O 2º andar estava vivendo aquela euforia que reinara na Editora quando foi invadida pela horda da Senhor. Mas, desta vez, longe da agitação nervosa das redações jornalísticas que vemos no cinema – com pessoas passando de um lado para o outro em frente às câmeras – o que se observava era um ordenado grupo de jovens à espera do momento de falar com Antônio Houaiss.
Graças à ação jurídica dos advogados Vítor Nunes Leal, Luiz Gonzaga Nascimento Silva e Evandro Lins e Silva as acusações contra ele (e três outros diplomatas) tinham sido julgadas improcedentes e o processo fora arquivado com a reintegração dos réus em seus respectivos cargos, embora tivessem que permanecer por algum tempo no Brasil (na condição de suspeitos), enquanto aguardavam novas designações para o Exterior. Houaiss acabou voltando como ministro de segunda classe à delegação permanente do Brasil junto à ONU em Nova York, onde ficaria de 1960 a 1964. Mas a ação que ali desenvolvera – até mesmo ao arrepio da posição oficial da diplomacia brasileira, em favor da descolonização dos países africanos e sua integração nas Nações Unidas – comprometeu seu nome na lista negra do movimento que em 1964 tomara à força o comando do País. Manu militari, sendo-lhe vedado desta vez o recurso jurídico, Antônio perdeu seu cargo diplomático, foi sumariamente cassado em seus direitos políticos e ficou reduzido a cidadão sem emprego.
De volta ao Brasil, encontrou apoio em vários amigos que não tiveram dificuldades em lhe arranjar meios de sustento compatíveis com sua alta inteligência e formação cultural. As portas do Correio da Manhã e da Revista da Civilização Brasileira estavam abertas à sua colaboração literária. O editor Ênio Silveira incumbiu-lhe a tradução do Ulisses, de Joyce, que ele faria no espaço de um ano (1966) sem querer prolongar o tempo remunerado que lhe era concedido. Já no ano seguinte apareceria com a também monumental obra Elementos de Bibliologia, em 2 volumes, considerada até hoje a mais completa referência do assunto. Agora, ali estava ele como redator-chefe do maior projeto gráfico jamais assumido por uma empresa brasileira, a feitura da Grande Enciclopédia Delta-Larousse, que iria abranger uma equipe de mais de 100 membros de editoração, entre datilógrafos, secretárias, controladores, padronizadores, tradutores, revisores, documentadores, indexadores, diagramadores, iconógrafos, redatores e co-editores, reunindo o que havia de mais atuante no mundo intelectual brasileiro da época. Aparentemente franzino, distinguindo-se pela proeminência do crânio, Houaiss entrevistava, escolhia e contratava aqueles cujos trabalhos e currículos lhe eram apresentados, enquanto trocava com os candidatos palavras de cordialidade e boas-vindas. Além de contar com um conselho consultivo de respeito, a obra fora dividida em seções (geografia, cinema, assuntos militares, belas-artes, assuntos domésticos, agricultura, medicina, química, história natural, heráldica, tecnologia, física, assuntos navais, direito, história, economia, música, literatura, teatro, antropologia, matemática), chefiadas por nomes da representatividade de um José Honório Rodrigues (história) e de um Otto Maria Carpeaux (literatura).
Todos os integrantes sabiam da seriedade e responsabilidade do empreendimento, pois antes do início dos trabalhos Houaiss havia redigido um robusto manual de instruções, especificando a função de cada um e os critérios que presidiam a tradução ou a redação dos verbetes. Segundo os mais íntimos, embora aquelas instruções já constituíssem, elas sós, uma obra de fôlego, sua execução não fora nada para Houaiss, que, quando no início de carreira no Itamaraty, conseguira coligir, classificar e uniformizar num Manual de Serviço os milhares de leis, portarias e ordens de serviços sobre o dia-a-dia daquela atividade, que se constituiria num verdadeiro vade-mécum para os diplomatas de todos os níveis.
