Tiro do fundo da gaveta um esmaecido 16×11 “De Luxe” Nº 15 – Pautado, adquirido na antiga Casa Cruz do Rio de Janeiro em 1948, cuja capa me faz sorrir ante a pretensiosa inscrição: Cahier de Voyage.
Explico: meu pai achava que meu curso de Neolatinas (na então chamada Faculdade de Filosofia) era incompatível com as esperanças que a cidade nutria em relação à sua descendência; donde ele, farmacêutico, querer um filho médico, advogado ou militar.
Os militares estavam em alta (inclusive em termos salariais) e, para atender aos desígnios paternos, me inscrevi naquele ano nos vestibulares das Escolas Militar, Naval e de Aeronáutica.
Uma oportuna (?) miopia salvou-me dos quartéis, dos conveses ou das pistas de pouso – reprovando-me no exame médico das três. Até o novo ano letivo, lá estavam as sonhadas, as benditas férias no interior de Minas, onde meu pai continuava a manter sua farmácia apostolar, vocacional, beneficente. Parti, levando o caderninho.
Nele encontro, com data de Rio, 8 [1948]: Em grandes preparativos para embarcar. Vence o prazo do livro de Blake e tenho de copiar aqui seus provérbios para terminar a tradução em Minas”. Seguem-se, numa letrinha caprichosa, que fui perdendo ao longo do tempo, os 70 “Provérbios do Inferno”, parte capital de The Marriage of Heaven and Hell, de William Blake. Como cheguei a esse livro? Por essa época, havia descoberto Gide (Trozos escogidos, em espanhol) e comecei a ler tudo dele numa edição de luxo, feita na Suíça, e existente na Biblioteca Nacional. Lá pelas tantas, Gide fala em Blake como sendo a quarta estrela de uma constelação composta por Nietzsche, Dostoiévsky e Browning, e cuja leitura o levou a traduzir Le Marriage du Ciel et de l´Enfer, em 1922. Fui atrás do original, que encontrei na Biblioteca do IPASE (excelente à época, tinha todos os livros da Modern Library) e levei de empréstimo para casa, reformando o pedido várias vezes, pois meti-me na cabeça que o devia traduzir. Comecei a tentar com um ou outro dos provérbios, sem avançar muito, mas, como ia de férias, o recurso foi copiá-los para acabar a tradução em Minas.
Eis minha primeira tentativa de traduzir um livro completo; já havia conseguido traduzir sonetos e até pequenos poemas, do espanhol e do francês, mas nunca um livro inteiro, tarefa que me parecia impossível, principalmente do inglês. E foi mesmo, no caso de Blake, pois ficou apenas no caderno de viagem. O Casamento arrastou-se por muito tempo no namoro. Em fases sucessivas, fui tocando os provérbios até traduzi-los todos. Mas não conseguia vencer a barreira das “visões memoráveis” e o projeto adormeceu na comodidade dos rascunhos. Em 1956, apareceu a tradução de Oswaldino Marques, e achei que Blake tinha caído no “domínio do público” e não valia mais a pena ser tratado como “a quarta estrela” da constelação de Gide. Ao longo do tempo foram aparecendo As Núpcias, O Matrimônio, o Enlace, a Aliança, a União e até – em Portugal, é claro – O Conúbio (do Céu e do Inferno), o que me dava a impressão de que a prosa direta e visionária de Blake estava passando por processos de retocagem gongórica, sofrendo um empolamento bombástico capaz de fazê-la perder seu impacto subversivo e contestador. Portanto, Good-Bye, Blake!
Por força do acaso, recebi em 2007, na pessoa de seu jovem editor Bruno Costa, o convite da Editora Hedra, de S. Paulo, para traduzir o Jerusalém, de William Blake. Desculpei-me, dizendo que, com o 3º volume da Obra Completa de Rimbaud (Correspondência), eu dava por encerrada minha “carreira” de tradutor e ia tratar de fazer um segundo livrinho de versos meus (o primeiro A Caça Virtual e outros poemas havia aparecido em 2001). Como alternativa, aceitei fazer o prefácio para Sagas, uma coleção de contos de Strindberg, autor da minha mais franca predileção. Mas o convívio com a Editora, que esperava ainda lançar uma tradução minha, fez com que, de pura brincadeira, eu lhes propusesse casamento. Sim, seria, desta vez, o Casamento sem rebuços, sem berloques, sem firulas. Blake restituído à sua prosa agressiva, contestatória, modernamente poética. Teríamos o fechar de um ciclo: o primeiro livro que sonhei traduzir seria o último a ser traduzido por mim. E assim foi.
O livro, Blake – O Casamento do Céu e do Inferno, saiu pela Hedra em 2008 e pode ser encontrado nas livrarias. Dele constam os famosos “Provérbios do Inferno” que copiei no caderninho e reproduzo aqui:
PROVÉRBIOS DO INFERNO
Na semeadura aprende, na colheita ensina, no inverno desfruta.
