Em 1994, ano de sua morte, Elias Canetti confiou à Biblioteca de Zurique uma volumosa quantidade de inéditos com a condição de que suas memórias, constantes do acervo, só deveriam ser publicadas 30 anos depois, ou seja, a partir de 2024. Contudo, em 2005, ano do centenário de nascimento do autor, sua filha Anna decidiu divulgar uma parte delas (no original alemão, Party im Blitz), em que o tempestuoso relacionamento de Canetti com a escritora irlandesa Iris Murdoch se apresenta minuciosamente detalhado. Anna achou necessária essa publicação antecipada em vista da grande celeuma que se criara em torno daquele affaire sentimental, porquanto Iris havia, em seus romances, esboçado um retrato de Canetti caracterizando-o como “misógino prepotente”. Logo em seguida, aparecerem as Aufzeichnungen für Marie-Louise (“Apontamentos para Marie-Louise” [von Motesiczky, pintora austríaca, autora de um retrato famoso seu, outra de suas amantes com quem fugiu em 1939 para a Inglaterra]). Agora foi a vez de Über die Dichter (“Sobre os escritores”), uma coletânea de aforismos, notas de leitura e conferências, organizada por Penka Angelowa e Petter Von Matt, que vem propiciar aos leitores um novo passeio por esses importantes segmentos da abrangência literária de Canetti.
É exaustivo enunciar os vários segmentos dessa abrangência: Canetti consagrou-se principalmente por seu romance “Auto-de-Fé”, mas como, de acordo com seu biógrafo Sven Hanuschek, se rebelasse contra “todo tipo de especialização”, recusou-se a seguir uma carreira de romancista, passando a explorar o ensaio filosófico-etnológico sobre as ambivalentes relações entre Massa e Poder (aliás título de um de seus mais importantes livros, publicado em 1960, responsável direto pela obtenção do Prêmio Nobel de Literatura de 1981). Além disso, tornou-se apreciado conferencista pela veemência com que exaltava ou demolia seus ídolos literários. Segundo Peter Von Matt, organizador deste livro, “a sua devoção era devoração, seu desprezo um vômito”. Era natural que sua forma ostensiva de manifestar-se lhe trouxesse enorme conflito com a crítica literária convencional. Em todos os seus escritos avultam as observações sagazes e sarcásticas, os aforismos desconcertantes, as observações contraditórias, tudo vazado num estilo sempre tenso, mas nem sempre facilmente compreensível.
Amálgama de um verdadeiro cadinho de línguas e vivências, Elias Canetti, nascido na cidade búlgara de Rustschuk, a 25 de julho de 1905, tornou-se um dos intelectuais europeus mais incisivos do pós-guerra, graças a seu rigoroso senso estético, à defesa de posições extremadas e de convicções que não se deixaram distorcer nem mesmo em face de circunstâncias vividas. Apesar de seu retraimento natural, foi a representação última do intelectual consciente de seu papel de pensador que, sem buscar os holofotes da publicidade, não se deixou no entanto enclausurar num atitude meramente contemplativa. Criado em casa dos avós maternos que se exprimiam em ladino, língua falada pelas comunidades judaicas da Europa central e meridional (especialmente a Bulgária e a Iugoslávia), trazida para esses países pelos judeus expulsos da Espanha em 1492, só veio a falar o búlgaro pelo contato com os empregados domésticos, pois os próprios pais preferiam na intimidade o alemão, nostálgicos de seus anos estudantis na Viena do Império Austro-Húngaro, onde sonhavam se tornar atores do teatro oficial. Os avós, que pretendiam educá-lo nos rigores do judaísmo ortodoxo, eram tão radicais que não admitiam nem mesmo o casamento entre judeus asquenazes e sefarditas, e chegaram a matriculá-lo numa escola talmúdica. Mas, em 1911, os pais resolveram mudar-se para Manchester, levando consigo Elias, o filho menor Nissim (1909) e o recém-nascido George (1911). A mudança deveu-se mais ao empenho da matriarca Mathilde Canetti, cujo nome de solteira era Arditti, ansiosa por fugir à influência dos sogros e integrar-se na cultura européia cujos ideais cosmopolitas cultuava, associando-se, na Inglaterra, aos irmãos já ali estabelecidos como comerciantes de sucesso. Elias, seu predileto e já predestinado a triunfar pelo saber, foi logo matriculado na escola pública. Um ano depois, Mathilde segue para Bad Reichenhall, na Baviera, aparentemente para tratar da saúde, mas por lá se demora indefinidamente. Depois de seu regresso, o pai, fumante inveterado, morre de um ataque cardíaco, talvez em consequência de desgostos íntimos e das preocupantes notícias sobre a guerra dos Bálcãs. Muitos anos mais tarde, Canetti registra em um de seus livros de memória (Die geretteteZunge / A língua absolvida) o choque que a morte do pai lhe causara e sua reação de espanto ao descobrir que a mãe tivera um romance extra-conjugal em sua permanência na Baviera. Embora afaste a hipótese de que sofresse de complexo de Édipo — opositor renitente às concepções psicanalíticas de Freud, com quem aliás conviveu — e por atribuir o assombro a uma reação natural da infância, a verdade é que, depois da morte do pai, passou a exercer sistematicamente uma fiscalização dos relacionamentos da mãe.
