A CARTA ESTÁ DATADA DE JULHO DE 1945, o Brasil estava em guerra, eu tinha 16 anos e minha família, dois anos antes, se havia mudado de Ervália, no interior de Minas, para o Rio de Janeiro, que era então a Capital da República. Meu pai, farmacêutico humanitário, ficara em nossa terra, que pouco antes se chamava Herval, e por esse nome sempre seria chamada por nós. Nos primeiros anos de Rio, sem conseguir nos desvincular do interior, era para lá que íamos tanto nas férias de junho como nas de fim de ano – uma espécie de volta à infância, aos passeios na roça, os banhos de rio, as conversas ingênuas, os primeiros namoros com amadas intangíveis. Em todas essas ocasiões eu passava boa parte do tempo em conversa com o Quidinho, que trabalhara na farmácia de meu pai, fazendo a escrita da firma com sua caligrafia meticulosamente desenhada. Quidinho, que se chamava Euclides Franklin Júnior, era um talento encravado na ganga da obscura Ervália. Além de contabilidade, fizera um curso de técnico de rádio por correspondência quando o conserto desses aparelhos ainda era algo esotérico. E os consertava madrugada adentro, quando a população estava dormindo, pois a energia elétrica da cidade, proveniente de uma usina rudimentar, mal dava para iluminar as ruas principais. Enquanto consertava rádios, Quidinho ouvia emissoras estrangeiras e passou a conhecer vários idiomas, entre os quais o italiano, de que me veio a dar as primeiras noções. Lembro-me de uma noite (ou madrugada) em que era transmitido pelo rádio um espetáculo de I Piccoli di Podrecca, famosa companhia de marionetes que encenavam adaptações de óperas, concertos (principalmente de piano) e peças teatrais. Eu ouvia sem nada entender, enquanto Quidinho dava boas gargalhadas tentando me pôr ao corrente do que se passava. Sua cultura geral era assombrosa e não sei de onde a teria conseguido haurir, já que em sua oficina havia poucos livros. Conhecia poesia e poetas, brasileiros e estrangeiros, e sabia de cor algumas estâncias de Camões. Quando eu morava no Herval e ele trabalhava na farmácia, nunca lhe mostrei meus versos, mas agora que estava vivendo no Rio mandava-lhe com frequência versos e cartas, em que lhe pedia críticas e correções. A carta abaixo responde a um desses pedidos, mas suas palavras são tão pertinentes que as guardei até hoje como Franz Xaver Kappus deve ter guardado as famosas cartas de Rilke a um jovem poeta. Confesso que, muito mais tarde, quando li pela primeira vez essas cartas de Rilke não senti o mesmo impacto que me trouxe a carta do Quidinho, simples, direta, cheia de bons conselhos sem parecer doutoral. O bem que ela me fez, preparando-me para a verdadeira poesia, é algo que eu gostaria de partilhar com outros jovens poetas de hoje, razão pela qual a estou publicando aqui.
Ervália, 8 de Julho de 1945 (2 da madrugada)
Caro Ivo:
Acuso recebida s/ amável cartinha de 26 de maio
p.p., acompanhando uns versos que eu devia corrigir. À vista
do assunto da mesma, encostei-a, bem como os versos; pois,
com a cabeça cheia de co-senos de “fi”, curvas, sinusóides
e funções trigonométricas, como eu estava no momento, ser-
me-ia impossível externar minha opinião a respeito.
É o que faço hoje. Aliás, se tivesse lido a poesia na
ocasião, já lhe teria escrito há mais tempo, porque pouco terei
que dizer da mesma. Está muito fraca a sua “?”
Parece que você mesmo está com vergonha do seu “rebento”,
uma vez que nem quis batizá-lo. Sinceramente: está muito
abaixo de suas produções anteriores.
Quanto à sua “esperança de uma capacidade poé-
tica”, eu lhe garanto que isto é uma realidade em Você. Você
é poeta; apenas, não é ainda artista. Por isto, produzirá assim,
perrengando; um dia dando mangas e maçãs, outro dia “aba-
caxis”, como Você mesmo reconheceu no seu raquítico filhote que
estamos examinando, peladinho. A veia poética, Você a tem.
