Cinéfilos de plantão, valei-me! Ewalds pais, filhos netos e afins, salvai-me! Um filme que vi (?) quando ainda na minha idade da pedra (de escrever, a ardósia, lembram-se?), ou algo depois, quando já deixara as cavernas da infância para caçar nas savanas da puberdade — está infernando a minha vida, como o emplastro a cabeça de Brás Cubas. Todos os dias me lembro dele, acrescentando algum detalhe ao enredo, iluminando uma sequência esmaecida, dando contorno à face dos atores. Já recorri a alguns amigos para me tirarem da dúvida se esse filme existiu mesmo ou não passa de uma projeção da minha mente. Dois ou três desses espantosos cinemaníacos, que sabem tudo sobre até mesmo os intérpretes de pontinhas mudas de antigos seriados da RKO, perderam tempo com minha dúvida existencial e foram prestimosos a ponto de exumar dois ou três títulos, que infelizmente não bateram em sua totalidade com a minha história.
Mas vamos ao filme, um preto-e-branco possivelmente da década de ´30; cenário: estepe russa, vasta extensão de neve batida pelo vento. Numa estalagem, a meio caminho de Moscou, os cossacos se refazem das fadigas do percurso. Lareira acesa, vodca rolando, o estalajadeiro falastrão e sorridente animando os hóspedes com suas histórias ingênuas. De repente – emoção! – aparece a loura e bela filha, servindo desenvolta os clientes que lhe dirigem galanteios. Mas todos se aquietam quando ela canta uma daquelas canções russas acompanhada de buliçosas balalaicas. Um dos cossacos, a fim de seduzi-la, diz ao pai que a moça faria grande carreira se fosse residir em Moscou. Ele cede afinal. Ela parte, já nos braços do futuro sedutor. Grande corte. O cossaco, depois de possuí-la, abandona a moça ao seu destino e ela passa miséria para não ter que voltar e revelar sua desdita ao pai. Escreve-lhe dizendo que se casou com o cossaco, vive numa bela mansão e faz sucesso cantando no teatro. O velho estalajadeiro (estou vendo a cara dele: Akim Tamiroff? Harry Baur? quem, meu Deus?) chora de alegria. Mas lá pelas tantas tem que ir a Moscou para – digamos – tratar da saúde. Escreve à filha que, apavorada, corre à procura do cossaco e lhe pede a graça de bancar seu marido por uma noite apenas, recebendo em sua casa o pai. O cossaco aquiesce; e para caçoar do “sogro”, convoca os colegas; dá uma festa, o velho todo alegre no meio daquela gente importante, na suposta casa da filha. Mas vendo os oficiais mangando do mujique, a jovem resolve revelar toda a verdade. [É aqui o grande momento do filme: a fisonomia inesquecível do velho – Tamiroff? Baur? quem seria aquele grande ator? – que ao mesmo tempo chora e exproba a canalhice dos boiardos (estou vendo seus olhos de beberrão à la Mussorgsky)]. Novo corte: pai e filha regressam num trenó à estalagem da estepe. The end. Alguém viu? Esse filme existe? Creio que se chamava A Estrada do Pecado ou O Caminho da Perdição. Não posso ter sonhado: o estalajadeiro lá me ficou emplastrado no trapézio do cérebro, machadianamente. Ajudem-me a deslindar o impasse. Prometo uma garrafa de vodca, para manter o clima.
Agora fiquei agoniada, quero ver esse filme!