Uma preocupação vem me assaltando ultimamente: que será de meus livros? quem ficará com eles? Serão vendidos a peso, doados a uma instituição de caridade, conservados por algum parente que goste de leitura?
Escrevo num quarto calafetado de livros: pelas quatro paredes, eles vão do rodapé ao teto e se espalham ainda pela cimeira da porta. Dispostos nas estantes sem nenhum critério, às vezes tenho dificuldade de encontrar algum, mas posso dizer que conheço a maioria pela lombada, sou capaz de “sentir” a presença de um deles mesmo quando espremido nas prateleiras mais altas. Já sonhei uma vez que as estantes se desmoronaram sobre mim, soterrando-me nos livros, por isto não ouso “pescar” nenhum do alto, puxando-o pela lombada. Há alguns que estão comigo há mais de cinco décadas, tenho certamente outros ainda mais antigos. Quantas lembranças me trazem quando reencontro um desses velhos companheiros e o tomo nas mãos para abri-lo ao acaso: este foi Fulano que me deu, aquele outro ganhei num concurso, o Casimiro tem uma dedicatória de meu pai, simples, direta, “Ao Ivo Salve 25-12-44 Oferenda s/ pae, Ormindo”, presente de aniversário dos meus 15 anos! Amo-os, é claro, como se fossem filhos de papel, os filhos de sangue que não tive. Recentemente um jornal de São Paulo me pediu um poema de Natal e escrevi:
PAPAI, NOEL
Pelo Natal eu só ganhava livros
Eu pedia carrinhos de brinquedo
e ele me dava livros no Natal
Durante o ano eu lhe pedia livros
que ele me dava mesmo sem pedir
Anos sem que eu pudesse reverter
o sentido do dar e receber
Eu sonhava lhe dar uma alegria
algo de mim que o fosse contentar
Ele sonhava que eu gerasse um filho
e nem meus livros eu lhe pude dar.
Eu quis dizer, neste verso final, que não cheguei a dar a meu pai a alegria de ver publicados os meus próprios livros, pois ele morreu antes que a Caça Virtual e meus outros opúsculos viessem a lume. Mas sabia das minhas traduções e ficava feliz quando via meu nome nos jornais.
Outra dedicatória, ainda mais sucinta, e dessa mesma data, dizia: “Do Pedro, ao Ivo. Rio, 25/12/44”. O ofertante, no caso, era meu tio materno, Pedro Pimentel, que morou por uns tempos em nossa casa na rua Pontes Correa. Autodidata, escrevia num português correto, estribado em duas ou três gramáticas e dicionários que integravam sua pequena biblioteca pessoal. Era funcionário graduado do Lloyd Brasileiro e redigia longos relatórios sobre as viagens de inspeção que fazia pelos portos do país. Numa delas, a mais demorada, voltou noivo de uma cearense, e como devia em seguida fazer outra viagem, dessa vez para o Sul do Brasil, pediu à minha mãe que fosse a Fortaleza “resgatar” a noiva. Acompanhei minha mãe nessa viagem e acabamos nos casando (por procuração) com a moça que trouxemos conosco, depois de uma cerimônia privada, certamente para satisfação da família cearense que não podia vir ao Rio. Nos tempos de solteiro que passou conosco, foi meu grande inspirador e roommate (adoro esta palavra), sabatinando-me com frequência sobre questões de português, ortografia, colocação de pronomes, significado de palavras, etc. Era poeta, compunha sonetos bem rimados e metrificados, e foi com ele que aprendi métrica, a escandir versos e a gostar realmente de poesia. Tínhamos um caderno-álbum em que transcrevíamos os poemas que julgávamos “de primeira classe”, e certa vez me censurou por eu haver acolhido uns versos que ele considerava “inferiores”. Agastado com a restrição ao meu gosto literário, arranquei num rompante a folha do álbum, entreguei-o a ele e nunca mais falamos no assunto. Eu o admirava profundamente pela aura de suas viagens, pelas histórias que contava de sua experiência marítima; tinha sido oficial da marinha mercante e conhecera vários portos estrangeiros. Em Nova York visitou a Coney Island e almoçou no famoso restaurante do Jack Dempsey. Garantia, para mim incrédulo em meu incipiente inglês, que os americanos diziam “uóra” em vez de “water”. Vestia