Em 1957, quando uma buliçosa agitação se apoderava de nossos meios literários (principalmente nos redutos poéticos), Mário Faustino, o crítico de maior lucidez e influência entre os jovens escritores de então, publicou, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, um longo ensaio sobre Stéphane Mallarmé, que permanece até hoje o texto, ao mesmo tempo mais “seletivo” e mais abrangente, que se escreveu entre nós sobre o grande simbolista francês do século XIX. Mallarmé – dizia Faustino a certa altura – “é uma torre absoluta e solitária, um animal sagrado e estéril, sem descendência mas indispensável” — fórmula admiravelmente sintética para dizer que a personalidade poética de Mallarmé era irreproduzível, que havia criado um estilo que cabia exclusivamente a si próprio e cujas imitações seriam portanto inúteis e/ou despropositadas. Um leitor, amigo das conclusões apressadas, poderia assumir que Mallarmé é uma pedra (ou antes um monumento) incontornável no meio do caminho da literatura.
Descrito por um de seus contemporâneos (Catulle Mendès) como criatura frágil, enfermiça, de expressão ao mesmo tempo severa e dolorosa, escondido atrás de volumosos bigodes, esse modesto e eruditíssimo professor de inglês, que viveu boa parte de seu tempo na província, conseguiu cativar a amizade e a admiração dos escritores mais representativos de seu tempo, encantados com sua conversação transcendente e suas concepções peculiares, em especial a respeito de poesia. Vivendo em plena difusão do ensino secundário, quando o conhecimento das artes começava a permear as classes não intelectualizadas, Mallarmé professava que a poesia era um ato de sacrifício, de entrega absoluta em busca do inexprimível e que a função do poeta era integrar-se no Nada. Tal arte seria, pois, destinada aos membros eleitos da “tribo”, não podendo ser compreendida pela mediocridade dominante. Daí seu objetivo de criar uma linguagem poética, em que as palavras comuns fossem substituídas por vocábulos eruditos, a construção da frase obedecesse a reminiscências latinas e o sentido do verso se revestisse de dificuldades, empecilhos ou “máscaras” que o tornassem impenetrável à primeira leitura.
No entanto, diversamente da maioria dos poetas de hoje, dos quais não se consegue guardar um verso que seja, Mallarmé foi criador de alguns dos mais emblemáticos momentos da literatura francesa (“La chair est triste, hélas!, et j´ai lu tous les livres”, “Aboli bibelot d´inanité sonore”, “Solitude, récif, étoile”, “Je suis hanté. L´azur! l´Azur! l´Azur! l´Azur!”, “Le vierge, le vivace et le bel aujourd´hui”, “Tel qu´en Lui-même enfin l´éternité le change”, “Donner un sens plus pur aux mots de la tribu”, “Ces nymphes, je les veux perpetuer”, “Un coup de dés jamais n´abolira le hazard”, etc.), tornando-se um recordista do fragmentário, da pedra-de-toque, da gema preciosa, do ônix, do ptyx. Todos lhe reconheceram o valor e a alta aspiração poética, a começar por Verlaine, quem primeiro divulgou seus trabalhos no opúsculo Les Poètes maudits (1884), ao lado de Rimbaud e Tristan Corbière. Mas nenhum outro poeta, francês ou não, conseguiu emulá-lo: seu único discípulo confesso, Paul Valéry, nunca chegou a ser mais que faiscador da pureza verbal preconizada pelo mestre.
O conjunto da obra nada volumosa de Stéphane Mallarmé permaneceu um reduto fechado, propiciando as mais abstrusas interpretações, como se, para lê-lo, fosse necessário desbravar hieróglifos poéticos ou manuscritos cabalísticos. Das inumeráveis tentativas de “decodificação” desses versos resultava não raro a conclusão de que o “sentido” de um poema estava muito aquém do arsenal estilístico utilizado para ocultá-lo. A mania de “interpretar” essa carpintaria poética em busca de um “significado”, mediante a análise rigorosa de cada uma de suas palavras, a fim de chegar ao ur-vocábulo que o vate poderia ter em mente, fez imprimir vastidões de páginas não só na França e países culturalmente subsidiários, mas, em certa época, igualmente na América. Os professores universitários Wallace Fowlie e Graham Robb, especialistas em literatura francesa do Simbolismo, escreveram tratados em que procuraram unlock (revelar, decriptar) cada um dos poemas de Mallarmé. O leitor masoquista se rejubilará com as artimanhas e prestidigitações que ambos empregam à procura dos significados de “ptyx”, “Paphos”, etc. O curioso é que ambos concluem que o pretenso “sentido” de cada poema permanece muito aquém de sua forma poética, donde ser desnecessário compreender o que “se quis dizer”, sendo preferível desfrutar simplesmente “aquilo que foi dito”.