Mas as experiências linguísticas e vivenciais de Canetti não se limitaram a isso: com a morte do esposo, Mathilde resolve mudar-se com os filhos primeiro para a Suíça, obrigando Elias a enfrentar um curso intensivo de alemão, e, em seguida, para Viena, onde ele vai prosseguir seus estudos secundários e conhecer as primeiras manifestações anti-semitas, sublimadas pela noção de orgulho que a mãe lhe infunde. Da Suíça, a família se muda para Frankfurt, onde Canetti termina seus estudos preparatórios em 1924; vão em seguida para a Áustria, onde Elias se matricula no curso de química da Universidade de Viena, mais para atender aos desígnios de Mathilde, pois já a essa altura estava decidido a dedicar-se à literatura e à crítica cultural. É aí que encontra Venetiana (Veza) Taubner-Calderón, oito anos mais velha que ele, e portadora de defeito físico, imbuída de idéias socialistas e feministas e com veleidades literárias; irá casar-se com ela em 1934, certamente para contrariar a violenta oposição materna e, de certa forma, acabar definitivamente com o obsessivo apego de (e a) Mathilde, de quem já estava em parte separado, pois esta, em 1927, muda-se para Paris em companhia dos outros dois filhos, deixando-o só em Viena.
Antes do casamento, Elias já havia feito sua estréia literária com um drama em versos (Junius Brutus) e duas peças teatrais (Hochzeit, O Casamento-1932 e Komödie der Eitelkeit, Comédia da Vaidade-1934). Residindo nas proximidades do hospital psiquiátrico Steinhoff, e inspirado em Balzac, concebe o plano de escrever uma série de novelas que tivessem por tema a loucura humana. A primeira delas, Die Blendung (literalmente, O Ofuscamento), lançado em Viena em 1935, seu primeiro e único romance, só lhe traria notoriedade muitos anos depois, graças às traduções inglesa e francesa (inicialmente com o título de “A Torre de Babel”, tendo Canetti mais tarde adotado “Auto-de-fé” para todas as edições).
A novela, que se tornaria mais tarde um momento referencial de toda a literatura, explora a paranóia do sinólogo Peter Kein, dono da maior biblioteca da cidade, possuidor de transcendente cultura, mas alheado do mundo em que vive; transformando o contato com os livros na própria razão de sua vida, seu absenteísmo da realidade o leva a casar-se com a governanta Therese Krummhollz, que irá explorá-lo juntamente com o zelador do prédio, Benedikt Pfaff, a verdadeira figura do protonazista. O irmão de Kein, vendo o estado de penúria a que os aproveitadores o levaram, tenta em vão resgatá-lo da loucura. “Klein morre numa apocalíptica autodestruição em meio a seus livros”. O romance encontrou leitores entusiasmados inclusive Thomas Mann, que o saudou como um livro além de sua época.
Em 1937, começam as primeiras evidências de anti-semitismo na Europa e, no ano seguinte, Hitler ocupa a Áustria; Mathilde está à morte em Paris, o casal consegue os vistos necessários à viagem, e uma vez longe das perseguições que se intensificavam, os dois resolvem seguir depois para Londres, onde irão residir modestamente no subúrbio de Hampstead. Nos anos subsequentes, Elias concentra-se na preparação de sua obra Masse und Macht (Massa e Poder), um de seus escritos capitais, em que estuda, de forma inteiramente pessoal o conceito de massa, seus deslocamentos, concentrações, ações e reações, afastando-se das ideias dominantes à época, de tal forma que os nomes de Marx e Freud são citados apenas uma vez, e numa pequena nota. Em 1946, sai a tradução inglesa de Die Blendnung, tornando seu nome conhecido nos meios literários da Europa livre. Em 1952 adquire cidadania inglesa e será nessa qualidade que receberá em 1981 o prêmio Nobel (US$180.000), acompanhado do embaixador do Reino Unido na Suécia. Em seu discurso de agradecimento, em vez de mencionar o holocausto judeu, como todos esperavam, alerta o mundo contra a barbárie de Hiroshima.