E de primeira qualidade: o poeta nasce. O artista não
nasce: faz-se. Faz-se pela cultura intelectual e pelo refina-
mento da sensibilidade estética. Este refinamento, por
sua vez, faz-se menos pelo estudo que pelo aprimoramento dos
sentidos, e este, pelo amor, pelo sofrimento, pela dor, em su-
ma, pela Vida intensamente vivida. Ser poeta é ser nobre,
é ser bom, é ser sincero; é ser rei, é ser santo, é ser ple-
beu; é encher-se da simplicidade bela e inócua das coisas…
Isto Você já é. Ser artista é ser forte, ser construtor e ser
vândalo; ser escultor e iconoclasta pela Arte; é plasmar, pin-
tar ou descrever em sons toda a beleza do pecado, toda
a grandeza de sacrifícios ingentes, ignorados; é sentir e trans-
mitir à sensibilidade alheia expressões fisionômicas de deses-
perançados; é penetrar o impenetrável íntimo dos desherda-
dos da Ventura e iluminar-lhes os tesouros de resignação
que escondem; é ler o que está escrito nos olhares serenos
que fitam, absortos, os confins do firmamento; enfim, é ser
um deus em miniatura. Isto, Você ainda não é; ou, pelo menos,
não o é em dose suficiente. Só pela vida em fora Você terá conta-
tos com a Arte e a compreenderá. Os livros não a ensinam
tão bem como a vida. Os livros ensinam como fazer versos;
não ensinam, entretanto, onde tirar talento, idéas bonitas para
por nos mesmos. O talento e as idéas bonitas os poetas têm,
assim como Você. Mas, é preciso um motivo exterior, dinâmico,
impressionante, para provocar a ascensão ao consciente dês-
sas idéas; para provocar o extravasamento desse talento. É quan-
do entra em função a arte. Das inúmeras emoções, agradáveis
e desagradáveis, armazenadas no Inconsciente, devemos va-
ler-nos para explorar o plano artístico de nossas creações
literárias. Devemos valer-nos de impressões nossas, profundas ou
perfunctórias, conforme o caso, para impressionarmos a outrem,
com a intensidade desejada. Enfim, seria muito longa
uma explicação suficientemente clara de como tomar “cama-
radagem” com a Arte. Por isto, permito-me a lhe aconselhar
que só escreva versos quando se sentir profundamente inspirado.
Do contrário, Você terá outros “garotinhos” que nem merecem nome.
Você não tem ainda suficiente contato com as fontes inspira-
doras da vida, que são a bondade, o amor, a des-
ventura , a beleza, o desprendimento, a alegria e –
sobretudo – a saudade… Vê-se claramente isto nos
versos em questão, onde Você quis aproveitar um tema da
poesia sertaneja — As três lágrimas. Sobre este assunto,
é oportuno advertir-lhe que nossos “garotinhos”, em literatura,
não devem, de nenhum modo, parecer com os “filhos” dos outros; o
que é o contrário da vida prática, onde os filhos dos outros
é que não devem parecer com os nossos, para não dar “galho”…
para não dar “ingrizia”…
Assim, terminando, digo-lhe que o seu ou a
sua “?” não deve ser corrigido, porque já existe uma
poesia (“As três lágrimas”) com direito de prioridade sobre o tema.
Isto não quer dizer que eu não goste dos seus versos. Ao
contrário. Já li versos de sua lavra perfeitamente acei-
táveis. Com estes agora, porém, não posso ser camarada…
Aliás, em literatura, a crítica sincera, franca, desapaixonada,
é de mais utilidade que a camaradagem.
Sobre a demora da resposta, não fique Você
pensando que é porque isto me amola. Estou aqui à
sua inteira disposição e haverá oportunidades em que
lhe poderei responder imediatamente.
Conte sempre, sem vergonha, isto é, sem acanha-
mento, com o amigo de sempre que lhe envia um
sincero abraço e
Cordiais saudações,
Euclides Franklin Jr.
Como era genial esse seu Quidinho! E fico imaginando que ele sabia disso. E que isso lhe bastava.
Notável o seu amigo “mais velho”, Quidinho, já naquela época, em 1945, e lá se vão quase setenta anos, quase três gerações, um fenômeno de clarividência sobre o labor literário. Literário? Ou sobre a própria Vida? No jargão de hoje, a expressão bombástica talvez dissesse: “tudo junto e misturado”.