ternos de linho Taylor 120 e tinha sapatos feitos sob medida, que guardava em alvas sacolas de flanela; havia um par que me fascinava, de duas cores, marrom e branco, cuja imponência era acentuada pela robustez do solado. Aos sábados entregava-se a uma longa rotina dedicada aos cuidados corporais: cortava as unhas, passava-lhes talco e as friccionava com uma escova própria, de camurça, que ele guardava num estojo certamente adquirido no exterior, no qual havia ainda uma tesourinha pontuda que servia para aparar as cerdas nasais e um minúsculo pincel com que enegrecia o bigode. Engraxava os sapatos e se preparava para sair à noite, quando ia “furar cartão” (dançar) nas boates da avenida Rio Branco. Era a única ocasião em que não o acompanhávamos, pois costumávamos passear juntos na baratinha descapotável que ele havia adquirido e na qual só carregava duas pessoas de cada vez, para não afetar as molas de suspensão. Nós, mais novos, ficávamos siderados quando ele e minha mãe se punham a lembrar fatos de sua juventude no Herval. “Cedinha, você lembra quando o Ti´Tatão, etc” e ela retrucava com outro caso desse tempo, e ambos diziam: “Lá se vão uns trinta anos!” Meus irmãos se entreolhavam, impossível alguém se lembrar do que havia acontecido a trinta anos passados. Ele e eu trocávamos impressões de leitura e costumávamos declamar juntos algum longo poema, o livro revezando em nossas mãos. De tanto lermos os “Poemas” de Menotti del Picchia, já sabíamos de cor quase todo o “Juca Mulato” e “O beijo de Arlequim”. Um dia, fizemos um desafio mútuo: ver quem escrevia o melhor soneto sobre “Vida”. Passados uns dias, depois do jantar, ele tirou do bolso um papel e leu sua composição que falava de nascimento, infância, juventude, maturidade e morte. Dei um sorriso sardônico, com ares de quem já estava saboreando as batatas da vitória. E declamei o meu bestialógico, onde as presenças de Augusto dos Anjos e de Raul de Leoni eram mais que flagrantes, atropeladas por imprecisas noções de biologia:
A vida é o resultante grau da orgânica
Evolução da célula. É energia
Que mais se apura, dia para dia,
Desde os tempos remotos da Era Oceânica.
É movimento, é força que se cria;
De potencial transforma-se em dinâmica.
Evolveu-se da Micro à Pterodâmica
Espécie em fecunda embriogenia.
(etc)
Meu tio conseguiu disfarçar sua perplexidade diante daquele despautério. Pegou o papel, leu-o com atenção, elogiou o emprego de “evolver” em lugar de “evoluir”, que o Cândido de Figueiredo (em quem costumava estribar-se para a elucidação de dúvidas gramaticais) considerava um galicismo. Sem dizer o que achava, falou que tinha uma dúvida: Não seria pterodáctila em vez de pterodâmica? Finquei pé no pterodâmica, sem o que lá se iria embora a minha rima rica (achava eu, rara e riquíssima). O Lello Universal Ilustrado de sua estante particular não me abonava o termo, nem sequer trazia o pterodáctilo proposto. Meu professor de biologia é quem resolveria o caso. No dia seguinte, fui à aula (noturna, que eu costumava matar) e submeti meu mostrengo ao professor, a quem já havia mostrado outros escritos meus. “Do ponto de vista científico, não faz sentido; é confuso e incongruente. Mas os versos são bons e você deve insistir. Na sua idade, seria melhor escrever poemas de amor”. Confessei ao tio o meu fracasso científico e minha vitória poética. Ele me incentivou dizendo que de fato eu seria um grande poeta. Ele, o meu guia, acreditava em mim, achava que eu podia caminhar sozinho. Fiquei determinado a não decepcioná-lo no futuro. Quando nos deixou para montar a própria casa, praticamente na mesma rua, senti um vazio indescritível: lá se foram as gramáticas, os sapatos ensacados, as tesourinhas de unha, além do encantamento mútuo com a leitura de nossas produções. Lá se fora o amigo, o companheiro, o roommate, meu ídolo, meu mestre. Ali tão perto e já tão distante, como se entre nós o tempo tivesse colocado uma barreira intransponível.