Sempre surpreendente em suas ideias e atitudes, muda constantemente o rumo de suas atividades literárias: autor de um romance de sucesso, nunca escreverá outro; envereda pelo teatro e logo se põe a estudar os grandes movimentos sociais; inicia suas memórias, mas interrompe-as para se dedicar a uma compilação de suas máximas e frases de efeito. Em 1969, escreve Der andere Prozess. Kafkas Briefe an Felice (O outro Processo. Cartas de Kafka [à sua noiva] Felice), em que estuda a luta interior de Kafka entre sua confortável vida burguesa e seu isolamento individual, utilizando interpretações psicanalíticas totalmente heterodoxas.
Uma das restrições que em geral lhe é feita está ligada ao suposto egocentrismo literário que o levava a boicotar em vida a produção literária da esposa, autora de várias novelas inéditas, entre as quais a semibiográfica Schildkröten (literalmente, As Tartarugas, mas se referindo ao nome que era dado em sua infância às empregadas domésticas), em que narra sua experiência na Áustria anexada, enquanto aguardava o visto para deixar o país. Contudo, depois do Nobel, Canetti estabeleceu um fundo para a divulgação da obra de Veza, chegando mesmo a escrever o prefácio da edição. No entender de Marianna Birnbaum, professora de literatura alemã da Universidade da Califórnia, a atitude de Canetti se devia mais ao receio de, em vida, expor Veza aos rigores da crítica, já que todos os seus livros, segundo a comentarista, eram insipidamente medíocres. Considerando as desavenças do casal, já separado nos últimos anos de vida da esposa, o comportamento de Canetti em vez de se mostrar egocêntrico, pode ser até mesmo interpretado como um último ato de reverência conjugal. Veza morreu em 1963 e Canetti voltou a casar-se em 1971 com Hera Buschor, de quem teve a filha Anna, hoje encarregada da divulgação de sua obra. Notório pela conquista de prêmios literários e de amantes problemáticas, Canetti achava que todas as relações pessoais eram para ele “um enigma” e via na “vida de casal” uma aberração. Mesmo durante seu longo casamento com Veza, ele morou quase sempre sozinho.
Apesar de ter vivido na Inglaterra por cerca de 40 anos e dominar perfeitamente o inglês, Canetti sempre escreveu em alemão, considerando-o sua “língua materna”. Chegou mesmo a fazer uma extensa apologia do idioma, atribuindo-lhe as características de doçura e suavidade. Alegam alguns críticos, pouco simpatizantes com sua obra, que ele fez tudo, do ponto de vista cultural, para se igualar aos grandes escritores de língua alemã, como Kafka, Thomas Mann e Musil, acumulando uma portentosa erudição e exercitando-se nos mais variados gêneros literários, mas só conseguindo permanecer num nicho de reserva, à espera do declínio imprevisto de algum daqueles nomes.
O mesmo ocorre em relação a certos críticos ingleses, que acusam Canetti de tentar “se inserir no que considera o mundo da maior das literaturas [a inglesa]” mediante ataques contundentes ao seu poeta maior, T. S. Eliot.
Esse existir em múltiplas culturas e o domínio de vários idiomas, em que se exacerbava sua compulsiva fome de leitura, fez de Canetti um ser conflituoso, incapaz de se satisfazer com as conquistas literárias (e outras) que foi obtendo ao longo da vida. Daí a diversidade de sua produção em que as narrativas se entremeiam de aforismos, em que as memórias dão espaço às críticas, em que as conferências se enriquecem com seus dados biográficos. A leitura era para ele como um ato antropofágico, pois deglutia o autor até incorporá-lo a si mesmo, como os selvagens faziam para se revigorar com a carne de seus inimigos mais valentes. Daí estas anotações sobre autores e livros, com sua impressionante extensão e variedade, nas quais ele emite conceitos díspares e julgamentos não raro a contracorrente da avaliação dominante. Sua obra está cheia de pedras de toque, de expressões cáusticas emitidas como esguichos de incontido sarcasmo. É quase certo que deve muito ao filósofo-corcunda alemão, Georg Christoph Lichtenberg (1742-1799) (“A ocasião não faz apenas o ladrão, mas também grandes homens”), de quem foi grande leitor e divulgador, bem como a William Blake (1753-1827), contemporâneo deste, e um dos poucos escritores ingleses que despertou o interesse de Canetti, a ponto de ter escrito neste livro: “Da população da Inglaterra que acossa a minha memória, ele é o único que me restou”. Esse passeio prolongado pelos clássicos gregos e latinos, e esse desfile de grandes escritores das principais literaturas do nosso tempo, é percorrido por Canetti sem qualquer intenção de crítica literária, de julgamento de valor, mas numa espécie de toma-e-larga, de um puxão apropriativo e de um afastamento repulsivo, nesse gesto meio inconsequente e alienado de quem lê e depois atira o livro fora. Canetti, a rigor, não lê: apropria-se de seus autores para domá-los, absorvê-los e depois livrar-se deles.
