Não quero dizer que os versos me tenham saído exatamente assim; lembro-me que arrancava as folhas de papel da máquina, lia-as em voz alta e as guardava ou as amarrotava e as lançava à cesta, para começar com nova folha branca. Nos momentos de maior exaltação, levantava-me com a folha de papel à mão, dava alguns passos em redor e podia perceber que o vigilante, discreto, de seu canto me observava com certa curiosidade ou já talvez com alguma preocupação.
A essa altura do poema percebi que havia terminado um de seus momentos, mas não o poema em sua totalidade. Vibrei diante da ideia de que talvez estivesse escrevendo o poema “épico” com que antes sonhara. E ao tentar recuperar o impulso lírico inicial, dei-me conta de que estava trabalhando um tema recorrente, uma espécie de sinfonia, em que o leit-motiv era retomado em outra clave que me permitiria a sua variação e o seu desenvolvimento. Estava diante do momento criador que me abria assim as suas portas. Como será que Camões procedia ao criar: simplesmente sentava-se e escrevia ou meditava longamente o seu poema? Um soneto como Sete anos de pastor, que é um mecanismo fechado, como um fruto, uma granada, só pode ter nascido de um fluxo único, sem titubeios, sem emendas, um ovo nascido pronto, final e eterno em si mesmo. Mas, por que não indagar diretamente do Vate o seu processo ? E recomecei:
SOBROLHOS cílios que estão
eles também mergulhados
na tua página
na pátina
no recado
no regaço
na vagina
de tua fálica
fala
Vate
vem me dizer que busílis
que íris
que astrolábio
te guiou no labirinto
que bússola
tiveste
no curso
do teu verso
que mão no timão
do tema
que avantesma
que fantasma
em que imo mar cantaram as sereias de teu rio
rio lio por babiloas que em vão
se vão
se não
se tudo extraíste de ti
do instante
em que pousaste
a pena s
no papel
e lá brotaram não borrões e não bosquejos
mas bosques e barões
Vem dizer-me
se o anseio de criar
foi em ti como um parto
um dardo um feto nas entranhas
se sofrias com teu ato se lambias
tua cria se sentias
brotar em ti como febre como vômito
a ânsia de dizer a mão tentando
escrever mais depressa o pensamento
que passa o passo o pássaro
a garça
em voo
o enjoo
a vontade de esgotar-se golfar-se
de devolver vulcão o que tens dentro
Vem dizer se te doía
ou ia
te aplacar
a carne o ser a crua tessitura
de teus testículos de tua
orgânica orgásmica
argamassa
esse engasgo da garganta a fúria e o
som de teu búzio em tua tuba
tanta
Nós no entanto depusemos
a ira
a fúria
o som com que cantamos ressoa em nós
mas vem de longe
(eco na caverna)
nossa fala
recita um mundo
um fundo falso
um pulso
que tange a corda
dentro de um estojo
relógio
de sol num jardim sem amas nem cachorros
Por muito tempo preparamos o campo
e acreditamos que a chuva e o sol
bastassem para o grão ser grama
e a grama um galho e o galho a flor
que gera o fruto
Nessa espera
aprendemos a ler a constância dos astros
a pensar nos movimentos cíclicos
a erguer um teto que servisse a todas as estações
À espera do canto adormecemos
Acesa
inda ficou a vela expectante
Na praia
demoramos os olhos entre as coxas
do mar e o firmamento vendo o púbis da noite
que emergia do outro lado do mundo
Cogitamos
estar ali o verso que queríamos
No meio de um ofício interrompemos
a rotina dos dias com seus pinos
Cisca
o bico dos dedos o teclado
(quem sabe uma pepita palpitasse
entre as letras sem nexo — dentes sím-
bolos de uma língua já morta ou fictícia)
Nessa busca passamos aguçados
o sentido de crítica e o sarcasmo
com que após de cantar a(na)lisamos
o canto como um/ave/rme
Envelhecemos
E sempre tudo aquém Nunca chegamos
a tocar no seu teto pois que a idade
nos embota ao invés de encompridar-nos
E o tempo que nos dota de radares
ele mesmo nos trai e nos tritura
Mas não era esse o canto que queríamos
À espera da poesia
perdemos os dentes
como dantes
perdíamos o bonde
Ganhamos (perdemos)
nosso dia
e quanto mais ganhávamos o dia
mais perdíamos o pão da poesia
Quanto mais bebíamos dos rios
deste lado do mar das geografias
menos íamos sabendo desse rio
único que em verdade nos dizia
e a terra foi ficando aquela névoa
que a distância na mente esvanecia
e neste chão alheio neste
Sião
de cômodas alfombras
deitamos e rolamos
(Lá ficavas ó terra
guardada para um dia
posta de quarentena
como um parente idoso que se interna
para não vermos seu esgar)
No entanto
não tivemos exílio
antes uma ausência permitida
Não fugimos de noite
o passaporte era de nossa própria
senhoria
não nos tiraram dentes unhas pênis
antes nos deram passes mordomias
Mas quanto mais deitavas e rolavas
mais na mente de noite mal dormias
porque uma coisa (ao menos) bem sabias
Estavas em Sião
Babel ardia
Sim sátiro títiro nós pátria fuguimos e à sombra
das faias descansamos
De tanto
fechar os olhos ao sono já não vemos
as coisas que devíamos
É cômodo voltar de quando
em quando
rever amigos — há sempre um ar de festa
mas lenta se insinua nos açúcares
como um punhal
aquela mesma culpa
do menino e seu peixe
que não mexe no fundo
do embornal
Por isso reinventamos rios Revestimos
as roupas de brincar Reinvocamos
os deuses do quintal — as quintessências
geodesia das cercas distendidas
como se vistas num calidoscópio
Mas inda é pouco
Estamos em Sião mas é Babel que conta
Quanto mais ganharmos neste chão
mais perdemos Babel na folha branca
Minha babel este papel
onde rebel bebo em sião
esse chão por onde o rio
ia
e as sujas águas já não vão
daquele rio-chão daquela folha
dos rios de papel daquela tinta
tanto tentei
tântalo
sentindo
que a voz não era a voz do que dizia
e mais que me dissesse apenasmente
mentava o que na mente me mentia
e a língua
que m’atava
o que m’estava
mestamente na testa doentia
Eu sabia dizer
mas não sabia
como dizer
as coisas que dizia
porque ao dizê-las
uma outra voz (não eu) nelas havia
e o mundo (o meu)
tinha cascas dos ovos de outros mundos
e sombras de outras vozes no seu dia
Por isso a minha voz um eco apenas
que vozes pelo tempo repetiam
e eu sentindo que tanto me doía
a espreita a espera a inspiração
poesia
[continua]
Estou, aqui, aplaudindo você de pé! Quanta fluência de sons, que rio de palavras e beleza corre nesses versos!