Vejam: abre-se um livro e de sua dedicatória, amarelecida e quase desfeita pela idade, surgem tantas lembranças, flashes-back de uma vida, viagem de regresso ao tempo nunca perdido da juventude. Então, digam-me lá: o que fazer dos meus livros já que me pesa tanto ter que deixá-los sem destino, sem definição? Estive pensando em várias soluções. Durante mais de trinta anos andei colecionando livros relativos a Rimbaud e à sua obra: edições integrais, biografias, ensaios, dicionários, revistas especializadas, etc. No fim do ano passado, quando editei o terceiro e último volume de minha tradução de sua obra completa, percebi que estava diante de um acervo bastante expressivo, não só quanto ao valor artístico mas igualmente quanto ao material, pois nele se incluem algumas obras raras, primeiras edições, livros fac-similados, etc. Depois de considerar cumprida a incumbência a que me autodeterminei de colocar ao alcance do leitor brasileiro tudo o que o gênio de Charleville havia escrito, a visão diária desses 120 volumes à minha frente na estante acaba sendo um pequeno suplício, pois me faz lembrar cada um dos momentos em que estive em combate ferrado com o Anjo. Resolvi, pois, doá-los a Biblioteca do Centro Cultural Banco do Brasil, onde eles poderiam continuar formando uma coleção especializada, e também ao alcance de minha vista em caso de me bater uma (inexplicável) saudade repentina.
Excelente ideia. Mas, e os outros? Que destino darei, por exemplo, àquele magnífico “Les Fleurs du Mal” da coleção Pastels, ilustrado por Jacques Roubille, Éditions du Panthéon, do qual só foram impressos 500 exemplares “sur pur fil Johannot” (o meu é o nº 318), em MCMXLVI, hoje considerado obra rara e fora do comércio? Comprei-o com o meu primeiro salário, na livraria francesa que havia no térreo da Faculdade de Filosofia, onde eu cursava Línguas Neolatinas, ali onde é hoje a Maison de France. Preciosidade que eu guardava numa caixa de charutos e em cujas páginas comecei a acumular algumas notas graúdas, talvez para novas e temerárias aquisições.
Assim como ocorreu em relação a Rimbaud, também quando organizei em 1995 para a Nova Aguilar o volume ”Poesia e Prosa”, de Charles Baudelaire, acabei formando uma coleção com as dezenas de livros que tive de ler para selecionar o material existente em português, além de várias edições francesas que eu já tinha ou que vim a adquirir. Lá estão eles ocupando toda uma prateleira da estante. Também os livros de e sobre Rilke, arrecadados para uma edição quase completa de sua obra, que a Nova Aguilar pretendia fazer logo depois do Baudelaire; são ainda 34 volumes, mesmo depois da devolução de cerca de mais 20, emprestados pelo Dr. Rischbieter. Mais em cima, a minha paixão da juventude, o romantíssimo Edmond Rostand, com todas as belas edições do “Cyrano de Bergerac” e do “L´Aiglon”, inclusive a famosa edição da Impremerie Nationale de 1983, sem falar na raríssima biografia escrita por sua mulher, Rosemonde Gérard, em 1935, e com uma dedicatória da própria “pour Jacques Chabanne, très sympathiquement” (peça de colecionador, de 1935). Falar de Rostand seria falar de todos os sonhos, vitórias e decepções de amor que sagraram os meus anos juvenis, arroubos, versos ardentes, lágrimas contidas, coração convulso…
Da parte superior da estante, ocupando mais de duas prateleiras, Shakespeare me observa através de ricas edições de suas obras completas e uma porção de traduções em várias línguas. Não, não o esqueci, foi meu primeiro cometimento, minha “glória” maior de quando o vi (em minha tradução) sob o formato de imponente coffee-table book, ilustrado por Isolda Hermes da Fonseca e editado por Carlos Lacerda, a quem eu assessorava na redação da Enciclopédia Século XX. Que será destes tesouros sentimentais, desses pedaços líricos de mim? Talvez o melhor será deixá-los também para o Banco do Brasil, onde trabalhei por 37 anos, para o seu CCBB cuja biblioteca saberá guardá-los com cuidado, ainda que não lhes possa dispensar o mesmo carinho que lhes dediquei. Mas, você, o que faria em meu lugar?
Primeiro abri as imagens em outra página e tentei olhar os detalhes ampliados. Sim, confesso. Sou uma bisbilhoteira quando se trata de livros.
Pensei na Biblioteca Nacional, mas por não conhecer a instituição e ter lido sobre a falta de recurso, a sua idéia do Banco do Brasil me parece a mais razoável.
Em seu lugar, caro Ivo? Impossível. Mal traduzi dois artigos de Jean Pouillon e já estou todo prosa! Em seu lugar não posso pensar. Nem faço idéia, não dá pra rimar – olha que coisa fraquinha.
No meu lugar, caro Ivo, irascível, quis queimar, doar, rasgar, armar um jogo de desova. Em meu lugar dá pra pensar. Mas ainda assim não vem a calhar – tudo ainda meio menininha.