Mauro de Salles Villar, sobrinho de Houaiss, era quem se incumbia de selecionar os tradutores e distribuir-lhes as matérias de acordo com a capacidade ou especialidade de cada um. Todo um contingente de jovens redatores, jornalistas, free-lancers estava no momento desempregado, pois as redações e empresas, temerosas com a Revolução, faziam verdadeiras limpezas em seus corpos funcionais para esvaziá-los de “esquerdistas”. Ocorrendo em massa ao saberem da Enciclopédia, esses profissionais sem funções logo inflacionaram o quadro de tradutores, e Mauro achava conveniente dispor de material em estoque para “alimentá-los” por um período razoável, enquanto arranjavam outros meios de subsistência. Não há vagas, parecia escrito em todas as paredes. Mas certamente Antônio teria algum trabalho para mim, reconsiderou Mauro, que iria se encarregar da trabalhosa seção de iconografia.
Generosamente, o Prof. Houaiss disse que já me conhecia do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil [Em 1957, enquanto aguardava o encerramento do processo que o afastara provisoriamente de suas funções diplomáticas, ele exercera a crítica literária exatamente quando da efervescência do movimento concreto, e participara do agitado debate com os concretistas em 10 de fevereiro daquele ano. O Jornal do Brasil era uma espécie de porta-voz carioca das atividades do grupo e é possível que Houaiss tenha visto minhas colaborações dessa época e até mesmo alguns de meus poemas concretos que saíam no jornal]. Paulo Francis (então incorporado à Enciclopédia como chefe da seção de Teatro) também fizera referências às minhas traduções para a revista Senhor e Ênio Silveira lhe falara do sucesso editorial de “Demian”, de Hermann Hesse, que saíra pela Civilização Brasileira, em 1965. e Houaiss conhecia inclusive os livros que eu fizera para a Coleção Nobel. Com tantas e tão abalizadas credenciais, senti que não me seria impossível um lugar na Enciclopédia.
A Larousse original fora retalhada em uma infinidade de verbetes, colados em fichas tamanho ofício para serem entregues aos tradutores. Sobre a mesa de trabalho, havia duas imensas pilhas de verbetes já traduzidos e passados por uma primeira revisão. Depois de ler, sem exceção, todos eles, Houaiss não raro tinha que reescrever uma boa parte, seja para lhes acrescentar um dado, corrigir um nome ou cortar alguma informação desnecessária ao leitor brasileiro. Um tipo de reescrita que ele já fazia necessariamente com os verbetes produzidos no Brasil, em geral bastante longos e que exigiam dele a chancela da padronização. No momento, estava pensando em criar um “funil de convergência”, que descarregasse em sua mesa os verbetes traduzidos e revistos, mas igualmente submetidos a uma última leitura crítica com autonomia de emendas. Isto poderia aliviá-lo um pouco para se dedicar mais demoradamente aos verbetes originais. Durante algum tempo – certamente mais de um ano – fui um desses “funis” e trabalhava na parte da manhã. À tarde, Zazi Corrêa da Costa se incumbia das mesmas funções. Zazi era altamente eficaz e, com satisfação, reconheço até hoje que o editor-chefe apreciava o nosso esforço conjunto.
Como Houaiss trabalhasse incansavelmente o dia inteiro, sempre estávamos em contato com ele, e ouvi-lo – sobre qualquer assunto – era um desfrute pelo qual tínhamos até vontade de pagar. Nosso convívio resultou numa proximidade que nos permitia falar ao Mestre também de nossos trabalhos pessoais. A tradução de um soneto de Shakespeare que lhe mostrei ensejou-lhe palavras de estímulo tão convictas e sinceras que me levaram a prometer-lhe, decidido, que continuaria a fazer outras mais. Éramos premiados com sua atenção especial e nos sentíamos enaltecidos quando alguns dos nossos “achados” eram transmitidos ao conhecimento do grupo.