Sem chegar a constituir um “culto” entre nós, Mallarmé vem sendo no entanto traduzido desde o Simbolismo (Alphonsus de Guimaraens, Batista Cepelos), passando, entre outros, por Luís Martins, Dante Milano e José Lino Grünewald. A meio caminho, Guilherme de Almeida deixou duas exemplares traduções de “Aparição” e “Brisa Marinha”. Mas foi em 1975 que Mallarmé adquiriu definitiva cidadania poética entre nós com o lançamento do livro homônimo em que nos são apresentados 24 poemas (depois ampliados para 36), insuperavelmente traduzidos por Augusto de Campos, e mais uma tradução tríplice (de Décio Pignatari) do L´Après Midi d´un Faune, finalizando com O Lance de Dados na versão de Haroldo. O livro traz um estudo introdutório e notas esclarecedoras que mapeiam definitivamente a importância literária de Mallarmé.
Embora não sejam frequentes em português estudos sobre a poesia de Mallarmé (Otto Maria Carpeaux escreveu em 1942 um definitivo ensaio sobre a “Situação de Mallarmé”, por ocasião do centenário de nascimento do poeta), vez por outra surgem entre nós referências laudatórias meramente circunstanciais. Mas, recentemente, dois tributos literários, à maneira de “Le tombeau de…”, estão se impondo à leitura pela seriedade e competência de seus autores: “Os Anos de Exílio do Jovem Mallarmé”, do prof. Joaquim Brasil Fontes, e “Brinde Fúnebre e outros poemas”, do poeta e tradutor Júlio Castañon Guimarães. O primeiro nos apresenta muito mais do que uma “visita guiada”, o mergulho na angustiosa preparação do poeta para o grande livro do Nada, através da análise da correspondência com seus íntimos nos anos em que vegetou como professor de inglês na no interior da França. Há incursões reiteradas pelo terreno das interpretações, com base em estudos consagrados, mas principalmente valendo-se da espontaneidade ou do oportunismo dessas cartas de/para os amigos do poeta. O trabalho revela um verdadeiro culto da poesia mallarmeana e quase insiste na necessidade do conhecimento de todos esses detalhes de bastidores para a sua melhor apreciação. Seus comentários são amparados em frequentes citações de versos, que aparecem traduzidos em “prosa poética”. Para inteira satisfação do leitor, há um adendo com 13 poemas traduzidos (entre os quais, Les Fleurs e La chevelure vol d´une flamme à l´extrême, não antes compendiados). O conhecimento do autor não se limita ao “anedotário”, aliás volumoso, do poeta; a análise se estende a aspectos de sua sensibilidade ímpar, suas angústias íntimas, seus amores e mesmo às suas atividades esportivas. Trabalho de especialista (da “tribo”), é leitura imprescindível principalmente para os que se iniciam no rito mallarmaico.
“Brinde Fúnebre e outros poemas”, de Júlio Castañon Guimarães, é uma seleta de sete poemas em novas traduções, algumas das quais não anteriormente antologiadas (Soupir, Hommage à Puvis de Chavannes e Épouser la notion). O autor, conhecido por sua competência intelectual, complementa suas traduções poéticas com uma série de Anotações em que afirma não ser seu intuito “decifrar” os poemas e sim apresentar “apenas elementos informativos mínimos” que lhe permitam justificar as escolhas vocabulares ou de sentido que determinaram sua tradução. Seu Virgílio, (sua, no caso), foi Émilie Noulet, uma das maiores exegetas francesas da obra de Mallarmé. Mas Castañon a confronta com outras fontes e, em determinado momento, chega mesmo a contestar certas hipóteses de H. G. Cohn. Tendo sido sua a primeira tradução brasileira de “Prose”, o singular (até no título) poema de Mallarmé, considerado seu momento culminante na busca do hermetismo, Castañon não hesita em confrontá-la com duas outras, posteriores, analisando as opções de cada uma. No final desse texto desnorteante aparecem dois personagens, Anastásio e Pulquéria, para os quais o tradutor encontrou as designações precisas ao relacioná-los com duas entidades bizantinas. O livro é uma espécie de visita à oficina do ourives, em que o tradutor põe à mostra o seu instrumental de trabalho. Lição para os tradutores conscientes.
Com os já citados e mais esses dois importantes trabalhos, parece que a obra de Mallarmé pode dispensar novas traduções em português, mesmo porque, segundo Alain-Fournier, “Mallarmé é intraduzível até em francês”.
