já vi até mesmo “intelectuais” aderirem ao modismo só para posarem de modernos. De repente, passaram a dizer “acont´ceu”, suprimindo o “e”, como se no português do Brasil já tivéssemos o “e” mudo. É comum ouvir-se “trangênico” em vez de “transgênico”, dito até mesmo por autoridades do ramo agrícola. E chega a haver dirigentes que resolveram abolir o “s” plural da maioria das palavras, em homenagem ao supremo chefe… Mas isso são meras implicâncias…
(Publicado no Jornal do Brasil – Caderno B – de 28 de maio de 2005)
Concordo com você. O pessoal da GloboNews, agora, só diz “Brigada, fulana, brigada, sicrano”. E há o Raí – garoto-propaganda da Caixa Econômica – liberado para os erres do interior paulista, mineiro e goiano, que é o mesmo do inglês ( “car” e “war” ), em carne e porta, enquanto o carioca se solta no malabarismo que é, para mim, dizer coisas como “Ishtamosh todosh intusiashmamadíssimosh” . Houve quem, no começo do governo Dilma, tentasse considerar válido tudo quanto é erro de português, pois o importante e que a pessoa se comunique. OK, o cara disse que num hai pobrema: você num entendeu? Eli si comunicô!
Quanto à moça do supermercado, parece-me mais uma participante da sociedade do “fique na sua, que estou na minha!” Vejo isso todo dia no trânsito. Como já não tenho pouca idade, aceito tudo isso como argumento de que a vida não vale muito a pena, o que vai tornando o fim mais aceitável, até desejável. Queria ser um Fernando Pessoa, que, na Ode Triunfal, parece – pelo menos parece – tão empolgado com a viva moderna, que inclui em suas maravilhas a corrupção dos políticos e até o lance de um velho sendo masturbado por uma menina, sob o desvão de uma escada.