Mas nosso Sternstunde aconteceu no dia em que ele convidou um pequeno grupo para almoçar em sua companhia. Na curta caminhada até o “Rio Minho”, na rua do Ouvidor, ouvíamos Houaiss discorrer sobre o preparo de comidas com o mesmo entusiasmo com que falava da origem e evolução das palavras. Minha sensação era a de estar na companhia de alguém que me levava para o Olimpo. Sentamos os quatro, e ele anunciou que iríamos comer um haddock – preparado por ele. Esclareceu que se tratava de um peixe defumado, que ele cozia na água de coco para amenizar os efeitos da fumigação. Já havia instruído o cozinheiro no preparo do petisco e iria à cozinha apenas para os retoques finais. À maneira do Mestre, eu diria que o ad hoc latino me era familiar mas pela primeira vez eu palatava o seu homófono. Saboreei-o, encantado com a souplesse com que Houaiss manejava o garfo com a mão esquerda. Meu deslumbramento era tal que penso ter bancado o idiota naquela ocasião com meu silêncio persistente…
Houve outros momentos estelares e talvez o maior deles, já beirando o milagre, vou relatar em seguida:
Apesar de minha devoção enciclopédica, eu não me descurara da carreira bancária, que – oportunamente – merece um capítulo à parte. De simples escriturário letra A em 1954, quando entrei no Banco, eu havia passado a assistente do administrador do Edifício da Agência Centro (hoje o CCBB) – cargo em comissão – e dali atingido o ideal de todos nós funcionários, que era o de trabalhar na Direção Geral (que reunia as Carteiras de Câmbio, de Redescontos, etc), usufruindo as regalias de um gabinete com direito a contínuo e cafezinho. Fui trabalhar na Cacex (Carteira de Comércio Exterior), onde acabei me especializando em café e cacau, e na qualidade de representante do Banco, participei de várias reuniões no Exterior (Londres, Gana, Costa do Marfim, Togo, etc.). Essa representatividade me punha em contato com diplomatas de vários níveis (embaixadores, ministros, secretários), com alguns dos quais fiz amizade. O Itamaraty e a Cacex trabalhavam em conjunto no incentivo de nossas exportações e acabaram por assinar um convênio em que o Banco cedia alguns funcionários para trabalhar diretamente junto às embaixadas no Exterior. Fui um dos escolhidos e passei a frequentar um curso de adequação no então Ministério (da Rua Larga), enquanto aguardava a designação oficial. Mas quando ela veio, afinal, foi um desastre. No ofício dirigindo ao Banco solicitando a cessão dos funcionários, o meu nome apareceu como Ivo Barroso (pois eu era assim conhecido) e não Ivo do Nascimento Barroso, como eu existia no civil. Resultado: o Banco cedeu os funcionários menos o Ivo Barroso (que alegaram não ser do quadro) e enviaram o ofício para o então criado Banco Central, onde havia, de fato, um Ivo Barroso, altamente comissionado na Inspetoria de Bancos. O xará ficou surpreso (mas altamente envaidecido) com a indicação, atribuindo-a ao fato de que em certa vez fornecera àquele Ministério informações sobre as atividades de seu departamento.
Que fazer? Contei o ocorrido a Houaiss, que conhecia os meandros da Casa. “Um caso complicado, meu dileto. O Itamaraty não vai admitir que errou, logo seu xará vai acabar indo em seu lugar”. Mas…
Por sorte, a outra “convergente”, Zazi Correa da Costa – disse-me Houaiss – era filha do Sérgio Correa da Costa, então Secretário Geral do Itamaraty.”Quem sabe ele poderá arranjar uma solução”. Zazi teve a gentileza de me levar um dia à sua casa e pude expor meu problema ao pai dela. Ele também via um nó górdio na situação, mas que eu procurasse seu chefe de gabinete, o então primeiro secretário Alberto da Costa e Silva, que ele talvez pudesse sugerir alguma coisa. Alegrei-me: Alberto era poeta, escrevia nos jornais como eu; além disso fora meu professor de literatura quando, numa segunda tentativa, andei frequentando outro cursinho (então acessível) para o Itamaraty. Alberto achou por fim a solução: de fato, o Itamaraty não iria admitir o erro mas o Ivo Barroso tout court “poderia” abdicar em favor do Nascimento.
Parece que o próprio xará se deu conta do engano e, numa entrevista no Gabinete do Ministro, disse que não estava em condições, no momento, de residir no Exterior. E foi assim que embarquei para a Holanda em 1968 para ficar um ano como Adido Comercial junto à Embaixada do Brasil na Haia (Den Haag). Minha alegria se ofuscava apenas pela tristeza de deixar a companhia de alguém que me erguera ad astra e ir-me embora sem ver a conclusão da obra.
TOT ZIENS CONTINUA
Caro Ivo
meu Deus que inveja no bom sentido de ter trabalhado e estudado, de ter sido criticado por tão boa gente. Resumo-me a minha digna postura de fã e leitor. Reli esse fim de semana seu Arthur Rimbaud em alexandrinos impecáveis.
Eric
Caramba, Ivo. Sabe a sensação que tenho, como seu amigo, depois de ler essas duas partes de suas Lembranças de Houaiss? De quem estava falando alto demais numa igreja.
precioso!