Pensando que o espírito do Quidinho ainda possa iluminar muitas e muitas carreiras promissoras de jovens escritores e poetas, reenviei a sua “Gaveta do Ivo” de hoje para vários amigos naquela fase de provação da Vida e da Literatura magnificamente exemplificada na Carta.
Parabéns!
Carlos Trigueiro
Trigueiro, aproveite e mande também pros seus amigos o excelente artigo do Ivo, que acabo de ver no TREM ITABIRANO, sobre Drummond.
Sr. Ivo Barroso,
Eu acho que o autor de um texto tão literário sobre a criação poética deve ter deixado, perdido no fundo do armário, um caderno ou folhas esparsas com seus próprios poemas.
Abraço,
JR.
Caro João Renato,
infelizmente acho que nada sobrou do Quidinho a não ser essa nossa saudosa lembrança. Na época do meu relato, a família era muito pobre, o pai já havia morrido e o próprio Quide (assim o chamava) era quem cozinhava para ele e a mãe, entrevada. Curioso é que a família dele e suas ramificações devia ter cultura, pois os nomes eram todos clássicos: Euclides, Plínio, Eurípedes. Um de seus primos se chamava Octapril (conhecido por Seu Eutrape), por ter nascido no dia 8 de abril. Outro parente, a administradora do correio local, chamava-se Mnemosine, veja só! Fico pensando, como você, nas grandes coisas que ele teria podido escrever.
Abraços,
Ivo Barroso
P.S. Para o Solha: sua lembrança do Sainte Colombe é perfeita!
muito perspicaz o autor da carta. com certeza um leitor cuidadoso com a crítica. por isso, faz uma falta esse tipo de gentileza. obrigado pelo acesso ao texto Ivo Barroso.
“Você é poeta; apenas, não é ainda artista”. Ivo, isso lembra imensamente a fala do velho Sainte Colombe ao jovem Marin Marais, em Todas as Manhãs do Mundo! “Você tem bom harpejo, etc, etc, mas não é músico!”
A diferença entre Quidinho e Sainte Colombe é o “ainda”.
A carta do senhor Quidinho é um prova que crítica e amizade podem conviver muito bem e seu arremate “em literatura, a crítica sincera, franca, desapaixonada, é de mais utilidade que a camaradagem.” é um primor!
PS: Herval… sempre que o senhor fala sobre seu Herval ou Ervália, lembro do meu Herval. Terra do padre Libório, criatura despachada e que tinha pouca paciência com fiéis atrasados para casamentos, pois segundo diziam, tinha uma plantação de cebolas para cuidar!
Raquel,
em 1945 houve uma uniformização dos nomes geográficos brasileiros para que não houvesse duplicidade. Havia dois Herval, o de Minas e o do RGS (o seu). Como o seu era mais antigo, permaneceu, e mudaram (trocaram o sexo?) do meu para Ervália. Mas até hoje continuo a chamar o meu de Herval!
Feliz Natal para você e todos os leitores,
Ivo
Quidinho lhe ensinou a buscar arte na poesia e a ser mais amigo da verdade que de Platão, suas duas maiores virtudes, Ivo. E sou enormemente grato a vocês dois por elas.
