Nestes tempos de patrulhamento antitabagista e de euforia lacaniana, A Consciência de Zeno poderia ser tachado de romance politicamente incorreto. O personagem principal, além de fazer a apologia do fumo, desanca com feroz ironia o tratamento psicanalítico a que se submete para deixar de fumar. A narrativa conta a história de um fumante vocacional, que empreende sua tentativa de cura talvez mais para desacreditá-la do que para se beneficiar com ela. É um retrato irônico do próprio autor que, pouco antes de falecer em consequência de um estúpido acidente de automóvel, ainda pediu aos parentes, em seu leito de morte, uma “ultima sigaretta”, assegurando-lhes que, daquela vez, realmente seria o seu último cigarro. Mas onde entra ai sua desconfiança em relação à psicanálise, que já se firmava na época da feitura do romance, e pela qual o autor de fato se interessou a ponto de traduzir uma boa parte do compêndio simplificado da monumental A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud?
Svevo era um homem moderno, ansioso de saber, esforçando-se por estar em dia com os avanços de sua época. O romance Senilidade já apresenta análises do personagem Emilio Brentani em seu relacionamento com a amante Angiolina, que são algo mais profundas que as simples digressões naturalistas, prenunciando um avanço em direção dos enfoques psicanalíticos. Porém, Svevo nega a existência desse psiquismo avant la lettre no romance: “Publiquei ‘Senilidade’ em 1898, quando Freud ainda não existia, ou se existia chamava-se Charcot” (referência ao grande neurologista francês, o revelador da histeria, de quem Freud foi discípulo). Mas já em A Consciência de Zeno, admite ter aí “duas ou três ideias que foram tomadas diretamente de Freud”. Se havia urna admiração pela obra do “xamã de Viena” a ponto de se apropriar de algumas ideias ou teorias dele para embasar seu romance, o que teria levado Svevo a desacreditar da psicanálise ao longo do livro e a começar o último capítulo dizendo: “Acabei com a psicoanálise. Depois de havê-ia praticado assiduamente durante três meses inteiros, sinto-me pior do que a principio”?
Mas houve também um fato pessoal que contribuiu para essa leitura, envolvendo um escândalo mantido em segredo na família de Svevo, ou melhor, na de sua muIher, Livia Veneziani. Seu cunhado Bruno, o mais novo dos irmãos desta, desde cedo apresentava sinais de “exaltação sensorial”, expressando-se com abundância de gestos e trejeitos, que !he valeram o apelido de ”scimmiotto” (o macaquinho). Considerado esquizofrênico pela família, foi levado aos 18 anos para Viena e entregue aos cuidados de Freud, que o submeteu a um tratamento que levou anos, acabando por dispensá-lo como incurável. Freud despachou-o dizendo: “Posso curar quem deseja a cura, mas não quem a rejeita”. Sabe-se hoje, pelas anotações do dr. Edoardo Weiss – o único médico psicanalista de Trieste –, que o caso de Bruno era “homossexualismo irreversível”, agravado mais tarde pelo uso de drogas.
O impacto da fracassada cura do cunhado, cercada pela tendência de abafamento da época, provocou certamente em Svevo um desencanto pela eficácia da psicanálise, e ele próprio praticou-a ao longo da vida, a sós, em desacordo com os ditames da ciência. Contudo, seria muito acanhado pensar que o livro esteja balizado apenas entre o vício do fumo e a falência da psicanálise. O que mais conta nele será talvez o humor cáustico usado pelo autor-personagem para se auto-analisar e penetrar com intuição quase científica nas motivações alheias. Além de uma fabulaçâo múltipla e quase sempre inesperada, culminando com uma hecatombe que nos faz pensar no caráter premonitório de narrativa. Um humor perpassa todo o livro e lembra os melhores wittcisms machadianos (“Quanto mais se arregalam os olhos, menos nitidamente se vêem as coisas”. “Uma coisa definitiva é sempre clara, de vez que dissociada do tempo.” “A liberdade completa consiste em poder fazer aquilo que se quer desde que se possa fazer também alguma coisa de que se goste menos.”) — comparação que não se deve estranhar, já que ambos beberam na fonte comum do velho Sterne.
[Publicado na revista Bravo! de abril 2002]
Nota : Há dois outros artigos sobre Svevo aqui no blog : « Ettore Schmitz, aliás Italo Svevo – um resumo cronológico » (28.09.2010) e « Ainda Svevo – A Consciência de Zeno » (08.10.2010)
[Ainda não li: a reprodução deste artigo, escrito em 2002, vem a propósito do lançamento de “O livro negro da psicanálise”, de Catherine Meyer, que, segundo a publicidade, “incendiou a França quando foi publicado em 2005” (edição Civilização Brasileira; tradução de Maria Beatriz de Medina e Simone Perelson). Continuamos fieis ao grande Sigmund — o homem que tirou uma ciência do nada — mas não custa arriscar uma olhadela sveviana no livro só para conferir. INB]
Caro Ivo
a única coisa que li de Freud foi O Mal estar da civilização, mas como todo mundo lêu, nao vale.
com apreço
Eric
Caro Ivo
a única coisa que li de Freud foi O Mal estar da civilização, mas como todo mundo lêu, não vale.
com apreço
Eric
Ainda não terminei de ler A CONSCIÊNCIA DE ZENO, mas não posso adiar meu comentário. Resolvi comprar o livro por tê-lo visto citado não sei mais onde. Não sabia nada de Svevo e, ao longo da leitura, fui me lembrando de Sterne, em UMA VIAGEM SENTIMENTAL. Decidi pesquisar na Internet e tive a sorte de encontrar A GAVETA DO IVO. Quero agradecer e celebrar estas duas descobertas.