Acaba de sair o oitavo número da revista THE PRESIDENT relativo ao trimestre março/abril/ maio de 2012. Especialmente dirigida ao mundo empresarial, trazendo sempre uma entrevista com algum dos nossos grandes empreendedores da indústria ou do comércio, a revista acolhe ainda em suas páginas variadas seções culturais, entre elas a que aborda assuntos referentes aos sentidos humanos: visão, audição, olfato, paladar e tato. Neste número, em olfato, foi publicado o texto abaixo que escrevemos sobre o órgão olfativo de Pinóquio, encimado pela ilustração de Enrico Mazzanti, da primeira edição original italiana do livro de Carlo Collodi.
A ANOSMIA DE PINÓQUIO
Se perguntarem a um senhor de uns 50 anos qual o nariz mais famoso de seu conhecimento, ele certamente responderá que é o de Cyrano de Bergerac, personagem imortalizado na comédia heróica de Edmond Rostand, estreada em Paris em 1897, que permanece em cartaz até hoje, 115 anos depois. A peça relata a história de um narigudo romântico, exímio espadachim, amoroso de sua prima Roxane, que ele conquista para outro cadete gascão, por quem ela estava apaixonada. A petite histoire em torno dessa encenação conta que Constant Coquelin, ator escolhido para interpretar Cyrano, atuou mais de 400 vezes no papel e exigiu 50 modelos diferentes do nariz em cera para escolher o que mais lhe parecia condizente com sua figura na representação do personagem…
Mas se perguntarem às crianças de quaisquer idades, dos 8 aos 80 anos, qual o nariz mais famoso que lhes vem imediatamente à memória, podem estar certos de que a resposta será: o nariz de Pinóquio. E por quê? As aventuras de Pinóquio, uma obra-prima da literatura italiana, supostamente escrita para meninos de escola por Carlo Collodi em 1881 (ou seja há mais de 130 anos, portanto anterior ao Cyrano), relata as atribuladas peraltices de um boneco de madeira, cujo nariz cresce e cresce mais a cada vez em que ele prega uma mentira. Tal narrativa vem desafiando o tempo e os modismos literários, encantou os leitores de praticamente todos os países do mundo e sofreu versões, adaptações, cortes e acréscimos que a desfiguraram sem no entanto conseguir apagar seu encanto inicial latente. O cinema, pelos estúdios de animação de Walt Disney, incumbiu-se de glamourizá-la, de torná-la piegas, afastando, desta forma, a narrativa cada vez mais de seu texto original, Esta terá sido, certamente, a razão principal que me levou a traduzir, mantendo-lhe a integralidade e o estilo, esse livro em que o endiabrado Pinóquio aparece como um menino preguiçoso, aluno relapso, cujo ideal era o de não fazer nada na vida. A grandeza do livro está precisamente no “aprendizado” que leva à transformação do boneco de pau num menino de carne e osso, condição obtida graças à conscientização de que a verdadeira vida pressupõe o trabalho, a dedicação e às vezes até mesmo o sacrifício. O que Pinóquio não consegue, pelo menos a princípio, é perseverar em suas boas intenções: no capítulo XXIX, depois de quase ter sido frito no caldeirão do Pescador verde, ele regressa à casa da Fada e promete que será estudioso e se comportará bem; durante seis meses cumpre sua palavra e chega a ser o melhor aluno da classe, mas… (como diz o livro, há sempre um mas que estraga tudo na vida dos bonecos) o primeiro aceno da aventura o leva ao mais acerbo descaminho. De modo que o livro acaba sendo a história de um herói às avessas que só consegue dar a volta por cima depois de muito aprender com as dificuldades da vida.
Embora o nariz de Pinóquio tenha ficado famoso e faça parte até hoje do inconsciente coletivo, ele na verdade não cheirava; era totalmente destituído de olfato. Mesmo sendo de pau, Pinóquio tem uma visão acuradíssima e enxerga seu criador, Geppetto, a milhas de distância perdido num barquinho no mar; ouve bem, é sensível ao menor som, à distância ou ao seu redor, a ponto de perceber as palavras de um grilo que tenta lhe dar conselhos; seu paladar chega a ser requintado, pois mesmo em momentos de fome, recusa comer favas, de que a princípio não gosta. Mas e o nariz? O sentido do olfato? Talvez para acentuar outra qualidade – a de censor ético –, Collodi não atribui ao nariz de Pinóquio qualquer tipo de sensibilidade que lhe permita distinguir odores: não há fragrâncias de perfumes, cheiros de comida ou mesmo emanações mefíticas que impressionem o órgão olfativo do boneco. Ele parece movido principalmente pelo apetite, está sempre com fome e não se acanha mesmo de roubar para satisfazer seu estômago. Num dos capítulos mais aventurosos do livro (XXVIII), Pinóquio é atraído a uma gruta escavada numa escarpa que vai dar no mar; dentro dela, o Pescador Verde está preparando seu almoço de peixes fritos, mas Pinóquio é atraído a ela não pelo cheiro da fritura e sim pela fumaça que sai dali e onde ele, por isso, espera encontrar fogo para secar as suas vestes. 0 antro é descrito como “uma gruta escura e enfumaçada, no meio da qual frigia uma grande panela de óleo soltando um cheiro de pavio queimado que chegava a tirar a respiração”. Mas Pinóquio nada sente, muito menos agora que está se debatendo nas garras do Pescador que o toma por um peixe raro e vai comê-lo.
Durante a tradução do livro, fiquei me perguntando a razão pela qual o autor, Collodi, omite qualquer capacidade olfativa do nariz de Pinóquio, e exalta os seus demais sentidos, todos aguçados e sempre funcionando mesmo nas piores circunstâncias. A hipótese mais provável é a de que talvez quisesse acentuar outro tipo de sensibilidade desse traço fisionômico que acabou por se tornar a característica da identidade do boneco: um nariz acusador de mentiras. E este achado tornou-se um referencial, um recurso familiar até hoje, quando os pais advertem os filhos que o nariz deles vai crescer se disserem patranhas. Cheguei a insinuar acima que o nariz era uma espécie de “censor ético”, ou seja, que exercia uma censura moral sobre o boneco toda vez que ele mentia. Mas, além disso, esse nariz era também um “sensor físico”, pois lhe permitia avaliar o tamanho da mentira pelo crescimento da bicanca e, no caso da série de mentiras que tentou impingir à Fada (XVIII), cresceu tanto que foram necessários milhares de pica-paus para desbastá-lo até seu tamanho natural.
É possível que esta perda do olfato – que cientificamente atende pelo belo nome de anosmia – tenha vindo de berço, ou seja, ocorrido na própria confecção do boneco, pois lá está que o nariz “mal tinha sido feito, começou a crescer: e cresceu, cresceu, cresceu tanto que em poucos minutos se tornou um narigão que não acabava mais. O pobre Geppetto não se cansava de cortá-lo; mas, quanto mais cortava e encurtava, mais aquele nariz impertinente se encompridava”. Talvez Geppetto, em sua cirurgia escultórica, tenha afetado o epitélio olfativo do boneco e, sem querer, incidido no hipotálamo de tal forma que o tornou um sistema regulador de verdades e mentiras.
hahaha, fantástico!
Divertido. :-)