O ideal mesmo seria doar para uma biblioteca bem organizada, que facilitasse à consulta do público. Mas infelizmente isso é algo difícil de encontrar no Brasil.
Como algumas das coleções que o senhor informou foram feitas em torno de suas traduções, seria interessante criar algo como “Biblioteca do tradutor”, ou “Biblioteca de tradução Ivo Barroso”. Seria uma bela homenagem ao seu empenho em compilar essas obras e aos livros!
Caro Ivo
Banco do Brasil.
abs
Eric
Prezado Ivo:
Penso que no CCBB estarão em muito boas mãos.
Permita-me transcrever aqui um poema que escrevi pensando em meu pai, mas também em tantos outros como ele ( e eu mesmo).
Fidelidade
p/ um amante dos livros
Amoroso
pleno de prazer
visitas os teus velhos livros.
De dorso em dorso passeias
e relembras.
Teus longos dedos
trêmulos de pudor e de desejo
mal roçam as suas peles crespas.
Se entreabertos
eles te trazem o universo
o cheiro
das entranhas do universo.
Ansioso, terno,
as páginas penetras
cuidando serem virgens.
E elas
em sua calma complacência
uma vez mais
te acolhem.
Desejo longa vida a V. e a seus livros.
Henrique Chaudon.
Eu tenho uma modesta biblioteca, proporcional à minha idade. Na verdade, boa parte dela é composta por livros que são meus pais e meus avôs de papel. Numa encadernação especial, com o nome do meu avô, “As flores das flores do mal”, Guilherme de Almeida traduzindo Baudelaire, com a inscrição nº 771 na contagem da edição limitada, ano 1944. É um tesouro para mim, não tanto pelo conteúdo, não tanto por Baudelaire, quanto pelo amarelado e gasto de familiar que há impregnado em cada página. Ali está meu avô, que nem conheci, mas que parece exercer em mim uma influência maior do que todos os viventes com quem compartilho os dias. Em outros está meu pai, que embora esteja bem vivo para compartilhar meus dias, parece ter mais força e poder através destes livros sublinhados que deixou sob meus cuidados. E quando, chegando numa idade em que os homens costumam encaminhar-se para os rumos mais definitivos do futuro, penso que possivelmente não terei filhos, bate em mim alguma tristeza, alguma ausência, pois que não poderei eu também um dia ser nem pai nem avô de papel, como estes que preenchem minha estante? A herança afetiva dos livros só pode caber a um filho, ou a um filho do filho, a ainda a um filho do filho do filho. Talvez por isso ter filhos seja tão importante. Ainda tão jovem, já penso no que será dos meus livros, e já não encontro solução. De qualquer modo, o tempo há de herdá-los – e o tempo dedica sempre o mesmo cuidado a tudo.
O CCBB-Rio é uma boa ideia. Ela está fechada para reforma e vai ficar muito bonita quando reabrir. Posso garantir que é uma das melhores bibliotecas do país. Também tem a Casa de Rui Barbosa, que já guarda um precioso material de alguns escritores brasileiros. A Biblioteca Nacional não me parece uma boa ideia. Parece que eles vão ter até que construir um novo prédio para comportar alguns setores específicos da instituição.
Você sabe que, como brasileiro, meu único medo é que essas lindas bibliotecas acabem indo para fora do país. As instuições estrangeiras vivem oferecendo um bom valor por elas.
“Que será destes tesouros sentimentais, desses pedaços líricos de mim?” perguntas.
Nada! Qualquer destino que se dê ao papel, teus tesouros sentimentais, teus pedaços líricos irão para a tumba junto com os outros pedaços teus… não é reconfortante? Ninguém mais viverá a tua vida, ninguém mais sentirá os teus sentimentos. Nesse sentido, és imortal!
Sem dúvida, eu doaria para a biblioteca do CCBB, de longe a mais bem aparelhada do Rio de Janeiro.
Ivo, querido, foi um prazer ter conhecido este seu blog; e, de alguma forma, interagir com você.
Sobre a pergunta, livros, apesar de tudo, são papéis pintados. As impressões, os prazeres, a felicidade mesma que deles sua alma e seu intelecto extraíram ao longo dos anos é o que conta. E tudo isso estará guardado e vivo em você até o último instante. Isto é o que vale. Depois, são papéis, apenas papéis que se juntarão a toda vaidade e somarão à excrescência das coisas do mundo. Na verdade, respondendo-lhe isso, de certa forma eu respondo a mim mesmo. Porque já tive semelhante aflição com relação a meus modestos livros.
Abraços!