Há nos versos finais deste segundo movimento uma perceptível fusão da linguagem atual do autor e um eco da linguagem clássica do Vate. O amálgama vai se tornando tão denso que já são as próprias palavras que se fundem: m’atava é ao mesmo tempo me atava do verbo atar e matava do verbo matar, bem como m’estava funciona igualmente para me estava do verbo estar e mestava do verbo mestar, arcaico, entristecer. A situação de confronto entre o bem-estar de Sião e o mal estar de Babel já se coloca claramente e o poeta recusa aqueles cantos anódinos que vinha até então cantando, assumindo a consciência de sua nacionalidade poética: Estamos em Sião mas é Babel que conta.
Já agora inteiramente consciente da estrutura do poema — uma homenagem sonata-forma ou seja em quatro movimentos à memória de Camões mediante o tratamento de um tema já consagrado pelo Vate — o poeta se permite escapar por um instante, lateralmente, para um ritmo de scherzo. O terceiro movimento é uma elaboração estilística em vários tons que vão desde o romantismo e o simbolismo até o concretismo. De efeitos visuais, que se perdem numa leitura, não irei lê-los aqui, a não ser um só, que, por explorar efeitos nitidamente melódicos, desestruturando e redimensionando o simbolismo, permitem uma leitura corrida e a audição de seus efeitos sonoros e encantatórios:
A lira tinha a
cordes
odes
tinha tons
de carne
cornamusas
a linha
dos
corais
a cor
das
rosas
as auras
do jardim
as artemísias
a lira tinha
o
timbre
o tlin dos
tímpanos
o claro gorgulhar das campainhas
e ao tocar-lhe as pontas róseas
tinha
no lábio um dedo
um susto nas
pupilas
E cheguei ao final, ao quarto movimento: Nele o poeta faz Camões regredir a seu arquétipo, Orfeu, que depõe sua lira nos salgueiros. É a renúncia da poesia. Não quer nem pode mais cantar, pois acha seu canto de amor e de beleza inútil diante da asperidade e da crueza do mundo. Mas seu Jordão seu rio histórico e mítico não é outro senão o rio Turvão de sua Ervália natal, em cujas margens não crescem salgueiros mas humildes e autóctones tabôas. O poeta revê na mente o rio da infância e o compara com o rio da realidade, hostil, cheio de lio baba e lama. E ao falar desse rio sua linguagem novamente se decompõe, desta vez, de maneira ainda mais paroxística, e as palavras adquirem novas formas gráficas guardando em seu cerne os antigos significados, como clones de múmias.
Neste momento ouve a voz do Vate: é ato vão renunciar ao canto; cantar é sempre válido, o que há são variadas formas de cantar. O canto é a arma do poeta, sua razão de ser, e não será pela simples negativa do canto pregresso que o poeta poderá redimir-se. Força é cantar de novo um novo canto, usando a sua voz como quem se apossa de um punhal.
SAL SOBRE os rios por
(Babel) omnia saecula
por Babilônia seca
peca
por seca e meca
ciclônica
sal sim não salve
não o sal de palma que há em salmo
nem o sal de alma que há em salva
mas o sal de saliva
o sal da urina
o sal da terra
da devastada terra em transe
em traste
a sáfara terra
árida só
frida
Sal e não só
o sufoco
o soluço
o poço
seco deste vale o que restou do rio
quando cascalhos fizeram rígida corrente
Sal e cinza
no pó de tua testa
neste Jordão de osgas
te batizas
Em vez do baú de mortos
que trazes nas
fraldas da camisa
costelas sobre a pele
além das que
sob ela se divisam
Nos teus trajes o que trazes
meu Orfeu
a tua lira
Neste vale descalço as alpercatas perdem-se
no pó na pedra na caliça
Venho buscar
o rio
encontro
sarça cardos salitre
encontro espinhas
nas águas não nos calhaus
nos seixos partidos fósseis
Procuro
o peixe da infância encontro o cheiro das fossas
Já não podemos meditar sobre os rios
raras poças rasos braços
baços pedaços de rio
já não podemos meditar sobre córregos
que não
correm
regos que não molham
sulcos
Que o rio era uma ponte entre o aqui e o distante