Também em suas conferências – sendo duas das mais características as sobre Georg Büchner e Karl Kraus – esse estranho misto de admiração e desdém se evidencia, deixando no entanto claro que esse último sentimento não se nutre de qualquer espécie de inveja, mas de identificação e autocrítica quando ele não sente em si os valores especiais (não os tradicionais) que o outro possui e ele não consegue ter.
O acervo deixado por Canetti à Biblioteca de Zurique tem um volume dez vezes maior do que a sua obra já publicada. Dele poderemos esperar muitas surpresas à medida em que esses inéditos forem publicados, o que será feito ao longo do tempo, conforme determinação do autor.
(Fonte: Cultura – O Estado de S. Paulo – 24.07.2005 – O senso estético como princípio)
Caro Ivo,
outro grande que mora no meu intelecto. Tenho algum dos seus livros.
com apreço
Eric
Olá Ivo,
primeiramente gostaria de parabenizá-lo pelo blog. Tenho acompanhado há algum tempo seus escritos e tenho aprendido muito.
Como você, sou natural de Ervália, e por indicação do meu avô Vicente Caetano de Mattos gostaria de lhe enviar meus dois livros, ambos publicados em 2010. O primeiro (Pá Virada) é um livro de poemas de publicação independente, o segundo (Monólogo de uma vida) foi publicado apenas na internet, numa pequena tentativa de falar da vida através da linguagem poética e do contexto teatral. Para tal, solicito gentilmente seu e-mail. Meu endereço é denismattosmg@gmail.com
Mais uma vez, parabéns pelo blog. Agradeço desde já sua atenção.
Um grande abraço!
Denis Mattos.
Grande Ivo. Seu silêncio demorado me fez pensar em problemas com parentes ou propriedades nas áreas das enchentes serranas. Mas eis aí você de novo, em grande estilo.
Homem, você escreve tão bem, já leu tanto e de tanto sabe… que sempre me lembra o Otto Maria Carpeaux.
Como é bom tê-lo de volta!
[…] Lendo, esparramando e pensando a poesia com Elias Canetti. Muito, muito bom! O QUE UM POETA NÃO VÊ NÃO ACONTECE* • O poeta deve ser aquele que percebe o que já aconteceu para antecipar aquilo que será. Portanto, não sofre realmente, apenas se lembra; e não faz nada, porque ainda o precisa predizer. • O que mais prezo no verdadeiro poeta é aquilo que ele, por soberba, omite. • O que um poeta não vê não aconteceu. • Eu não sou poeta, pois não sei calar. Mas muitas pessoas dentro de mim – que eu não conheço – calam. Suas irrupções eventuais me tornam um poeta. • Nada se compara às palavras, sua deturpação me tortura como se fossem criaturas sensíveis à dor. Um escritor que não sabe disso é, para mim, um ser incompreensível. • Sem a desordem da leitura não existe poeta. • Os maus poetas eliminam os traços da transformação, os bons, os revelam. • Transmutar o temor em esperança – farsa ou feito do poeta. • Os verdadeiros poetas apenas encontram seus personagens depois de os terem criado. • O tempo durante o qual luta apaixonadamente contra alguma coisa é, para o poeta, o mais importante. No momento em que se rende, deixa novamente de ser poeta. • A humilde tarefa do poeta, no final das contas, talvez seja a mais importante: o ato de transmitir o que leu. • Se os poetas não se apoiarem entre si – o que restará deles? * Trecho do livro “Sobre escritores”, de Elias Canetti (1905 – 1994) Prêmio Nobel de Literatura 1981. CANETTI, Elias. In: “Sobre os escritores”. Apresentação de Ivo Barroso, Tradução de Kristina Michahelles, JOSÉ OLYMPIO, Coleção Sabor Literário, Rio de Janeiro, 2009. p. 27 à 35. Aqui mais uma ótima leitura: https://gavetadoivo.wordpress.com/2011/01/28/a-leitura-agressiva-de-canetti/ […]