Sr. Ivo,
Como me satisfez ver em minha c. de entrada o e-mail que avisava de seu novo post. Há, o Sr. deve saber bem, em cada pequenina cidade do interior mineiro um sábio como o Quindinho. Voltei a ser menino. Lá no tempo que morava bem no centro das Gerais e via meu pai às voltas com homens – antigos para mim, sempre muito antigos: mais antigos que o tempo, eu pensava – assim a conversar e a ouvir. Meu velho pai, tb filho da Velha Minas é que me passou-a. A vi através dos olhos e exemplos dele. Hoje… sou um exilado na “carioca” Juiz de Fora. Como bom mineiro: recuso a sair da morada. Ainda que problemas de emprego já começam a bater na porta. Ou a falta dele – o tal emprego. Mudança é sempre um desagrado. Fiquei tb satisfeito em saber que o Sr. responde aos que lhe seguem no WordPress. Sabe como é difícil acessar certas pessoas nestes tempos estranhos dos quais nos alertava Jean Baudrillard que, espertamente (? ), deu o fora há algum tempo. Queria aproveitar para parabenizar pela tradução da obra poética completa de Rimbaud (apesar de a poesia francesa não me dizer muito); e da finalização (foi finalização mesmo?) dos 50 sonetos de Shakespeare. Digamos que… quando tarda o toque… o Sr. (e o Bardo) me correm sempre à lembrança; e por fim, o livro que reúne importantes traduções de “O Corvo”, onde pude “re-achar” a tradução de Milton Amado… para mim: a imbatível. A poetisa e tradutora Thereza Motta chegou a lançar pela editora “Ibis Libris” uma edição da poesia com nova tradução – dela mesma – com os desenhos da primeira edição norte-americana. Chegou a ver tal livrinho? É uma boa compra. Enfim… Interessante notar, ao ler o Sr., que há ainda um menino qualquer aí por dentro.
Aproveito o ensejo pra convidá-lo para visitar o meu WordPress e por lá dar umas voltas. Mas como bem disse Montaigne na abertura de seu Opus Magnum: o Sr. deve ter coisa bem melhor para fazer… (bem… as palavras dele não foram exatamente estas… mas o sentido foi, uai?).
Um forte abraço.
Signa: Gustavo Goulart.
Oi Gustavo,
parece que andamos navegando no mesmo barco, na nau dos náufragos, rumo a Oblívion. Você não me deu o link do seu blog, quero visitá-lo.
Abraços,
Ivo Barrosom
Mái ô sêo Ivo… si eu dé o indereço… ocê vai mêmú, homi? É assim ó: ocê dá meia vorta, crica no meu nomi (mamãe que me deu) qui tá in verde no seu brógui e ele leva ocê lá no meu (brógui tamém, só que o de lá é meu). Ó, como eu num sei, má leva. Aí ocê comenta lá cada post pra eu podê mostra pru zotro que o sêo Ivo Barroso é um seguidô meu. Prá meu pai principarmenti. E nóis tem uns amigo in comum que num vô denunciá aqui.
Um abraçu pro`cê.
Signa: Ieu mez.
Bem, Sr. Ivo… Como não recebo resposta do senhor há algum tempo (espero que esteja tudo bem com o Sr.), vou direto ao link, apesar de a brincadeira de meu último comentário valer muito ser utilizada como mapa. Eis:
http://poemascoloquiais.wordpress.com/
Peço que, dentro de suas possibilidades, entre em contato.
Felicidades.
Signa: GCGoulart.
P.S.: Vi o programa da GloboNews com o Sr. e confesso que, a despeito de não ser um grande admirador da poesia de língua francesa, tratarei de comprar o grande poema em prosa de Rimbaud pela Top Books se não me fala a memória (e acredite: aos 36 anos… ela falha muito!); pela mesma editora eu tenho o “Poesias Completas” com sua tradução. Veja bem: Quintana já alertava que alguns escritores, mesmo os bons, não seriam sempre bem vistos por nós… e dizia com sabedoria: “não são de nossa família”; e realmente os adjetivos e verbos que estranhamente aparecem mais na literatura de língua francesa, destoando das outras línguas neo-latinas, não me agrada. Mas… O Cânone, com bem lembra Bloom (pensador que me agrada muito – já era tempo de nossos primos nortistas nos darem um bom pensador; pena que H. Bloom caiu no que mais combatia: a mídia diminutiva, posto que ele é referência e vende bem. Viver no mundo requer cuidados.), deve ser lido! Não há que se concordar ou se gostar de tudo nele (lembrando que a poesia p.ex., vem primeiro aos sentidos (sim, a análise impressionista – hoje… abandonada de nossas faculdades – para nosso azar), depois à nossa razão. Ao poeta que não me “impressiona”, que não me toca… o meu buscar por outro que o faça dentro do cânone. Mas que se deve vasculhar a elite literária para acoplar-se de “munição” entre agrados e desagrados… disto não há dúvida em homens sérios. Reforço o ponto: seu entusiamo com o poema em prosa do autor francês me impulsiona a adquirir e ler o livro. Seu entusiasmo o “vendeu” a mim. Como disse: primeiro aos sentidos.