o rio levava a nossa baba
o brilho de nossos
olhos
como as águas levavam dentro o peixe
O rio
era o anseio o passo o nosso primeiro
professor de fugas
como as nuvens a primeira namorada
o chamamento
o outro lado daquilo que já vimos
O rio com sua foice
a nuvem com sua noite interpolada
a lua
nele naveguei um verso que falava de falésias
e febres
países verdes gerifaltes
falcos
e conversávamos temas tramas
a amargura o amor o mar a morte
Era um rio-mar meu rio ervoso
nele punha névoas nas manhãs
mais frias os sapos nas tabôas pareciam
elfos falenas
alfenins
ninféias
Mas este é um rio lio baba e lama
por omnia por séca machei
sei loas lêmures lembranças
tão rentes
na alma me
per se
estiram
que minhas coisas pressentes
se fizeram tão nausentes
como se nunca exispiram
A lira venho
depor
a pobre lira por
inútil por
cega por cediça
que esta seca
este sódio
esta caliça
exige range arranca
um rauco
ritmo
(pois não cabe falares de teu peixe
quando o piche está prenhe
de carniça
que não cabe falares de teu sapo
quando a soda babuja as hortaliças
que não cabe
falares dessa nuvem
quando os ferros e garras
do mercúrio
foram torcendo
artelhos nos monturos
e as línguas dos cães se derretiam
nos ácidos dos ossos que comeram
e as ninféias os elfos as falenas
são abortos e bócios e glaucomas)
Tua ausência não te justifica
O desencanto
de querer nos taboais depor a tua lira
depois de ter rolado em outros rios
e deitado nas terras de cultura
comido o pão
bebido o vinho
a pensar que teu canto foi inútil
por ter sido um som só quando podia
ser
um murro
um ferro
uma alforria
se olhas para esta terra e nela encontras
o sal
a cal
a trucidante afronta
se falas do amor tão docemente
um risco
um lábio
um arabesco
um grifo
quando os que ficaram te perguntam
a saída dos que permaneciam
não penses
que é chegado aquele dia
em que tudo resolves com teu gesto
de renegar o canto que fazias
Depõe — se queres —
nas tabôas
as loas todas
de tua lira
Mas usa
a corda
o cardo de teu canto
como fera
como faca que
fira!
Quando acabei o poema dei-lhe uma coda: era o retorno ao processo inicial de parafrasear o Vate, e concluí:
Frauta minha que te engendro
em pontes vazias ri—
os que estáveis meandro
e que corríeis pra dentro
quando devíeis surdir
agora venho depor-te
ficarás oferecida
à Fama não mas à sorte
de estares perto da morte
vibrando de nova vida
Levantei-me de um salto, e onde havia em Camões Super flumina como epígrafe do poema, tomado que fora por um raio inopinado, sentindo-me livre e vazio depois do combate com o Anjo, escrevi Sub fulmine no cabeçalho do meu. Estava feliz, creio que até lancei um breve grito de alegria.
Era já muito tarde da noite, mas o Gerente do banco, que passava ali vindo de um jantar a que fora convidado e vendo as luzes acesas, resolveu saber o que se passava. Entrou, eu lhe disse que estava fazendo um trabalho particular, pessoal, que nada tinha a ver com minhas atividades bancárias, mas que requeria a utilização de uma máquina de escrever elétrica com apagador automático. Ele insistiu, perguntou se estava tudo bem mesmo e, verificando que de fato estava, logo se ausentou. Fiquei mais um pouco e depois fui dormir em estado de graça, visitado pela mão insuspeitada da criatividade.
Muitos anos depois, o Gerente revelou-me que já estava deitado quando recebeu uma chamada do Banco: era o vigia que lhe falava numa voz sussurrante, cautelosa e apreensiva. Dizia que o Dr. Ivo estava no banco, desgrenhado, falando alto, rasgando papéis, batendo furiosamente à máquina, tudo na aparência de um iminente ataque de loucura. Que era melhor ir lá. E ele foi. Não sei se teve a mesma impressão. Mas deve ter certamente visto nos meus olhos o brilho fantasmagórico de quem viu a Estrela da Manhã.
Invejo essa sua experiência noturna de Portugal. E o que resultou dela.