RETRATO DE UM VAMPIRO
Em 2010, o editor paulista Bruno Berlendis convidou-me a participar como tradutor de uma antologia que estava organizando e que iria chamar-se CANINOS – ANTOLOGIA DO VAMPIRO LITERÁRIO. Como o tema Vampiro estava ficando cada vez mais popular, graças à serie cinematográfica Crepúsculo, Bruno queria enfatizar que essa figura literária já era cultuada bem antes da publicação do romance Drácula, do irlandês Bram Stoker em 1897. e recolheu textos selecionados de grandes escritores e poetas internacionais. Esses trechos foram transladados por alguns dos mais conceituados tradutores brasileiros, e tive a alegria de estar entre eles. Coube-me trechos de um livro de Prosper Mérimée intitulado A Guzla [um instrumento musical popular, espécie de rabeca dos Bálcãs]. O curioso é que o livro, datado de 1827, já encerra uma espécie de mistificação. Mérimée anuncia-o como sendo uma tradução de baladas e poemas folclóricos da Ilíria [região ao norte do mar Adriático, grosso modo a antiga Iugoslávia e atuais Eslovênia, Croácia, Bósnia, Sérvia e Montenegro]. A contrafação visava a atrair o interesse crescente dos leitores da época pelos povos e culturas “exóticas”. Antes, ele já havia publicado, em 1825, outra obra apócrifica, que fora recebida com grande sucesso. Mas dessa vez, um leitor atento como Goethe não se deixou enganar e logo reconheceu um autor francês por trás das aludidas traduções do ilírico. Seja como for, a linguagem empregada e o ambiente surreal concorreram para fazer do livro um fetiche para os leitores do gênero. Dos trechos de Mérimée por nós traduzidos, selecionamos este que poderia intitular-se Retrato de um Vampiro.
O vampiro
1.
Nos alagadiços do Stavilla, junto a uma fonte, está um cadáver deitado de costas. É o maldito veneziano que enganou Maria, o mesmo que incendiou nossas casas. Uma bala atravessou-lhe a garganta, um iatagã (1) foi cravado em seu coração; mas, mesmo após os três dias em que ele jaz sobre a terra, o sangue ainda lhe escorre vermelho e quente.
2.
Seus olhos azuis estão baços, mas olham para o céu: maldito daquele que passar perto do cadáver! Quem poderia evitar o fascínio do seu olhar. Cresceu-lhe a barba, as unhas aumentaram; os corvos se afastam dele com temor, ao passo que se aferram aos bravos heiduques (2) que juncam a terra a seu redor.
3.
A boca está sangrando e sorri como a de um homem adormecido e atormentado por um amor hediondo. Aproxima-te, Maria, vem contemplar aquele por quem traíste a família e a pátria! Ousa beijar esses lábios pálidos e sangrentos que sabiam mentir tão bem. Vivo, causou muitas lágrimas; morto, provocará ainda mais.
Este fragmento de balada só tem valor por sua bela descrição de um vampiro. Parece reportar-se a alguma guerrilha dos heiduques contra os podestades (3) venezianos [N.A.] (1) Tipo de punhal recurvo usado nos Bálcãs e no Oriente Médio [N.T] (2) Heiduques: inicialmente, certos povos dos Bálcãs e adjacências; depois, mais especificamente, membros de milícias que combatiam os turcos [N.T.] (3)Podestade: Na Idade Média, funcionário encarregado da polícia em certas cidades da Itália. [N.T.]P.S. Se você for um desses leitores que não se satisfazem com as fantasias coloridas dos Crepúsculos hollywoodianos e quer saber algo de substancial sobre o tema do Vampiro na literatura – então não deixe de ler este livro!!!
Gostei bastante da ideia, e com essa tradução, que com certeza está primorosa, imperdível mesmo! Quando será o lançamento, ou já foi lançado?
Fabiola,
o livro foi lançado em 2010 pela Berlendis & Vertecchia Editores, de SP. Pode ser encontrado nas boas livrarias ou encomendado pelo tel (11) 30859583 (editora@berlendis.com).
Abraços,
Ivo Barroso
Obrigada pela informação, vou procurar o quanto antes! Abraços
A querida Catherine Morland da Abadia de Northanger certamente adoraria ler esta antologia! Preciso contar para ela lá no Jane Austen em Português.
Merimée!… Um dos grandes pavores de minha infância eu a tive ouvindo a radiofonização – pela Rádio Nacional, numa noite de sexta – de um conto dele envolvendo uma estátua de Vênus que, à noite, resolve subir até o quarto do homem que a desenterrou. Os passos da estátua nos degraus me botaram louco de medo!
Você tem razão: o trecho escolhido é primoroso.
Solha
[…] apresentação de Ivo Barroso, que traduziu um dos contos “A Guzla” da antologia, no seu post, O retrato de um vampiro | Blog Gaveta do […]