Conduz tua carroça e o arado sobre os ossos dos mortos.
O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria.
A prudência é uma solteirona rica e feia cortejada pela incapacidade.
Quem deseja e não age, procria a pestilência.
O verme perdoa o arado que o cortou.
Enterre-se no rio aquele que ama as águas.
Um tolo não vê a mesma árvore que um sábio vê.
O homem cuja face não brilha jamais se tornará um astro.
A Eternidade está de amores com as produções do tempo.
A abelha diligente não tem tempo para lástimas.
As horas da insensatez são medidas pelo relógio, mas as da sabedoria relógio algum pode marcar.
Todo alimento sadio se consegue sem armadilha ou rede.
Pássaro algum voa alto demais se o faz com as próprias asas,
Um corpo morto não refuta injúrias.
O ato mais sublime consiste em colocar alguém antes de si.
A Loucura é o manto da velhacaria.
A Vergonha é o manto do Orgulho.
As prisões são erguidas com as pedras da Lei e os Bordéis com os tijolos da Religião.
O orgulho do pavão é a glória de Deus.
A luxúria do bode é a generosidade de Deus.
A fúria do leão é a sabedoria de Deus.
A nudez da mulher é a obra de Deus.
O excesso de tristeza, ri; o excesso de alegria, chora.
O rugir dos leões, o uivar dos lobos, o estrondo do mar tempestuoso, e o gládio destruidor são porções de eternidade grandes demais para o olhar humano.
A raposa condena a armadilha, e não a si mesma.
Alegrias fecundam, tristezas procriam.
Que o homem use os despojos do leão e a mulher o tosão das ovelhas.
Ao pássaro o ninho, à aranha a teia, ao homem a amizade.
O tolo egoísta e sorridente & o tolo carrancudo e triste serão ambos considerados sábios se servirem de exemplo.
O que hoje está provado não passava ontem de imaginação.
O rato, o camundongo, a raposa, o coelho espreitam as raízes; o leão, o tigre, o cavalo, o elefante espreitam os frutos.
A cisterna contém: a fonte transborda
Um pensamento enche a imensidade,
Fala sempre o que pensas e os vis te evitarão.
Tudo o que é crível é uma imagem da verdade.
A águia perdeu todo o seu tempo se deixando ensinar pela gralha.
A raposa provê para si, mas Deus provê para o leão.
De manhã, pensa; de dia, age; de tarde, come; de noite, dorme.
Quem permite que o imponhas é porque te conhece.
Assim como o arado obedece a palavras, assim Deus recompensa as preces.
Os tigres da ira são mais sábios que os cavalos da instrução.
Espera veneno das águas paradas.
Só se sabe o que é bastante depois de se saber o que é demais.
Escuta a censura dos tolos! É um privilégio de reis!
Os olhos do fogo, as narinas do ar, a boca da água, a barba da terra.
O fraco em coragem é forte em astúcia.
A macieira nunca pergunta à faia como crescer, nem o leão ao cavalo como abater sua presa.
Quem recebe agradecido produz colheita abundante.
Se outros não tivessem sido tolos, nós é que o seríamos.
A alma do doce deleite jamais será maculada,
Quando vês uma Águia, vês uma porção do Gênio. Ergue tua cabeça!
Como a lagarta escolhe as folhas mais belas para lançar seus ovos, assim o padre lança sua maldição sobre as alegrias mais belas.
Criar uma pequena flor exige o trabalho de séculos.
A blasfêmia, distende; a bênção, afrouxa.
O melhor vinho é o mais velho, a melhor água a mais nova.
As preces não aram! Os louvores não colhem.
As alegrias não riem! As tristezas não choram!
A cabeça Sublime, o coração Pathos, o sexo a Beleza, as mãos e os pés Proporção.
Assim como o ar ao pássaro e o mar ao peixe, seja o desprezo ao desprezível.
O corvo gostaria que tudo fosse preto, a coruja que tudo fosse branco.
Exuberância é Beleza.
Se o leão fosse aconselhado pela raposa, acabaria astuto.
O Progresso constrói estradas retas, mas as estradas tortuosas sem Progresso são os caminhos do Gênio.
Antes matar um infante no berço do que acalentar desejos reprimidos.
Onde o homem falta, a natureza é estéril.
A verdade não deve ser dita para ser apenas compreendida, e não acreditada.
Bastante! Ou demais
Blake é uma grande inspiração para mim, assim como o sr. Ivo.
E outra: Dizem que Deus escreve certo por linhas tortas. Se isso é verdade eu não sei, mas talvez Ele escreva certo por linhas míopes.
Caro Ivo
você me fez gostar de Blake.
Eric
Prezado Ivo, suas publicações são como contos para mim. Me fez gostar ainda mais do Blake!
Simplesmente, sensacional!