(Fonte: Cultura – O Estado de São Paulo – 20.01.2008 – Mallarmé, a eternidade em si mesmo)
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GUILHERME/MALLARMÉ
Guilherme de Almeida, entrou para a Academia Brasileira de Letras em 1930 e elegeu-se Príncipe dos Poetas Brasileiros em 1958, mas, apesar disso (ou além disso) foi poeta estimadíssimo em seu tempo e um dos nossos grandes tradutores de poesia até hoje. De repertório eclético, traduziu desde as frivolidades amorosas de Paul Géraldy (Toi et moi = Eu e você), passando pelas contrafações helênicas de Pierre Louÿs (As canções de Bilitis) até poetas de maior extensão lírica tais como Baudelaire e Mallarmé. Por seu livro Poetas de França — publicado em 1936 e com uma 2ª edição belíssima da Companhia Editora Nacional em 1944 – [vale a pena garimpar nos sebos! e, a propósito, por quê a Casa Guilherme de Almeida não providencia esta oportuna reedição?] — desfilam desde bardos do séc. XV com François Villon até um semi-desconhecido poeta-cientista Luc Durtain, que visitou o Brasil nos anos ´30 e escreveu um poema laudatório sobre a cidade de São Paulo. Mas entre um extremo e outro, temos alguns achados preciosos: Baudelaire, Mallarmé, Verlaine — este último comparecendo com dez poemas, entre os quais La lune blanche (O luar grisalho), em que Guilherme utiliza, com perícia e requinte, a rima quebrada:
O luar grisalho La lune blanche
Brilha no bosque; Luit dans les bois;
De cada galho De chaque branche
Parte uma voz que Part une voix
Roça a ramada… Sous la ramée…
Ó bem amada. O bien-aimée…
Mas onde podemos realmente avaliar seus dotes de tradutor é nos vinte e um poemas que recolheu sob o título de Flores das ‘Flores do mal’ de Baudelaire, que mereceram o elogio de Manuel Bandeira, o mestre dos mestres do gênero. Embora alguns críticos censurem nessas transposições o vezo romântico do poeta paulista e apontem certas mudanças de tom decorrentes de uma inadequada escolha de termos que não se ajustam à linguagem baudelairiana – as “flores” de Guilherme são das mais legíveis traduções de Baudelaire, consagradas pelos leitores brasileiros. De Mallarmé, constam do livro dois poemas, Brisa Marinha e Aparição, com que, ao transcrevê-los aqui, desejo brindar-lhes a título de ilustração deste artigo:
BRISA MARINHA
A carne é triste, e eu li todos os livros, todos.
Fugir! Eu sei que há pássaros já doudos
Por se ver entre os céus e a espuma do alto-mar!
Nada, nem os jardins refletidos no olhar,
Retêm o meu olhar que já no mar se aninha,
Nem, ó noite, a luz da lâmpada sozinha
Sobre o papel vazio, intangível de brilho,
E nem a mulher moça amamentando o filho.
Hei de partir! Vapor de mastros oscilantes
Ergue a âncora para regiões extravagantes!
Um Tédio desolado, entre anseios intensos,
Ainda acredita no supremo adeus dos lenços!
E esses mastros, talvez, cheios de maus presságios,
São dos que um vento faz vergar sobre os naufrágios
Sem ilhas férteis e sem mastros de veleiros…
Mas, ó minha alma, ouve a canção dos marinheiros!
APARIÇÃO
A lua estava triste. Arcanjos sonhadores
Em pranto, o arco nas mãos, no sossego das flores
Aéreas, vinham tirar de evanescentes violas
Alvos ais resvalando entre o azul das corolas.
— Era o dia feliz de teu primeiro beijo.
Para me torturar, meu sonho, meu desejo
Embriagavam-se bem do perfume de queixa
Que mesmo sem remorso e sem motivo deixa,
No coração que o colhe, a colheita de um sonho.
Eu ia à toa, o olhar no chão velho e tristonho,
Quando trazendo nos cabelos um sol lindo,
Na alameda e na tarde apareceste rindo.
E eu julguei ver, com seu chapéu de luz, a fada
Que nos meus sonhos bons de criança mimada
Sempre deixou nevar dentre as mãos mal fechadas
Punhados celestiais de estrelas perfumadas.
Caro Ivo
mallarmé é mallarmé depois vem o resto.
abs
Eric
Caríssimo Ivo,
aí está, nesse seu texto, o que eu dizia, num de meus e-mails, sobre o prazer requintadíssimo que é esse de ler o que v. escreve. Suas coisas parece que têm um verniz de que apenas Cremona e Stradivarius detinham o segredo. Só alguém da escola de Visconti pra fazer um documentário a seu respeito.